Estado Islâmico: oposição ao projeto do califado aumenta

01/09/2014 09:50 Atualizado: 01/09/2014 09:50

Mark Twain disse que a história não se repete, mas rima. No Oriente Médio, as rimas são debitadas todos os dias ao ritmo das balas. No dia 29 de junho de 2014, uma gravação que circulou na internet surgiu como um eco de outros tempos. Os radicais do Estado Islâmico (EI, anteriormente designado como Estado Islâmico do Iraque e do Levante) anunciavam a instauração de um califado e a consagração de um novo líder – Abu Bakr al-Baghdadi. A última vez que o mundo ouviu alguém ser anunciado como califa foi em 1922, com a entronização de Abdüllmecid II, o derradeiro príncipe da dinastia otomana.

Mas de que fala o Estado Islâmico quando fala em califado? O termo designa uma entidade política – um Estado – que reúne sob a sua bandeira e autoridade todos os muçulmanos. O seu dirigente, o califa, é simultaneamente o líder político e religioso supremo de todos os seguidores do Islã. Hoje, o conceito parece utópico, mas a história conta vários califados. Paradoxalmente, muitos destes ao mesmo tempo.

O primeiro califado remonta à fundação do Islã. A sucessão ao profeta Maomé, falecido em 632, colocou pela primeira vez em questão a liderança dos seguidores da nova fé. Abu Bakr, sogro de Maomé, Umar, Uthman e Ali foram, sucessivamente, os quatro primeiros líderes do califado Rashidun, segundo a tradição sunita. De acordo com os xiitas, foi Ali e não Abu Bakr o escolhido por Maomé para seu sucessor. Os primeiros defendiam a eleição do líder máximo, numa experiência quase democrática. Os segundos acreditavam que este só poderia ser designado quase que por intervenção divina. É esta a origem do grande cisma – mais político que teológico – do Islã.

Ao longo dos tempos, e fruto da tênue fronteira entre fé e política, a obtenção do título de califa sempre foi objeto de intensos conflitos. No século X, já depois do império omíada ter abrangido a Península Ibérica, tanto o império fatímida do Cairo, xiita, como o império abássida, com capital em Bagdá e de tendência sunita, eram designados como califados. Como também era Córdova. Após a queda dos abássidas no século XIII, o título de califa foi reclamado pelo líder dos mamelucos egípcios, que por sua vez foram derrotados pelos otomanos em 1517. E, por essa altura, já outro império muçulmano reivindicava o estatuto de califado – o mogol (não confundir com mongol), que abrangia todo o subcontinente indiano e parte da Pérsia.

Os otomanos enfrentaram ainda, à distância e de forma indireta, a rivalidade de outro autoproclamado califado, porventura o mais exótico – o de Sokoto, no norte da Nigéria, durante todo o século XIX até à conquista pelos britânicos. Mas foi mesmo o império com sede em Constantinopla aquele cujo título de califado teve uma aceitação mais universal. A autoridade dos califas otomanos estendia-se para lá das já extensas fronteiras do império, com longínquos sultanatos indonésios declarando fidelidade e até a Rússia czarista lhe reconhecia um estatuto quase soberano sobre as populações muçulmanas dentro do seu território.

A era dos califados chegou ao fim nos anos 20. O império otomano é dissolvido pelo líder nacionalista turco Mustafa Kemal Ataturk, que instaura a atual república secular em 1922, e o Islã não voltou a ter um califa universalmente reconhecido desde 3 de março de 1924. Nesse dia, Abdulmecid II foi notificado da abolição do califado pelo parlamento de Ancara e partiu para o exílio na França, onde morreu em 1944.

À exceção de líderes de movimentos considerados heréticos pelo Islã tradicional, como a Comunidade Ahmadi do Paquistão, ninguém tinha tido a ousadia de reclamar o título de líder máximo dos muçulmanos. Nem mesmo Osama bin Laden, fundador da al-Qaeda, ou o mullah Omar, líder dos talibãs afegãos, foram mais além que meramente sugerir as suas ambições universalizantes. No entanto, o restabelecimento de um califado é um objetivo declarado de várias organizações civis como o Hizb ut-Tharir, ou Partido da Libertação, um movimento pan-islâmico com um milhão de afiliados em todo o mundo, inclusive na Europa.

Califa com cabeça a prêmio

Ao contrário de Abdulmecid II, um francófilo homem das letras que terminou a sua vida no luxo da Riviera, Abu Bakr al-Baghdadi é um califa delinquente. A história do iraquiano de cerca de 42 anos (a data exata do seu nascimento não é conhecida) confunde-se com a do movimento que agora domina as primeiras páginas – e sobretudo as redes sociais – com imagens de cabeças cortadas, apedrejamentos e fuzilamentos em massa. Durante a ocupação norte-americana do Iraque, ajuda a fundar o Conselho da Shura dos Mujahedin, um órgão que agregava diversos grupos sunitas sob os auspícios da al-Qaeda. A filial iraquiana da rede de Osama Bin Laden mudaria de nome para Estado Islâmico do Iraque (EII) em 2006, altura em que al-Baghdadi ficou detido numa base norte-americana no Qatar. Em 2010, já após a retirada das tropas de Barack Obama, al-Baghdadi sobe à liderança da organização.

