Especialista explica por que Brasil perdeu a chance de crescer

10/04/2014 15:39 Atualizado: 10/04/2014 15:39

Poucos definiram melhor o que se passou no Brasil, na última década, do que o economista e ex-presidente do Banco Central, Gustavo Franco: “perdemos uma década com hesitações ideológicas, e esse tempo é irrecuperável”. A parte final da frase é um pouco forte. Em cem ou duzentos anos, é provável que ninguém se lembre dos tropeços da década passada. No tempo de nossa geração, e da próxima, não obstante, a perda é imensa. Ela se refere aos erros e não-decisões do Brasil, exatamente no meio do chamado bônus demográfico, a época de ouro para o crescimento de qualquer país, em que ele apresenta a maior taxa percentual de gente jovem entrando no mercado de trabalho, ou em pleno vigor produtivo, sobre o total da população.

O Brasil poderia, na última década, ter afirmado sua posição como liderança global pelos direitos humanos e pela democracia. Ao contrário, gastou uma década abstendo-se, ano após ano, na ONU, nas votações sobre violações de direitos humanos no Irã, país que mais pratica a pena de morte e um dos que mais persegue jornalistas em todo o mundo. Em 2011, a presidenta Dilma chegou a se recusar a receber o Prêmio Nobel da Paz e a dissidente iraniana, Shirin Ebadi, em visita ao Brasil. Ebadi, símbolo da luta global pelo direito à igualdade de tratamento para as mulheres, e não apenas no Irã. No plano regional, ao invés de se consolidar uma posição de equilíbrio, liderando o continente no sentido da consolidação democrática, gastou uma década oferecendo respaldo à destruição sistemática das instituições, na Venezuela. E mesmo agora, em meio à avalanche de mortes, repressão e violações explícitas de direitos pelo regime chavista, silencia. Isto para não falar do apoio explícito e constrangedor do Estado brasileiro à ditadura de 55 anos, dos irmãos Castro em Cuba.

O Brasil poderia ter consolidado, nesta última década, a política de estabilização e modernização econômica, inaugurada com o Plano Real. O caminho parece claro: a autonomia do Banco Central; a rigorosa independência funcional e técnica das agências reguladoras; a progressiva redução da carga tributária; a desburocratização; a abertura do país ao comércio internacional, com uma política agressiva de acordos de livre comércio; a adoção do modelo de concessões e parcerias público privadas, nas áreas de infraestrutura, como recente e timidamente vimos em alguns terminais portuários e aeroportuários. O mesmo raciocínio teria valido para a manutenção do modelo de concessões nas reservas do pré-sal, oferecendo segurança jurídica e condições favoráveis ao investimento privado. Tudo com o foco de aumentar a taxa de investimento na economia, que se mantém estabilizada no patamar muito baixo de 18%, claramente insuficiente para retirar o país da chamada armadilha do baixo crescimento.

O Brasil poderia ter avançado em uma reforma da lei trabalhista. A CLT é uma das legislações trabalhistas mais rígidas do mundo. Foi criada por Getúlio Vargas em 1943, em um Brasil com taxa de analfabetismo superior a 50% e renda per capita de U$ 200. Um mundo sem computadores, sem home office, sem dispositivos móveis que nos permitem trabalhar a qualquer hora e em qualquer lugar. O Brasil faz de conta que não vê. Orgulha-se de sua taxa de desemprego de 5%, escondendo seu exército de mais de 44 milhões de trabalhadores informais. Na última década, em nada avançamos. O país submete-se à pressão da estrutura sindical, ela mesma financiada com os recursos deste arcaísmo que é o imposto sindical. Nem mesmo a legislação que procura flexibilizar as contrações via terceirização consegue avançar no Congresso. O jogo meramente corporativo se traveste de heroísmo ideológico.

O Brasil poderia ter avançado, nesta última década, em uma ampla reforma da gestão pública. As bases para esta reforma estão lá, perfeitamente claras e definidas, desde 1998, com o Plano Diretor da Reforma do Estado. As diretrizes da reforma foram testadas, com amplo êxito, na rede de hospitais públicos do Estado de São Paulo, estruturada na forma das Organizações Sociais, com contratos de gestão assinados pelo Estado. O mesmo ocorre com as melhores instituições culturais, a OSESP, Pinacoteca do Estado, Museu da Língua Portuguesa. Ao invés disso, em dez anos, nenhum mísero contrato de gestão, em nenhum museu federal, nenhum hospital, foi levado adiante pelo governo federal. A aposta recaiu, sem tirar nem por, na inércia. O mesmo ocorre com o sistema prisional. Mesmo que amplamente comprovado o sucesso das PPPs para a gestão prisional, o país em nada avançou nesta direção. Continuou-se apostando no velho modelo de presídios estatais, com sua imensa e tosca burocracia, e incapacidade crônica de gestão.

