Resolver as questões da privacidade significa não apenas mais investimentos em segurança tecnológica, mas também a construção de um pacto ético e político por parte da sociedade
Até que ponto os dados de uma pessoa no mundo são públicos? Os sistemas de informação existentes são efetivamente seguros e protegem nossa privacidade? O uso do corpo como forma de segurança virtual é eficaz? Podemos usar dados genéticos de uma pessoa para obter avanços em pesquisas biomédicas? Essas e muitas outras questões acerca da segurança social, biológica, econômica e tecnológica foram abordadas por três especialistas em debate na Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) na quarta-feira (11/9), que teve como tema Privacidade, dados pessoais e dados corporais na sociedade da tecnologia da informação.
Primeira a se apresentar, a pesquisadora Ilara Hammerli Moraes, destacou quatro filmes (A rede, Gattaca, O jardineiro fiel e Minority Report) que abordam a questão da privacidade de formas diferenciadas, seja na vida pessoal, na manipulação genética, nos limites éticos entre a busca de avanços da ciência e tecnologia e nas possibilidades de fraudes de sistemas de segurança para incriminar uma pessoa. “O que está na internet, hoje em dia, é público”, alertou a pesquisadora. Segundo Ilara, há um contexto, determinado historicamente, de ameaças à privacidade e ao uso de dados pessoais e corporais na sociedade da tecnologia da informação que envolve questões de alta complexidade, tais como a sociedade capitalista global que vivemos, a não existência de mecanismo de segurança 100% garantidos, a desculpa da ‘guerra ao terror’ como forma de fiscalizar as pessoas, a subordinação de políticas públicas aos interesses da fração hegemônica do capital em sua reprodução, ou o incipiente debate político sobre esse tema na sociedade.
Ao abordar quais são os limites entre interesses da esfera pública e privada, Ilara ressaltou que, na dimensão pública, devem prevalecer os interesses da coletividade, do dever do Estado em garantir saúde universal, o que demanda mecanismos de gestão e o desenvolvimento de C&T em saúde cada vez mais complexos. Já na dimensão privada, deve prevalecer o direito do indivíduo de ter preservada sua privacidade e a confidencialidade dos dados sobre sua saúde; e o Estado tem a obrigação de garantir essa segurança por meio de políticas competentes de segurança da informação. E questiona: “Até onde vai o direito do Estado e da Ciência em conhecer e usar aspectos da vida íntima das pessoas em nome da coletividade e da defesa da segurança pública? E até onde vai o direito do cidadão em preservar sua privacidade?”.
Sobre as tecnologias da informação existentes para a preservação das informações de pacientes no campo da saúde, Ilara apresentou estudos que evidenciam, não apenas no Brasil, mas também em outros países, que as normas, regulamentos e mecanismos de segurança são fundamentais para a garantia da privacidade do indivíduo, mas esses, por si só, têm se mostrado insuficientes. Para a pesquisadora, resolver as questões da privacidade significa não apenas mais investimentos em segurança tecnológica, mas também a construção de um pacto ético e político por parte da sociedade.
A coordenadora do Núcleo de Inovação Tecnológica (NIT/Ensp), Carolina Mendes Franco, apresentou uma visão do uso nas novas tecnologias como forma de controle social e quebra de privacidade, questionando: “É possível falar de privacidade nesse mundo tecnológico de hoje, apesar de ela estar garantida em nossa Constituição?”. Segundo Carolina, o debate sobre a privacidade no Brasil está apenas começando, enquanto que, na Europa, ele teve início na década de 1970, tornando-se um dos itens da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Em seguida, Carolina falou sobre a utilização de tecnologias biométricas como forma de segurança virtual, resultado de uma atmosfera do medo que se vive atualmente e do uso do corpo como uma ‘senha’, seja por meio de digitais, íris, retina, geometria das mãos, traços faciais, voz, odores, veias. “As pessoas hoje passam a ser ‘senhas de acesso’ de si mesmas para provarem que são elas e acessar diferentes tipos de serviços, tudo pela identificação cada vez mais precisa, por conta das novas tecnologias”, disse.
Mesmo com toda essa segurança, a coordenadora do NIT/Ensp apresentou três exemplos de tecnologias que estão sendo utilizadas de formas questionáveis, servindo de banalização do corpo (dados biométricos) para segurança. São elas: brainfingerprinting, uma espécie de sondagem de ‘impressões cerebrais’ para verificar se um indivíduo participou de algum crime; o projeto Intenção Hostil, que analisa as faces das pessoas em determinados ambientes em busca de possíveis terroristas, por exemplo; e a inserção de chips com tecnologia Radio Frequency Identification Technology (RFID), que faz constante monitoramento pessoal, em qualquer lugar.
Último a se apresentar, o advogado e professor do Centro Universitário do Leste de Minas Gerais Diego Carvalho Machado trouxe o aspecto mais jurídico acerca do direito à privacidade e os dados genéticos de uma pessoa. Segundo explicou, dados genéticos são as informações relativas às características hereditárias dos indivíduos, destacando então a importância da Declaração Internacional sobre Dados Genéticos Humanos (DIDGH). O objetivo da declaração é garantir o respeito da dignidade humana e a proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais em matéria de recolhimento, tratamento, utilização e conservação de dados genéticos humanos, em conformidade com os imperativos de igualdade, justiça e solidariedade. Propõe-se, ainda, a definir os princípios que deverão orientar os estados na formulação das suas legislações e das suas políticas sobre essas matérias.
Conforme apresentado na DIDGH, as informações genéticas têm amplitude que ultrapassam o âmbito individual, uma vez que podem ser utilizadas como fontes de diagnóstico e cuidados de saúde ou de investigação médica e científica, como em casos de talassemia (doença hereditária autossômica recessiva que afeta o sangue) ou da doença de Tay-Sachs (mutação recessiva, presente apenas quando se herda genes mutados tanto da mãe como do pai) entre judeus ashkenazi. Outra forma da utilização de dados genéticos é a fonte de prova em procedimentos civis (investigação de paternidade/maternidade) e de investigações penais. “A tutela dos dados genéticos deve ter regime restritivo e não focado apenas no indivíduo. O consentimento para o tratamento dos dados genéticos deve ter regime consciente de seus limites. Os dados genéticos, ainda que anonimizados irreversivelmente, jamais deixarão de envolver elemento corporal do ser humano”, concluiu.
Esse conteúdo foi originalmente publicado no site da Agência Fiocruz de Notícias.