Diferentemente da educação do passado, a escola contemporânea precisa articular diversos espaços para garantir a aprendizagem de seus alunos. Além de expandir o potencial criativo de crianças e jovens e criar laços com as famílias, as instituições de ensino do século 21 têm a tarefa de abrir suas portas e estabelecer parcerias e vínculos com as comunidades onde estão inseridas. Ou seja, a criança que entra na escola hoje não pode encontrar a mesma estrutura pedagógica de quando estudaram seus avós.
Esses são os desafios que Maria do Pilar Lacerda, diretora da Fundação SM e ex-secretária de Educação Básica do Ministério da Educação (MEC), cargo que exerceu entre 2007 e 2012, enxerga para o futuro da educação brasileira. Pilar participou da formulação do programa Escola Integrada, para o ensino fundamental de Belo Horizonte, que desde 2006 estende as oportunidades de aprendizagem para além da sala de aula, apropriando-se dos equipamentos urbanos disponíveis e aproveitando o potencial educativo existente no entorno das escolas.
Ela afirma que, durante a formulação do programa, foram necessárias conversas com diferentes setores da sociedade para estabelecer quais eram os consensos em torno da proposta. Em diálogo com outras secretarias, decidiu-se pela ampliação do tempo na escola, a criação de um professor comunitário e aproximação de empresas de transporte e obras com a escola. “Também havia dissensos, que eram sobre a participação de estagiários e de agentes comunitários. Havia resistência do sindicato dos professores, que era contrário a ter outros profissionais que não fossem docentes. Isso foi resolvido com muito diálogo”, declara Pilar.
Em entrevista, Pilar falou sobre a importância de termos uma educação integral – que vá além do aumento da jornada escolar. “O que nos inspira e provoca mais debates é pensar em uma educação integral mais contemporânea, com cheiro de século 21, que articule diversos espaços possíveis para efetuar a aprendizagem.”
Qual a importância de defender a agenda da educação integral num país como o Brasil?
Essa agenda é necessária pelo direito das crianças e dos jovens por uma educação integral, não no sentido de tempo integral, mas de todas as possibilidades e potenciais que essas crianças têm para serem desenvolvidos. A jornada escolar no Brasil é muito pequena, quatro horas diárias que se tornam duas horas e meia, e os estudantes têm menos oportunidades de aprendizagem. Porém, aumentar a jornada escolar não significa aumentar o tempo de permanência dentro da sala de aula. Quando debatemos a educação integral e ampliamos essa discussão, estamos pensando numa escola mais contemporânea, que dialogue mais com seu entorno, que enxergue o território onde está inserida e saiba se relacionar com ele. Quando pensamos na universalização do acesso [à educação], temos que pensar também em que tipo de escola a gente quer oferecer.
Em que ponto está o debate em torno da concepção de educação integral no Brasil? Onde chegamos e o que ainda falta construir?
Primeiramente, há uma concepção clássica que é a escola em tempo integral, que seria como duplicar a escola que temos hoje, somente aumentando o tempo de permanência do aluno dentro dela. Contudo, o que nos inspira e provoca mais debates é pensar em uma educação integral mais contemporânea, com cheiro de século 21, que articule diversos espaços possíveis para efetuar a aprendizagem.
Quando a gente fala da educação integral para essas crianças e jovens, pensamos numa organização de tempos e espaços diferentes, na expansão do potencial criativo que essas crianças e jovens têm. Educação integral não significa reproduzir a educação tradicional que nós temos hoje, mas produzir algo diferente, inovador, no sentido de dialogar com a cidade. As crianças têm o direito de aprender, mas não têm a obrigação de ter a mesma educação que foi dada a seus avós.
Qual a importância do acompanhamento e apoio direto às escolas na implementação do programa de educação integral?
Antes de tudo, não acredito num modelo único de educação integral – mesmo que seja o modelo dos meus sonhos. Você constrói a ideia teórica e as escolas, junto aos profissionais, a partir da sua cultura, da sua história, vão construir seus projetos pedagógicos. Primeiramente, é preciso ser feito um acompanhamento de como essas escolas formarão seus professores. Mas a intenção não é de chegar com o projeto pronto, e sim perguntar à escola qual formação precisam os seus docentes.
Qual o papel do monitoramento e avaliação das escolas na educação integral? Como mensurar o impacto de programas de educação integral?
Primeiro, com dois dados muito claros: absenteísmo de professores e alunos. Escolas com projetos pedagógicos consistentes têm um índice de falta muito pequeno. É uma coisa que pode ser imediatamente medida. Segundo, pela transformação e aprendizagem das crianças. Essa não é uma medida que se faça só pontualmente, as avaliações externas ajudam mas são muito baseadas em portfólio. A avaliação precisa acompanhar a criança no seu dia a dia, ser processual e comparar a criança com ela mesma.
Mas sem dúvida a gente tem que utilizar as avaliações externas. Elas têm um balizamento interessante em relação ao português, matemática e índices de evasão. Eu recomendo fortemente que haja uma junção entre elas – no sentido de trançar a avaliação da escola com índices e avaliações externas, que sejam apropriados pela escola. Não adianta você ter avaliação externa se a escola não acompanha, não entende e não reflete sobre ela.
