EUA ainda paga pensões a dezenas de criminosos nazistas

23/10/2014 07:00 Atualizado: 22/10/2014 21:26

O acordo era simples: se os suspeitos criminosos do regime nazista que fugiram para os Estados Unidos quanto terminou a Segunda Guerra Mundial aceitassem abandonar o país, o governo norte-americano garantiria o pagamento de benefícios de segurança social a cada um deles até à data da sua morte. Mais de 60, incluindo antigos seguranças dos campos de concentração, onde milhões de pessoas foram mortas nas mãos do regime de Adolf Hitler, integram a lista. Desses, pelo menos quatro ainda estão vivos e continuam hoje recebendo o dinheiro prometido pelas sucessivas administrações americanas, retirado das contribuições dos cidadãos do país.

Foram lacunas legais que permitiram ao Departamento de Justiça forçar os suspeitos a abandonar o país em troca destes pagamentos, apurou a Associated Press (AP) numa investigação levada a cabo nos últimos meses. Se cada um deles, nenhum condenado até hoje por crimes de guerra, aceitasse partir dos EUA antes da audiência de deportação, o governo lhes garantiria a manutenção dos benefícios de segurança social, evitando tornar públicos os dados sobre os suspeitos e os acordos, segundo dados apurados pela AP em entrevistas e registos internos da administração americana.

Pelo menos quatro suspeitos recebem ainda hoje estes pagamentos, entre eles Jakob Denzinger, chefe de segurança do campo de Auschwitz, que se mudou do estado do Arizona para Berlim em 2007, e Martin Hartmann, ex-guarda das SS, que aceitou trocar o Ohio pela Alemanha em 1989 e hoje vive na Croácia.

Ao divulgar os resultados da investigação no domingo, a AP publicou uma lista de oito nomes dos suspeitos criminosos que ainda estão recebendo dinheiro dos contribuintes norte-americanos. Além de Denzinger e Hartmann, estão Martin Bartesch, guarda do campo de concentração de Mauthausen, na Áustria, que trabalhava como empregado de limpeza quando as autoridades americanas descobriram o seu passado; Arthur Rudolph, suspeito dos crimes de escravização e trabalhos forçados numa fábrica nazista de produção de morteiros; John Avdzej, autarca na Bielorrússia ocupada, que declarou ser agricultor quando emigrou para os Estados Unidos; Wasyl Lytwyn, de uma unidade das SS destacada no gueto de Varsóvia, que trabalhava como despachante em Chicago, no Illinois, quando admitiu que escondeu a sua passagem pelas SS; e Peter Müller, outro antigo guarda das SS que chegou aos EUA em 1956 e que vivia no mesmo estado antes de aceitar mudar-se para a Alemanha. Neste momento não se sabe ao certo o paradeiro da maioria deles.

Ultraje

As primeiras reações oficiais à investigação da AP não tardaram: assim que o artigo foi publicado, no domingo, o porta-voz do Departamento de Justiça (DJ) norte-americano relembrou que nos últimos anos esse organismo do governo norte-americano “perseguiu agressivamente criminosos de guerra nazistas e conseguiu levar mais de 100 à justiça”. Ainda assim, assumiu Eric Schultz, “a posição [do DJ] é que estes indivíduos não deveriam continuar recebendo estes benefícios” e que vai trabalhar com “a administração de Segurança Social dentro dos limites da atual lei para cortar os pagamentos aos criminosos, que não deveriam recebê-los”.

Como apurado pela AP, é a atual lei que permite que os suspeitos nazistas continuem recebendo dinheiro norte-americano nos países onde se estabeleceram. Há neste momento pelo menos 38 de 66 suspeitos investigados que ainda recebem estes benefícios, apesar de não ter sido possível à agência apurar se todos continuam vivos e onde residem.

Por causa dessas lacunas legais, uma congressista democrata já exigiu à administração Obama que investigue os pagamentos feitos nos últimos anos e faça emendas à lei que permitam suspendê-los. “É absolutamente ultrajante que os criminosos de guerra nazistas continuem ganhando benefícios de Segurança Social quando tal já deveria ter sido declarado ilegal há muitos, muitos anos”, declarou Carolyn Maloney na Câmara dos Representantes. Este “uso indevido dos dólares dos contribuintes”, sublinhou a representante do estado de Nova Iorque, que integra o Comitê de Reformas da administração, tem de ser investigado através de inquéritos aos organismos envolvidos.

As cartas que Maloney já enviou aos departamentos ainda não obtiveram resposta: o DJ diz que já está analisando o pedido, ao contrário da administração de Segurança Social, que não só ainda não reagiu à exigência como recusou os pedidos de esclarecimento da AP ao longo da investigação, entre eles informações sobre o número de suspeitos nazistas que receberam benefícios nas últimas décadas e o total descontado dos impostos dos contribuintes para manter o compromisso secreto.

A Associated Press chegou a recorrer ao Freedom of Information Act, que permite a jornalistas e investigadores forçar a publicação de dados com estatuto secreto dos organismos oficiais dos EUA, para obrigar a Segurança Social a divulgar as informações. No recurso interposto são manifestadas “várias preocupações” quanto à forma como o pedido foi gerido, “não só para minar a investigação da AP como para poupar a Segurança Social de ter de divulgar informações embaraçosas”, lê-se no documento oficial de recurso, de 16 de outubro.

Ontem, em reação às denúncias, o porta-voz da Segurança Social, William Jarrett, disse apenas que a agência “não rastreia em específico dados relativos a suspeitos nazistas”. Dos que ainda estão vivos e que recebem benefícios dos EUA, e cujo paradeiro foi comprovado na investigação, nenhum quis falar à AP. O filho de Denzinger, pelo contrário, que vive nos EUA, confirmou à agência que o pai vive na Croácia, ainda recebe pagamentos da administração norte-americana, e “merece recebê-los”.

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