Síria, março de 2011. Abre-se o capítulo mais sangrento da Primavera Árabe. Tanto na capital do regime de Bashar al–Assad, Damasco, como em Deraa e Homs, bastiões da oposição, religiosos e seculares saem às ruas. Uns pedem democracia, outros a teocracia. O apoio à revolução chega de todos os lados. Enquanto o Ocidente manifesta simpatia pela oposição jovem, urbana e moderada, as potências sunitas do Golfo – Arábia Saudita, Qatar e Emirados – financiam movimentos armados que iniciam o combate ao exército sírio, predominantemente alauita, xiita. Al-Baghdadi também constitui o seu movimento na Síria, a frente al-Nusra, mas uma disputa com a al-Qaeda de Ayman al-Zawahiri pelo controle da filial dita a cisão do bloco terrorista. Nasce então o Estado Islâmico do Iraque e do Levante, mais tarde renomeado Estado Islâmico (EI), que bate os rivais numa corrida pelo terror absoluto.

As atrocidades do EI não são cometidas de forma inteiramente gratuita. Devidamente filmadas, fotografadas e divulgadas na internet por uma sofisticada unidade de propaganda – o recente vídeo da decapitação de James Foley denota uma produção cuidada, com duas câmeras, boa captação de som e montagem eficiente de planos e excertos de notícias – visam aterrorizar os inimigos e atrair jovens jihadistas de todo o mundo. A estratégia é um sucesso. Depois de ter varrido um terço da Síria, sobretudo ao norte, onde foi estabelecida a capital Raqqa, o EI tomou boa parte do Iraque em poucas semanas, no início do verão, apagando a fronteira entre os dois países.

Apesar de bem treinadas e equipadas pelos Estados Unidos, as forças iraquianas fugiram ao avanço dos radicais, que não costumam fazer muitos prisioneiros. Para trás, deixaram armamento sofisticado, tanques blindados e jipes Hummer que agora servem o EI nas duas frentes, no Iraque e na Síria, onde diariamente chegam jovens chechenos, magrebinos, paquistaneses, britânicos e franceses, entre outros, para quem a proclamação do califado é um derradeiro ato de propaganda, um irresistível apelo ao alistamento.

Tal como peças de propaganda, quase sempre de autoria duvidosa, os mapas que circulam pela internet e que dão conta dos supostos objetivos territoriais do califado – uma mancha negra do Oriente Médio à Península Ibérica, do Golfo da Guiné às portas de Viena, do Mar Cáspio ao sudeste asiático, numa espécie de soma de todos os califados e territórios de influência islâmica. De resto, o califado de al-Baghdadi conta já, desde a semana passada, com um rival ao trono de líder de todos os muçulmanos. A África.

Abubakar Shekau, líder do movimento extremista Boko Haram, declarou-se califa após a tomada de Gwoza, cidade nigeriana e um importante centro islâmico do Sahel. A proclamação não tem merecido grande atenção, quer da internacional extremista, quer dos seus inimigos, sendo considerada pelas autoridades nigerianas como um golpe publicitário. Shekau, afirmam os observadores, estaria pegando carona na onda midiática do EI, com o qual o Boko Haram não tem relação direta.

O Boko Haram, no entanto, representa uma grave ameaça por si só. Independentemente da designação utilizada, o movimento associado à al-Qaeda luta pelo estabelecimento de um território sob uma interpretação radical da lei islâmica no Norte da Nigéria. Desde 2009, ano que marcou a militarização definitiva de um grupo constituído em 2002 que tinha até então uma expressão meramente política e social, os radicais vitimaram cerca de dez mil pessoas naquele país e também nos Camarões, no Níger e no Chade. Em abril, os terroristas raptaram um grupo de mais de 200 meninas em idade escolar. A maioria permanece até hoje com paradeiro ignorado, sob a ameaça de violação, conversão forçada ao Islã e venda como escravas. O combate à educação ocidental é precisamente um dos principais objetivos do movimento de Shekau, que no entanto não conta com os meios financeiros e militares de que o EI dispõe.

O radicalismo de al-Baghdadi, que defende a aplicação de uma interpretação extrema da lei islâmica nos territórios conquistados, tem como principal alvo os “infiéis” e os “apóstatas”, as minorias religiosas e étnicas – xiitas, curdos, cristãos, turcomenos, iazidis, armênios e as demais comunidades que compunham a colcha de retalhos síria e iraquiana antes do ruir dos respectivos castelos de cartas autoritários. É sectário, pró-sunita, e terá por isso o efeito de congregar, ainda que apenas circunstancialmente, inimigos históricos como curdos e iraquianos de Bagdá, iranianos e sauditas, sírios e norte-americanos.

Nunca um pretenso califa terá enfrentado tamanha oposição, tanto de não-muçulmanos como dos seguidores de Maomé. Com uma intervenção militar internacional cada vez mais próxima, a restauração do califado não deverá passar de um sonho adiado. Mais reais são as consequências da aventura – massacres, alistamento forçado de crianças, tortura de prisioneiros e outros crimes de guerra que as Nações Unidas anunciaram esta semana querer ver julgados por um tribunal internacional. Como real é a ameaça sobre as 12 milhões de pessoas que vivem nos cerca de 90 milquilômetros quadrados sob a autoridade de al-Baghdadi.

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Editado pelo Epoch Times

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