O sistema bancário colateral, produtos de gestão de riqueza, a especulação imobiliária, a dívida dos governos locais – estes são alguns dos principais canais pelos quais a dívida está sendo acumuladas na China na busca de crescimento econômico desenfreado. O problema ganhou destaque após os gastos de estímulo do governo para incentivar o crédito a partir de 2009 – em resposta à crise financeira global – terem continuado desde então, mesmo que com curtos momentos de modulação.
Tendo como referência o colapso em julho de 2013 de um produto de gestão de riqueza vendido pelo Banco Industrial e Comercial da China, o maior banco do mundo em capitalização de mercado, o Epoch Times conversou com Fraser Howie, coautor com Carl Walter do livro “Capitalismo Vermelho: A frágil fundação financeira da extraordinária ascensão da China“, sobre o problema da dívida da China e como a situação é susceptível de evoluir.
A transcrição foi editada para clareza e objetividade.
Epoch Times: O que você acha da recente inadimplência de um pequeno produto de gestão de riqueza do Banco Industrial e Comercial da China?
Fraser Howie: Em si mesmo isso não é suficientemente grande nem público o bastante para afundar o navio. Este não é o catalisador, não é o colapso do Lehman Brothers, que provocou a crise – mas é mais um exemplo de um projeto de gestão de riqueza assumindo a forma de pera.
No quadro de um empréstimo bancário regular, os empréstimos são geralmente de longo prazo e menos transparentes. Se a empresa não pode pagar, eles se dirigem ao banco e dizem: “Veja, vamos apenas prorrogar isso ou estender o prazo”, e as únicas pessoas que sabem são o banco e a empresa. E os bancos são criativos em sua capacidade de definir maus empréstimos.
Com relação aos produtos de gestão de riqueza, indivíduos investem nessas coisas que são ofertadas ao público, vendidas em agências bancárias e que têm um prazo de retorno muito mais curto. Por isso, é muito mais público quando estes produtos falham.
O que estamos vendo é um número crescente dessas coisas se tornando inadimplentes, ou apenas pagando os juros, ou tendo de invocar o fiador. Basicamente, estamos vendo em tempo real produtos financeiros ruins realmente quebrando. E veremos mais disso.
Em última análise, o problema maior por trás de tudo isso é que o dinheiro está sendo emprestado a empresas que não podem pagá-lo. Esse negócio pode estar conectado à infraestrutura e ao governo local ou a algum tipo de investimento imobiliário. Você tem um ativo subjacente ao produto que não pode pagar no prazo em que ele está envolvido.
Mesmo que sua infraestrutura não seja desperdiçada – você pode construir casas no meio do deserto e eventualmente as pessoas podem até usá-las –, o problema é que o investimento não pagará no calendário do produto de gestão de riqueza. Por isso as inadimplências.
Neste momento, o número de inadimplências é pequeno o suficiente para ser gerenciado localmente, e alguém intercede. Poderia ser o banco ou um fiador.
Epoch Times: Quem são esses fiadores?
Sr. Howie: Sociedades de garantia, que são empresas com uma pequena base de capital que emitirá uma garantia por uma pequena taxa, grupos de investimento, qualquer pessoa que esteja preparada para dar garantia. Muitas vezes as pessoas oferecem garantia porque assumem que o pior nunca ocorrerá. Mesmo que o fiador entre em cena para pagar o empréstimo ruim, ou para pagar o produto de gestão de riqueza, isso é uma boa notícia para o investidor, que recebe seu dinheiro ou pelo menos tem seu investimento inicial restituído. Mas ainda assim, tudo o que foi feito foi deslocar o risco para outro lugar do sistema.
Se o jogo subjacente era ter um produto de qualidade gerando fluxo de caixa, gerando retorno produtivo, e isso não está acontecendo, então isso é um problema.
Epoch Times: Há questões sistêmicas que impedem o investimento produtivo?
Sr. Howie: Acho que no momento ainda estamos muito no início do ciclo. O que sabemos é que por alguns anos agora o crédito tem sido abundante, com mais e mais crédito jorrando, e também foram criadas formas mais criativas de espalhar crédito pela economia. Então, até agora, o crédito realmente não tem sido o problema. Sempre houve alguém mais tolo. Você pode emprestar mais para pagar suas dívidas. A maré não recuou.
O que eu acho que veremos é o seguinte, e é aí que está o risco real: se as autoridades estão realmente falando sério sobre apertar o crédito, e se a disparada da taxa interbancária foi o primeiro sinal, então acho que veremos mais e mais desses padrões. Porque o crédito não será mais abundante e quando empresas ou produtos têm problemas, sua capacidade de pagamento se tornará mais restrita e limitada.
