Foi aprovado recentemente na Câmara de Deputados o projeto de lei chamado Marco Civil da Internet. Uma das partes desse projeto prevê a tal neutralidade de rede.
Quatro artigos publicados neste site (aqui, aqui, aqui e aqui) ilustram os efeitos do problema da imposição da arquitetura de rede neutra na Internet.
Este artigo não tem o objetivo de debater a neutralidade de rede na Internet, mas sim o de apresentar alguns exemplos práticos de tratamentos não-neutros em outras indústrias organizadas em redes, os quais mostram como a diferenciação no tratamento — seja priorizando ou discriminando — possibilita soluções de mercado não apenas racionais, mas também úteis e corriqueiras.
Como todo e qualquer exemplo, não significa que a solução apresentada é exatamente idêntica à adoção da não-neutralidade de rede em se tratando da Internet. Exemplos, acima de tudo, servem para simplificar, explicar e ilustrar. Sendo redundante, exemplos servem para exemplificar.
Por meio desses exemplos, o intuito é mostrar como a adoção de gestão de redes que pratica a diferenciação de tráfegos é uma proposta que melhora a oferta do serviço, pois racionaliza o uso dessas redes de forma mais orientada aos tipos de perfis e de clientes distintos. Vamos a eles.
Rodovias
Primeiro exemplo: diferenciação da cobrança do pedágio por eixo ou por tamanho do veículo.
Essa é uma das formas de discriminação mais corriqueiras que existem. Nas inúmeras rodovias mundo afora transitam vários tipos de veículos de tamanhos distintos, com variados números de eixos, com diferentes quantidades de carga etc. Veja aqui um exemplo de pedágio em que as motocicletas são isentas de pagamento ao passo que veículos de passeio ou comerciais pagam uma tarifa.
Há algum defensor da neutralidade de rede que reclame de haver pedágio diferenciado por eixo do veículo ou por tamanho do veículo?
Segundo exemplo: velocidades máximas diferenciadas.
A velocidade máxima permitida para veículos é diferenciada dependendo da rodovia. Para veículos leves, a velocidade é uma, geralmente maior; para veículos pesados, é outra, geralmente menor.
É possível contra-argumentar dizendo que, sendo a velocidade máxima uma resolução dos governos, então esse não seria um exemplo factível de diferenciação feito pelo processo de mercado. No entanto, nesse caso específico, é importante enfatizar que o governo está atuando como gestor da estrada, limitando a velocidade de forma diferenciada. Em uma hipotética estrada 100% privada, é perfeitamente possível que seu proprietário também discrimine o tráfego utilizando o mesmo argumento utilizado pelo governo: a segurança.
Terceiro exemplo: veículos pesados na pista da direita.
Pela mesma razão da limitação de velocidade, os gestores de rodovias (entidades privadas ou governos) costumam impor às estradas que veículos mais pesados trafeguem na faixa da direita. Esse “modelo de gestão” traz mais segurança à rodovia, bem como ajuda a melhorar o tráfego. Trata-se de mais uma solução de diferenciação (não-neutralidade) absolutamente usual, corriqueira e plenamente aceita.
Telefonia
Quarto exemplo: desconto tarifário por horário.
Existe diferenciação da tarifa cobrada por ligações telefônicas dependendo do horário e do dia em que se liga. Essa é uma das formas de discriminação mais comuns do setor de telecomunicação, e é praticada há décadas. A mesma ligação, com a mesma origem e tendo o mesmo destino irá variar de preço dependendo do dia ou da hora.
Trata-se de uma solução para gerenciar o tráfego na rede. Os defensores da neutralidade poderiam dizer: “mas a diferenciação de horário não fere a neutralidade, pois todos seriam obrigados a pagar a mesma tarifa no mesmo horário”. Certo. No entanto, faça uma pequena pesquisa sobre a quantidade existente de planos de oferta de serviços de telefonia móvel. Há uma grande variedade de planos, das mais diferentes formas e preços distintos.
Ou seja, pessoas diferentes pagam preços distintos pelo mesmo serviço, até mesmo na mesma operadora de telefonia. Tudo vai depender de qual plano o cliente está contratando. E isso é bom. Variedade sempre é algo bom, pois ela faz com que as empresas busquem ofertar planos que melhor se adequam à necessidade de cada cliente. E dado que existem milhões de consumidores, há naturalmente inúmeras e variadas quantidades de necessidades de comunicação. Portanto, há uma necessidade de customização de planos.
Nesse exemplo em específico, há uma importância adicional. Os preços diferenciados no horário de pico refletem o nível de escassez da rede de telecomunicações e geram incentivos para se utilizar o serviço fora do horário de pico. Isso “desafoga” o tráfego, trazendo mais qualidade para o serviço como um todo.
Agora, imagine as necessidades de “navegação” de cada um na Internet. É seguro dizer que o perfil de consumo de serviços de telefonia de cada pessoa é único. E se o perfil de serviços de telefonia é único para cada pessoa no mundo, então o perfil de “navegação” na Internet também será único para cada pessoa no planeta. O tráfego na Internet é inúmeras vezes mais complexo do que o tráfego em todas as redes de telefonia do mundo.
