São quase 30 anos desde que ocorreu o massacre da Praça Tiananmen em Pequim. No entanto, as pessoas na China ainda não têm permissão para falar sobre isso.
Quando perguntei à minha esposa, que é chinesa, se algum de seus amigos chineses estaria disposto a falar com um repórter ocidental sobre o Massacre da Praça Tiananmen de 1989, ela moveu a cabeça e deixou escapar: “Você é maluco?!”.
Pedir a um amigo para falar sobre uma questão como essa, disse ela, seria a maneira mais rápida de se perder uma amizade ou ser colocada de lado pelo amigos. A matança de centenas de chineses, talvez milhares, ordenada pelo regime chinês há 28 anos, não é realmente um tema nas conversas entre os jovens chineses de hoje. Talvez em privado, com certa prudência; mas em público, nunca.
Mesmo conseguindo alguns chineses para falar sobre o Massacre, isso tem suas peculiaridades. Por exemplo, nenhum dos chineses com quem falei permitiu que eu revelasse seu nome.
Outros não quiseram falar diretamente a mim, só através de um amigo. Um até mesmo achou que deve haver restrições quando se trata de falar sobre o assunto.
Até morar nos Estados Unidos e pesquisar no Google sobre o tema, minha esposa era uma verdadeira ignorante sobre o assunto. Uma vez, ao responder a uma pergunta sobre o Massacre feita por um turista estrangeiro em viagem aos EUA, ela afirmou que, em 1989, o regime chinês estava apenas restaurando a estabilidade política comprometida por manifestações violentas de estudantes radicais – que não tinha nada de mais. Foi “como uma mãe [o regime chinês] batendo num filho rebelde”.
Um jovem chinês que trabalha no departamento internacional de uma grande empresa estatal chinesa, quando questionado sobre sua opinião sobre o incidente de 1989, deu uma resposta do tipo que alguém do Partido Comunista Chinês dá quando há um comissário político do Partido à sua frente.
“Eu sou membro do Partido, estou do lado do Partido. Esses jovens extremados [vítimas do Massacre] foram instigados por forças estrangeiras hostis numa tentativa de dividir a China”. “Meu Partido tomou a ação correta no momento correto e sufocou essa força do mal ainda em seu berço”.
Ao final, ele disse uma frase chinesa que equivale a uma piscadela e uma leve cotovelada: “Você sabe”. Essa frase, “ni dongde”, em mandarim, foi popularizada por Lu Xinhua, porta-voz do Congresso Consultivo de Política do Povo Chinês, quando perguntado, em março de 2014, se Zhou Yongkang, ex-czar da segurança do Partido, estava de fato sob investigação disciplinar. A resposta de Lu (“você sabe”) equivaleu a admitir que Zhou estava sob investigação, mas sem realmente admitir. Todos entenderam e tomaram isso como um gracejo.
É precisamente essa forma de discurso político, que exemplifica o lugar do Massacre da Praça Tiananmen na esfera pública: você não diz que aconteceu, mas todo mundo sabe disso. Só que neste caso não é uma brincadeira.
Dizer a coisa errada sobre o Massacre da Praça Tiananmen levou pessoas para a cadeia na China, enquanto outros, que exigem prestação de contas sobre o Massacre, são perseguidos, colocados em prisão domiciliar ou forçados a sair de “férias” nas semanas ou dias que antecedem o dia “4 de Junho” (por medo que iniciem manifestações em Pequim), aniversário do Massacre.
O tema é um dilema tanto para o Partido quanto para o público. O regime de certa forma quer que os jovens esqueçam o Massacre, mas, ao mesmo tempo, quer que saibam que foi algo que aconteceu, mas que não se deve falar sobre isso. Uma espécie de zona morta do pensamento e da fala.
“O Partido Comunista não quer que as pessoas esqueçam completamente isso [uma lição para quem se opõe ao Partido], como se isso não tivesse acontecido. Como fazer isso?!”, disse Hu Ping, veterano ativista pró-democracia, num evento comemorativo que relembra o Massacre. O evento foi realizado em 2015 no bairro de Flushing (com alta concentração de chineses), em Nova York.
O ponto é que, antes de 1989, a geração mais jovem era destemida porque desconhecia a vocação do Partido Comunista Chinês para a violência extrema. Foi uma geração que cresceu num meio relativamente liberal, pós-Mao, um período de reformas, abertura econômica e progresso. “Agora, eles estão insatisfeitos com o Partido, mas eles não vão protestar. O medo devido ao que aconteceu no Massacre ainda não se desvaneceu”.