Há este problema que o crescimento tem sido impulsionado pelo aumento do crédito, que se essas torneiras forem fechadas então o crescimento desacelerará. Testemunhamos assim um duplo problema, o crescimento dos empréstimos inadimplentes e a maior desaceleração, um circuito que alimenta a si mesmo. Portanto, sou um tanto cético sobre o grau de agressividade das autoridades em restringir o crédito, pois as consequências podem ser severas. Acho que eles certamente tentarão reduzir o ritmo, mas como efetivamente eles poderão implementar isso será um grande desafio, porque não há outro motor de crescimento disponível a mão. Mesmo que se fale sobre reformas na China, não está claro para mim como isso reestimulará a economia. Acho que o crescimento provavelmente continuará na descendente a partir dos níveis atuais.
Epoch Times: O que os bancos podem fazer quando os ativos investidos não estão tendo bom desempenho?
Sr. Howie: Eles podem estender o empréstimo ou absorvê-lo e assumir a perda balanceando-a com seus lucros acumulados. Lembre-se, os bancos têm tido lucros substanciais, pelo menos no papel, por muitos anos. A questão é a dimensão de perdas que os bancos podem suportar.
Se as perdas forem muito grandes, obviamente, eles recorrerão ao governo para um resgate. Mas tudo o que é feito é socializar as perdas. O governo não tem dinheiro, as pessoas têm dinheiro. E assim o governo, em última instância, se ele tem de salvar os bancos, no fim do dia ele desviará os gastos do governo de políticas de bem-estar social e várias outras para basicamente salvar os bancos. Não há opção gratuita aqui. Se você empresta dinheiro, então há um custo para isso em algum lugar do sistema, e o custo virá porque ou a própria empresa ou o banco sofrerão a perda, o investidor do produto de gestão de riqueza sofrerá a perda, ou ela será socializada pelo governo quando socorrê-los.
Epoch Times: Então, onde o limite da capacidade de endividamento aparece?
Sr. Howie: Há apenas certa quantidade de poupanças que sustenta os empréstimos, e o volume de dinheiro é limitado. Se não fosse assim, então teríamos hiperinflação. A base pode crescer, mas tem de crescer acompanhando razoavelmente a economia mais ampla. Se empréstimos são feitos a empresas que não podem pagá-los, então como é que novos negócios obterão empréstimos? A resposta é que não obterão. Novos negócios ou projetos não podem iniciar porque os empréstimos continuam indo para as mesmas empresas-zumbis. Isso pode durar um longo tempo (como no Japão) e, porque os juros são baixos, você pode pagar a dívida ao longo de muito tempo, e você acha que está tudo bem. Mas o que acontece quando os juros sobem? Ou se todos os empréstimos estiverem na mesma situação? Como o banco ganhará dinheiro? Eles não poderão pagar os juros sobre os depósitos e os poupadores retirarão seu dinheiro. Mas então o banco não terá dinheiro disponível, pois todo ele foi para empresas que não podem pagar os empréstimos. Não há qualquer proporção ou número que possa dizer quando o ponto de ruptura ocorrerá, mas ele está lá. O desempenho econômico do Japão ao longo dos anos é um testemunho disso. O Japão também é evidência de que esses problemas podem ser prorrogados por um longo tempo.
Outro ponto: a China é a economia milagre, não é? A resposta é não, ela não é. Grande parte do crescimento recente foi realizado com base em dívida. Não há uma fórmula secreta: eles emprestaram excessivamente para obter números elevados do PIB em curto prazo.
Epoch Times: Por que os bancos têm de ser os únicos a emprestar dinheiro? Como é que essas sociedades fiduciárias ou empresas de gestão de riqueza não interagem diretamente com os investidores?
Sr. Howie: Como Willie Sutton disse: “Porque é onde está o dinheiro.” Os bancos, em primeiro lugar, tem grandes redes. Vá a qualquer cidade chinesa e você verá muitíssimos bancos. Eles têm o maior acesso aos fundos; eles têm clientes chegando, e eles são alguém com quem você quer fazer parceria.
Os bancos também procuram maneiras de expandir seus negócios e abarcar mais pessoas. Eles têm trabalhado para vender fundos de investimento e produtos de gestão de riqueza. O banco oferece um lugar para realizar negócios, e recebe uma comissão em troca.
Epoch Times: Os bancos cobram uma taxa mais elevada do que os empréstimos típicos por causa dos regulamentos sobre empréstimo e taxas de depósito?
Sr. Howie: Sim e não. O problema aqui é que há inúmeras permutações sobre o que está ocorrendo. Há coisas chamadas empréstimos de confiança e empréstimos fiduciários. Empréstimos de confiança ocorrem quando os clientes do banco vão ao banco. Há também empresas estatais que em alguns casos retêm parte dos lucros, ou emprestam de um banco a 6%, e em seguida ligam para o banco e dizem: ‘Posso coordenar um empréstimo através de vocês para outra empresa, como um promotor imobiliário que precisa do dinheiro?’ E assim o banco fica no meio deste empréstimo de confiança.
O banco também pode se envolver neste produto e vender a uma taxa mais elevada. Realmente parece haver um número quase ilimitado de variações nesse processo.
Epoch Times: Por que isso é problemático?