Logo, é de se estranhar que, na rede de telefonia, a “não-neutralidade” seja aceitável, corriqueira e incentivada por meio de pacotes de serviços distintos, ao passo que, na internet, ela está sendo imposta.
Quinto exemplo: tarifa off-net, on-net.
Esse talvez seja o exemplo que melhor se aproxima da problemática da neutralidade de rede. No caso em questão, existe uma diferenciação da tarifa cobrada quando a ligação ocorre entre clientes da mesma operadora (tarifa on-net, mais barata) e quando ocorre entre clientes de operadoras distintas (off-net, mais cara). As operadoras de telefonia costumam buscar maneiras de incentivar seus clientes a utilizar os serviços da sua própria rede. Assim, as teles costumam fazer promoções ou oferecer descontos para clientes que fazem ligações na própria rede da prestadora.
É curioso que esse tipo de comportamento de uma tele seja aceitável, seja quando ela diferencia o preço de uma ligação pelo seu “conteúdo”, seja quando ela diferencia em termos de onde a ligação se origina e termina.
No entanto, para aqueles que advogam a neutralidade de rede na Internet, tal comportamento praticado em um ambiente bem mais complexo tem de ser terminantemente proibido.
Os defensores da neutralidade para a internet dizem que as teles utilizariam seu poder de mercado para favorecer determinados conteúdos e prejudicar outros, dependendo do interesse. E isso, em tese, favoreceria os grandes “players” do mercado em detrimento de pequenos ou de possíveis entrantes, ou do usuário comum.
Em uma tentativa de caricaturar o problema, o deputado Alessandro Molon (PT-RJ) argumenta que as “redes-sociais e jogos on-line seriam exclusividade de pacotes superiores”. Nada mais desconexo da realidade do que isso. Algumas empresas de telecomunicações no Brasil oferecem acesso a algumas redes sociais sem cobrar pelo acesso a elas. Ou seja, há na realidade uma facilitação ao acesso às redes sociais, e não um encarecimento.
Já outros argumentam que essa diferenciação positiva de determinados conteúdos impediria o surgimento ou o desenvolvimento de novos ou pequenos provedores de conteúdo, ou de novas soluções tecnológicas, para concorrer com os grandes atuantes do mercado de hoje (Ex: YouTube, Facebook, Netflix etc.). Ou então que prejudicaria os pequenos em detrimento de provedores de conteúdo que fossem do interesse da empresa de rede.
Em primeiro lugar, há que se argumentar que todos os grandes provedores atuais surgiram praticamente do zero dentro do ambiente atual da Internet, que é justamente um ambiente de não-neutralidade (de não imposição da neutralidade de rede). Não há caso registrado de um pequeno provedor de conteúdo que tenha sido impedido de crescer na Internet em decorrência de discriminação de alguma provedora de rede. Já as evidências contrárias são fartas. São inúmeros os sites que saíram do nada e prosperaram porque ofereceram serviços valiosos aos seus clientes. É não precisaram de Marco Civil para isso.
Em segundo lugar, os que argumentam o contrário se esquecem de um fator extremamente importante: o consumidor. Se um determinado aplicativo, provedor de conteúdo, site ou rede social iniciar sua oferta de serviços na Internet e possuir atributos que um grande número de consumidores valorize — de maneira que justifique a sua migração de um concorrente para outro —, então esse novo provedor irá se estabelecer sobre o atual. Tal mobilidade é especialmente acentuada na Internet, onde as coisas costumam ocorrer com a mesma velocidade de uma difusão epidêmica. Vide o próprio termo “viral” e vide os diversos aplicativos e redes sociais que nasceram e foram completamente obliterados por outros (por exemplo, Orkut e Facebook).
Correios
Sexto exemplo: Sedex versus PAC.
Qualquer pessoa que vá a uma agência postal sabe que a mesma encomenda, o mesmo objeto, o mesmo pacote postado no mesmo endereço de origem e tendo o mesmo destino pode ser entregue mais rapidamente ou mais lentamente. No caso brasileiro, há os serviços de Sedex e PAC, entre outros. Ou seja, o consumidor vai à agência postal e escolhe se deseja Sedex ou PAC.
Cabe fazer uma importante ressalva nesse caso: empresas de correios em geral, no Brasil em particular, não são organizadas por estruturas que emergiram do processo de mercado. No caso brasileiro, a ECT é um monopólio estatal. Ou seja, trata-se de um arranjo completamente contrário ao de mercado.
Pois bem. Se no caso do pacote físico, mesmo havendo uma empresa que atua como monopolista estatal, nos é permitido usar a própria logística da companhia para diferenciar o tratamento que queremos nas postagens dos pacotes, por que tal liberdade não deveria ser permitida nos pacotes virtuais? Se a rede dos correios fosse “neutra”, todos os pacotes físicos, independentemente de tamanho e peso, teriam de ter o mesmo tratamento.