Um grupo de estudantes chineses de intercâmbio escreveu recentemente uma carta ao regime chinês pedindo transparência em torno dos acontecimentos de 3 e de 4 de junho de 1989, quando milhares de soldados do Exército do Povo de Libertação marcharam sobre Pequim e atiraram nos manifestantes. “Esse pedaço de história tem sido tão meticulosamente manipulado e bloqueado por tanto tempo que a maioria dos chineses não sabe quase nada sobre ele”, está escrito na carta.
A resposta oficial veio. Global Times, um tabloide nacionalista chinês, que age como porta-voz oficial do Partido, publicou editorial por meio do qual acusou os signatários da carta de terem sofrido “lavagem cerebral” durante sua permanência no exterior. Poucos dias depois, um aviso urgente foi enviado ordenando a retirada do assunto da carta de todos os sites oficiais.
Chen Chuangchuang, um dos signatários da carta, presente no evento pró-democracia citado, disse que “as autoridades chinesas alegam que um consenso foi alcançado sobre a questão 4 de junho”. Isso é realmente de envergonhar. Como eles conseguiram esse consenso? Para isso, eles empregaram violência e controle de mídia. Você não pode criticar o que o regime chinês fez em 4 de junho ou você será colocado na cadeia. Mas se você quiser elogiar a ação do Partido em 4 de junho, eles não vão gostar também. Eles só querem que você não fale sobre o assunto”.
Hu Ping disse que, ideologicamente, para o regime, a questão continuará a ser um assunto proibido, mas não a ser esquecido. “Eles querem que as pessoas se lembrem do terror, mas, ao mesmo tempo, também querem que as pessoas esqueçam suas justas indignações”. A ausência de “justa indignação”, como Hu Ping colocou, de fato, é evidente entre muitos jovens chineses.
Um universitário chinês que cursa estatística numa famosa universidade dos Estados Unidos disse que é importante que os de sua geração tenham uma visão objetiva e equilibrada sobre o “4 de Junho”, como o Massacre é chamado normalmente em chinês. Ele concordou em falar, desde que o seu nome não seja revelado. Vamos chamá-lo de John.
John é da opinião de que “é preciso dar ao público e ao governo tempo para refletir”. Ele acredita que daqui a 10 ou 20 anos, o Partido permitirá falar sobre o assunto e uma versão do que aconteceu vai estar nos livros didáticos, e um veredito oficial revisto irá surgir. “Temos que dar tempo ao Partido Comunista Chinês e pacientemente aceitar erros ou decisões mal feitas”. Isso está correto para John.
John, nos EUA, teve realmente tempo para descobrir o que aconteceu em “4 de Junho”, gastou horas lendo material e assistindo a documentários sobre os protestos e o Massacre, inclusive o épico de três horas “Portão da Paz Celestial”, dirigido pelo cineasta Carma Hinton e o sinólogo australiano Geremie Barme .
Seu ponto de vista é que, essencialmente, os estudantes de “4 de Junho” tentaram “comer uma fruta verde”, como colocado pelo famoso líder estudantil Han Dongfang.
Na China, John falou sobre o assunto só com pessoas muito próximas dele – por exemplo, com um ex-professor chinês que ele conheceu há anos e que foi submetido a sessões de lavagem cerebral realizadas durante meses após o Massacre. Essa cautela se deve ao fato de que ele não tem certeza se seus interlocutores não são espiões enviados pelo Partido, disse John.
Apesar das frustrações evidentes de tais restrições, John, de fato, acaba apoiando o regime chinês. Ele disse que a recente carta de estudantes estrangeiros ao regime chinês foi “preocupante” e “extrema”. “Se, de repente, isso se espalhar e a chamada verdade sobre o que aconteceu for revelada, há o risco de que as pessoas possam ir para o outro extremo”.
À medida que a nossa conversa avançou, tornou-se claro que a liberdade para se discutir sobre o massacre de “4 de Junho” é equivalente a ter liberdade para se discutir a legitimidade do Partido Comunista Chinês. Enquanto o Partido der as cartas, tudo o que chama o Partido para essa questão, disse John, não deve ser permitido. Ele fez essa afirmação não devido a qualquer lealdade especial ao Partido, mas ao que parece, simplesmente como resultado de ter internalizado as justificativas dos chineses em torno do que o Partido fez em “4 de Junho”.
Quando foi mostrado a John que até mesmo sua argumentação – um tipo de apoio ao regime chinês – não seria permitida na China, ele concordou prontamente. “Se você disser que apoia os estudantes de 1989, isso é perigoso. E se você disser que apoia totalmente o Partido no que ele fez em 4 de junho, isso é também perigoso. Na China, eu sou muito cauteloso sobre este tipo de debate”.