Sr. Howie: Não está inteiramente claro para mim que o empréstimo seja mais perigoso do que o crédito regular, mas é perigoso no sentido de que não é regulamentado. Se as coisas dão errado, o direito do credor de recuperar seus ativos pode ser muito mais débil do que num empréstimo tradicional; é menos transparente e não está claro quem são todos os jogadores ou quais são exatamente as conexões envolvidas.
Acho que uma das coisas que surpreendeu a muitos durante a crise financeira nos Estados Unidos foi a interligação entre o Lehman Brothers e todos os outros bancos. É o problema do elo mais fraco da corrente: uma coisa falha trazendo implicações para todo o sistema. Essa é a preocupação real com o sistema bancário colateral na China. Da mesma forma que, se você quer perder peso, você pode ir à academia, comer menos ou cortar uma perna: todas essas formas reduzem o peso, mas claramente elas não têm as mesmas consequências.
Epoch Times: Quem estará no gancho quando ou se as coisas realmente ruírem?
Sr. Howie: Eu esperaria que os bancos estivessem no gancho, até certo ponto, pois os bancos têm sido as grandes vacas leiteiras, e em última análise são a maior fonte de fundos e depósitos no país. Em algum momento, alguém tem de assumir a dor.
Se a inadimplência atingir os bancos menores, não me surpreenderia se os bancos maiores fossem convidados a vir em resgate. Nós não estamos nessa fase ainda, mas não há como você pensar nos bancos como órgãos sociais independentes: os bancos estão absolutamente vinculados ao Partido Comunista Chinês (PCC) em termos do que eles farão. Sua gerência é escolhida pelo Departamento de Organização do PCC. É simplesmente assim.
Eu não vejo como possa haver uma crise financeira na China sem que os bancos sejam afetados direta ou indiretamente, porque é onde está o dinheiro. Eles têm grandes redes de agências, eles são o veículo que você pode usar para absorver essas perdas. Não acho que o governo queira que eles paguem a conta diretamente, eles não querem emitir novos títulos do tesouro ou fazer qualquer coisa diretamente. Eles seriam muito mais felizes se apenas observassem os bancos tentando resolver esses problemas por si mesmos.
Epoch Times: E quanto à recapitalização da década de 1990, quando dívidas podres foram transferidas para sociedades gestoras de ativos (SGA)? Como foi essa experiência, e podemos ver isso se repetir?
Sr. Howie: De fato, isso não funcionou bem. Treze anos atrás, as SGA assumiram algo como US$ 370 bilhões em dívidas bancárias. Elas nunca foram capazes de reembolsar os termos dos empréstimos que financiaram a compra, e finalmente as obrigações de reembolso da dívida foram assumidas pelo Ministério das Finanças. As SGA mantiveram uma série de empresas reais que eram efetivamente transações de dívida por ações, ou seja, a corretora local devia dinheiro ao banco, o empréstimo assumiu a forma de pera, e este por sua vez foi comprado pelas SGA; a corretora local nunca poderia pagar essa dívida, assim as SGA aceitaram uma participação acionária em vez de direitos de credor. O resultado é que as SGA se tornaram acionistas de uma ampla gama de empresas. As contas das SGA ignoraram os títulos originários e as obrigações de dívida, e tudo foi empurrado para o Ministério das Finanças; então as SGA são o resultado desses títulos de vastas carteiras de crédito inadimplentes. É claro que em alguns casos isso funcionou bem, quando os ativos dispararam em valor, mas as grandes SGA são avaliadas como um todo em cerca de US$ 10-20 bilhões, nem perto dos US$ 370 bilhões em empréstimos que assumiram outrora.
Faça a si mesmo a seguinte pergunta básica: Se eu ignorar minha hipoteca, eu sou mais rico? Claro que não. Você não pode ignorar a dívida na equação e apenas calcular os ativos; como você não pode simplesmente dizer que tem alguns milhões extras no banco. O que a China fez, no entanto, não foi simplesmente ignorar as dívidas, mas movê-las de entidade para entidade. Portanto, embora elas já não existam para os bancos ou as SGA, elas apenas foram deslocadas para o Ministério da Fazenda, ou seja, o balanço do Estado. O Estado paga a dívida emitindo títulos lastreados em receitas fiscais e os impostos vêm das pessoas na rua. O banco simplesmente teve suas más decisões de empréstimo socializadas.
Epoch Times: Como você vê todo esse desenvolvimento?
Sr. Howie: Esta bolha de crédito na China é um problema crônico ao invés de agudo. Ele está presente há muitos anos.
Há um custo e isso se manifestará, no melhor cenário, por meio de um crescimento substancialmente menor. No pior dos casos, isso criará mais cenários de crise. Nesse caso, a China tem tantas fraquezas e tantos pontos de fratura que só Deus sabe como isso pode acabar se você realmente começa a ver uma crise financeira sistêmica. É simplesmente muito difícil tentar mapear. Estamos falando de fuga de capital, de todo o tipo de preocupações sobre esse desdobramento. Novamente, é uma incógnita.
O governo apregoa a estabilidade social e eles têm razão para se preocupar, porque tumultuaram e emaranharam inúmeras questões sociais. Pode haver sérias preocupações sobre como as coisas se desenvolverão.