De um modo geral, o rumo tomado pelo país foi o da expansão da máquina pública. O número de servidores públicos civis da União, que vinha caindo sistematicamente desde o início dos anos 90, voltou a subir aceleradamente. Eram 501 mil funcionários públicos federais em 2002. Hoje, este número passa de 650 mil. Pior: o número de cargos de livre nomeação política, de alto escalão, os chamados DAS-4, DAS-5, DAS-6, cresceu exatos 101% nos últimos 10 anos. No discurso oficial, este crescimento aparece com uma exigência de “reconstrução do Estado”. Quem quiser acreditar nisso, que o faça. Enxergue nisso uma obra weberiana. Alguém menos otimista verá nisso simplesmente a expansão da malha de cooptação política necessária para sustentar 39 ministérios, o recorde da Republica, e acomodar os 14 partidos políticos que compõem a base do Governo.

O Brasil poderia ter avançado em uma reforma da educação pública. Ao contrário, o país apostou no modelo tradicional, das grandes redes estatais de educação básica. O resultado é inequívoco: no ano 2000, ocupávamos a 40ª posição, entre 41 países avaliados no PISA (exame internacional de educação, dirigido pela OCDE); em 2012, ocupamos o 58º lugar, em uma lista de 65 países avaliados. Durante este período, o Chile consolidou sua posição de país mais bem colocado da América Latina. Para alguns, tudo está bem. Afinal, avançamos um pouco, não? Acostumados à mediocridade, podemos nos contentar. Quem sabe, em mais dez anos, chegamos ao 53º lugar? Ano passado, participei de um debate no Senado sobre educação, com autoridades do governo federal. Imagine-se qual era o país mais criticado? O Chile, obviamente. Único país latino-americano a adotar, com alguma escala, o sistema de voucher educação, que permite aos pais escolher a escola de seus filhos, e incentiva a gestão privada do ensino. O Brasil, nesta década, continuou insistindo no modelo dos “dois sistemas” de educação. A educação do governo, para os mais pobres, e a dos colégios particulares, para os mais ricos. O modelo está condenado. Irremediavelmente. Ele só fará crescer se mantido o fosso da desigualdade social brasileira. Mas parece que é nele que apostamos, cheios de orgulho.

Em termos de políticas sociais, o Brasil patina – lá se vai uma década – em um falso debate. O debate sobre os méritos do programa Bolsa Família. Reconhecemos todos que o programa é meritório, e sabemos todos de seus limites. Em meio ao falso debate, o país permanece inerte. Nas palavras do economista Eduardo Giannetti, “gostaria de viver em um país em que se comemorasse que um milhão de pessoas saiu do Bolsa Família, passando a viver de seu próprio trabalho, e não o contrário, em que se comemora que mais um milhão passou a depender do benefício”. O Brasil não desenvolveu, em paralelo à concessão de uma renda mínima aos mais pobres, estratégias de “economia clínica”, na expressão de Jeffrey Sachs, capazes de promover a emancipação das pessoas em relação à pobreza. A máquina social do governo foi inoculada, até a medula, pela cultura do assistencialismo. O truque parece perfeito: qualquer crítica ao programa é chamada, imediatamente, de “conservadora”. Enquanto isto, já passa de um quarto da população do país dependendo do programa. É preciso perguntar se um programa de transferência de renda, necessário e correto, não termina por tornar-se ele mesmo um promotor da pobreza, quando concentra seus incentivos na dependência das pessoas em relação ao Estado.

É evidente que há elementos positivos na vida brasileira, na última década. Particularmente, gosto do caminho aberto pelo ProUni, verdadeiro sistema de parceria público privada na educação superior. Gosto do programa Ciências sem Fronteiras. E acho incrível, diferente de muita gente, que o país tenha conquistado o direito de sediar os Jogos Olímpicos, em 2016. O ponto é que o Brasil precisar corrigir o rumo. Fazer as reformas de modernização que deixou para trás, em algum momento do início do século. Fazer o que Mario Covas anunciou, na campanha de 89: dar um “choque de capitalismo”. Vindo de um notório social-democrata como ele, a expressão adquire um sentido bastante claro. O tema é romper com nossa velha e persistente tradição patrimonial. Há uma década pela frente, novinha em folha, para ser trilhada. O desafio é parar com a hesitação. Saber mudar, com responsabilidade.

 

Fernando Luis Schuler é diretor geral do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (Ibmec) no Rio de Janeiro. Doutor em filosofia e mestre em ciências políticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É especialista em políticas públicas e gestão governamental pela Escola Nacional de Administração Pública (Enap) e em cooperação internacional pela Universidade de Barcelona. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo, chefe de gabinete do Ministério da Cultura, secretário de Estado da Justiça e do Desenvolvimento Social do Rio Grande do Sul

Esse conteúdo foi originalmente publicado no portal do Instituto Millenium