Em um ambiente livre e de ampla competição, um cliente da empresa poderia fazer um determinado contrato com os Correios e sempre enviar pacotes por Sedex; já outro poderia fazer outro tipo de contrato e sempre enviar via PAC. Atualmente, é até possível: basta a pessoa, quando for à agência, sempre escolher o mesmo serviço. Já no caso da Internet, aqueles que desejam a lei do Marco Civil querem o “tratamento de Sedex” universal para todos; no entanto, elas irão conseguir, no máximo, o “tratamento de PAC”. Não haverá opção de escolher se você deseja postar (ou receber a postagem) ora em uma velocidade, ora em outra.
Esse exemplo é extremamente emblemático. Até uma empresa monopolista e estatal adota práticas que se configuram como “não-neutras”. A empresa busca claramente desenvolver soluções de logística mais adequadas. Portanto, até o próprio governo (dono da empresa) é capaz de entender que a diferenciação é uma proposta de solução que irá racionalizar a oferta do serviço. No entanto, e curiosamente, o outro braço estatal (o braço legislador) deseja impor a neutralidade na prestação da Internet. E impor essa arquitetura em redes de telecomunicações que não são propriedade do governo. A contradição é clara.
Energia elétrica
Sétimo exemplo: preço diferenciado por consumo de energia elétrica.
Nesse caso, a discriminação de preço ocorre a partir de uma determinada quantidade consumida. Até porque, dado que a energia é a mesma, não seria possível diferenciar kw/h pelo seu conteúdo. Há nesse caso uma forma de discriminação semelhante ao exemplo de pedágios por eixo ou por tamanho dos veículos.
Detalhe importante: esse arranjo é estipulado pelo governo por meio da ANEEL, o que mostra exatamente a mesma contradição do exemplo dos Correios. Ou seja, o governo pratica a discriminação na energia elétrica, mas quer o “socialismo branco” na Internet.
De resto, o mesmo argumento se aplica: esse arranjo contratual específico no ramo da energia elétrica não apenas não é questionado, como também é corriqueiramente aceito.
Companhias aéreas
Oitavo exemplo: preços diferenciados em tarifas.
Uma prática muito comum das companhias aéreas é a diferenciação do preço de suas tarifas, muitas vezes no mesmo voo, dependendo do perfil do passageiro que irá viajar. Como não é possível diferenciar a velocidade da aeronave para cada passageiro, outras formas de diferenciação são criadas. As empresas aéreas buscam variar ofertas para se adequar ao perfil das pessoas (veja exemplos práticos aqui e aqui).
Se esse setor fosse completamente neutro, não seria possível essa diferenciação de tarifas. Todos teriam de pagar o mesmo preço pelo mesmo voo.
Ademais, no caso de tarifas das companhias aéreas, há inúmeras outras formas de diferenciação na cobrança. Exemplos: programas de milhagem distintos por cliente e cobrança de tarifas mais caras na alta temporada (caso similar ao da cobrança da tarifa telefônica por horário).
Esse é apenas mais um caso de uma “não-neutralidade” genérica que sequer é questionada. Agora, imagine o caos no setor aéreo se o ambiente de neutralidade fosse imposto.
Conclusão
Há pelo menos oito exemplos de diferenciação por diversos tipos de atributos na prestação de um serviço: tamanho, origem e destino, horário, quantidade, velocidade etc.
Todas essas diferenciações não são questionadas, seja em sua legitimidade, seja em sua racionalidade econômica. São aceitas, corriqueiras e algumas até são praticadas pelos governos. Todas são formas não-neutras de gerir as redes.
É importante enfatizar que essas soluções não-neutras são encontradas em diversos tipos de serviço em ramos distintos da economia: transportes terrestres, Correios, energia elétrica, transportes aéreos, telecomunicações etc. Exatamente por isso, soluções não-neutras para redes são em geral arquiteturas muito boas. Elas permitem que o sistema de preços sinalize a escassez, a atratividade para novos negócios, o levantamento de fundos para a ampliação dos serviços, e os incentivos a inovação e otimização. Em suma, permite que o processo de mercado flua suavemente.
Conexão à Internet é um serviço em rede como qualquer outro, e, como tal, existem infinitas maneiras de ele ser ofertado e customizado. Quando o governo impõe uma determinada forma de gerenciamento da rede, na qual o tratamento de qualquer pacote de dados é padronizada, a capacidade de adequar o serviço ao consumidor fica, no mínimo, seriamente comprometida.
Assim, o pior aspecto da imposição da neutralidade de rede não é a pretensão de saber se a arquitetura de rede neutra é o melhor para usuário (o que, por si só, já é algo ruim); o pior é o fato de se abolir a infinidade de formas de ser da Internet, as quais serão proibidas em detrimento da escolha de uma única.
Os defensores da neutralidade de rede concluem que a imposição dessa arquitetura (e apenas essa) é única forma de defender o interesse dos internautas. O ponto crucial é que é impossível saber qual é a melhor arquitetura de rede, de modo que, exatamente por isso, impor o tratamento dos pacotes de dados de forma igualitária não parece uma ideia boa. É a manifestação própria da arrogância da pretensão do conhecimento, para a qual já alertava Hayek.
Pedro Borges Griese possui mestrado em economia e colabora regularmente com o Instituto Carl Menger, de Brasília.