Qual o papel do gestor na articulação de programas de Educação Integral?
O gestor deve conhecer profundamente a comunidade onde a escola está inserida. Ele tem que estudar a respeito e precisa ter uma base teórica muito consistente. Ele também tem que ser uma liderança para professores, alunos e comunidade escolar. Em relação ao gestor do sistema – municipal ou estadual – ele precisa ter sensibilidade para saber que as demandas concretas são diferentes quando se fala de educação integral. Eu lembro que quando era secretária de Belo Horizonte, as escolas pediam câmeras fotográficas, sacolas pras crianças carregarem tintas, papéis de desenho, colete para elas serem identificadas na rua. É um tipo de material que a gente não tinha o costume de comprar, passamos a lidar com um pedido diferente – e é muito importante que a escola seja respeitada.
Não significa que nós vamos sair comprando tudo o que a escola pedir, mas significa que a gente deve escutar a escola com mais sensibilidade nessa hora. E que a escola tenha também autonomia financeira. Ela não pode trocar 40 ofícios com a Secretaria de Educação para contratar um ônibus que leve as crianças ao museu. Se ela tem recurso próprio, faz isso com mais agilidade. Pode também comprar uma sessão de cinema com preço diferenciado, providenciar material para pintura dos muros da escola. É fundamental que a escola tenha autonomia financeira para financiar a execução desse projeto pedagógico.
Como formar educadores na perspectiva da Educação Integral? Existem programas específicos nesse sentido?
Estão começando a surgir, e alguns são muito interessantes. A Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) desenvolveu um programa nesse sentido para a prefeitura, algumas fundações começam a desenvolver e as universidades abriram esse debate. Eu repito, não estamos falando da escola em tempo integral, mas sim de uma educação integral que pressupõe muito mais trabalho, mais investimento e soluções muito diferentes daquelas clássicas. Uma figura fundamental nesses projetos é o professor comunitário. Ele identifica os espaços, conhece as pessoas que se envolvem em projetos diferentes, interessantes e alternativos. Ou seja, ele tem que identificar, escrever e contatar a comunidade para apresentar o projeto da escola e prepará-la para uma escola que sairá do seu muro. Pode parecer fácil, mas é dificílimo.
Como articular a implantação da educação integral entre diferentes setores da sociedade, como saúde e cultura?
Esse projeto de educação integral é interdisciplinar e intersetorial. As experiências que eu tenho visto são boas quando não é a Secretaria de Educação ou de Planejamento que coordenam – que consigam colocar todo mundo em volta de uma mesa para apresentar o projeto. Quando é uma cidade grande, precisa designar os responsáveis de transporte, saúde e cultura que participará desse grupo, que vai ter demandas muito diferenciadas.
Por exemplo, a escola na qual os alunos têm que atravessar duas ruas para chegar ao parque do bairro. Ela tem que pintar a faixa de pedestre, mudar o ponto de ônibus. Isso é feito em uma conversa da diretora com o responsável pelo setor de transportes. Não é uma coisa que seja espontânea – isso eu aprendi fazendo. É um projeto muito flexível, mas não significa que ele pode ser improvisado. Ele tem que ter seus objetivos, tem que mostrar o que as crianças vão aprender e desenvolver em cada uma das atividades. Algumas pessoas não gostam quando eu falo isso, mas educação integral não é um passeio em tempo integral. Ela tem muito a ver com a formação e o conhecimento, e isso tem que estar explícito no projeto.
Como a senhora avalia os programas de educação integral já existentes no Brasil? Quais são seus principais resultados?
Eu gosto, porque eles apontam caminhos novos. O Mais Educação, do governo federal, absorveu muitas experiências locais e tem tentado fazer isso em nível nacional. Acho clássico e conservador a escola em tempo integral que apenas dobra o número de aulas – ao invés de quatro aulas diárias, ela tem oito. Mas em alguns lugares elas acontecem e têm resultados interessantes. Temos que ter o espírito curioso e pesquisador para conhecer essas experiências e entender que a gente não pode ter um só modelo. E ao fazer nossa opção, ela tem que ser implementada com muita seriedade.
Como realizar um mapeamento dos estudantes que aproxime a comunidade e a família ao dia a dia das escolas?
A escola tem que ter as portas abertas. Deixar os pais esperando uma hora no portão para conversar com as diretoras já gera um distanciamento. A escola é pública, é da comunidade. Há uma escola no Rio de Janeiro que, nos primeiros dias de aula, os pais são apresentados para a escola: percorrem seu espaço, conhecem as salas de aula de seus filhos, o lugar da merenda, a sala dos professores – todos os docentes se apresentam. No dia seguinte o aluno leva retratos da sua casa, da sua história de vida, com quem eles moram. Isso cria vínculos. E criar esse vínculo também tem um impacto grande na confiança que a família e a escola estabelecem entre si. Isso acaba com aquele jogo de culpa, e você tem uma condição mais apropriada para formar e educar aquela criança.
Esse conteúdo foi originalmente publicado pelo site Porvir