Depois que o escritor dissidente chinês Liao Yiwu teve seu livro de memórias confiscado pela polícia, ele teve que treinar sua memória para se tornar um eficaz gravador, lembrando sua experiência na prisão e as histórias relatadas por seus companheiros.
Em 1990, Liao foi condenado a quatro anos por escrever um poema que criticava a repressão de 1989 do regime chinês aos manifestantes estudantis na Praça da Paz Celestial. Sabendo que seria impossível publicá-lo, Liao gravou o poema recitando-o e a fita de áudio produzida circulou por todo o país.
Liao teve de escrever seu livro três vezes antes de finalmente publicá-lo como “For A Song and A Hundred Songs” (“Por uma música e uma centena de músicas”, tradução livre). Enquanto estava na prisão, ele começou a escrever seu livro de memórias em fragmentos de papel que familiares contrabandeavam para ele. Mas depois de sua libertação, em 1995, a polícia invadiu sua casa e levou suas notas de um ano de trabalho. Então, ele começou a trabalhar no livro a partir do zero, mas a polícia confiscou seu manuscrito novamente em 2001. Somente em 2011 ele conseguiu contrabandear seu livro para fora da China e, finalmente, publicou-o na Alemanha e Taiwan. Em 4 de junho deste ano, no aniversário do massacre da Praça da Paz Celestial, as memórias de Liao foram publicadas nos Estados Unidos traduzidas para o inglês.
“Eu suspeito que muitos detalhes de quando estive na prisão tenham sido esquecidos, mas também houve novos detalhes que surgiram, então, eu não tenho certeza de qual projeto foi o melhor”, disse Liao numa entrevista em Nova York, antes de aparecer num evento que celebraria a publicação de seu livro de memórias nos EUA.
Em 2011, as autoridades chinesas arrobaram sua porta novamente, ameaçando que, se ele publicasse seu livro de memórias, ele seria preso novamente, desta vez por pelo menos 10 anos. Ele decidiu que era hora de deixar o país. Em julho de 2011, ele chegou à Alemanha, depois de escapar pelo Vietnã com a ajuda de vários amigos.
Liao disse que não tinha escolha senão escrever este livro. “Se você não fizer isso, então, toda aquela experiência na prisão, aquela parte da história, será esquecida. Isso é muito assustador. Você não só é atormentado, mas também tem de sofrer a dor de ser esquecido, desta forma, você se transforma num pedaço de lixo.”
Enquanto esteve na prisão, Liao foi torturado, tanto física quanto mentalmente, o que ele narra em detalhes em seu livro. O título do volume refere-se a um episódio em que um guarda da prisão puniu Liao por cantar uma música e ordenou-lhe que cantasse outras cem. Quando ele não podia mais continuar, o guarda enfiou um bastão elétrico em seu ânus. “Eu me senti como um pato cujas penas estavam sendo arrancadas”, escreveu Liao.
Seus companheiros de prisão – que incluíam assassinos, estupradores, ladrões e traficantes de pessoas – também lhe contaram histórias de suas façanhas. Tendo sido um poeta boêmio por boa parte da vida antes de se tornar um prisioneiro político, estar na prisão o expôs pela primeira vez a “uma China clandestina, uma China que não vê a luz do dia”, disse ele.
Enquanto ele ouvia e memorizava as histórias dessas pessoas, ele viu uma escuridão que nunca enxergou antes. “Por que tantas pessoas se tornam criminosas? Apesar de terem cometido crimes, muitas vezes isso ocorreu porque eles foram massacrados pelo sistema até que não tivessem escolha”, disse ele.
Liao começou a entender que havia um problema generalizado na sociedade chinesa. “Para algumas pessoas, foi por um simples ato de resistência que eles decidiram matar alguém, que tomaram atitudes de risco, quando não tinham mais onde recorrer. Para alguns, foi porque eles não podiam sobreviver mais, então eles se voltaram para o roubo.”
Foi então que Liao se interessou em registrar as histórias de pessoas à margem da sociedade. Mais tarde, Liao conduziria entrevistas com essas pessoas, compilando suas histórias no livro “The Corpse Walker: Real Life Stories: China from the Bottom Up” (“O cadáver andarilho: histórias da vida real: a China de baixo para cima”, tradução livre).
Liao disse: “Minha experiência na prisão me mudou de ser um poeta para ser uma testemunha da história, um gravador de uma era. Agora me considero um gravador. Gravar o sofrimento é a tarefa mais importante de um escritor.”
Depois da soltura de Liao, ele percebeu que o mundo exterior era como “uma prisão sem muros”. “A sociedade chinesa reúne o mal do homem, diferentemente do Ocidente, onde se pode limitar este tipo de mal por meio das instituições, leis ou religião. É o oposto na China”, disse Liao.
Embora Liao seja um crítico do regime chinês – mais famoso pela afirmação “este império deve se fragmentar”, feita em seu discurso de recebimento do Prêmio da Paz de 2012 da Feira do Livro da Alemanha – ele não se considera um escritor político. Em vez disso, ele acredita que é apenas um cronista da verdade, das histórias das pessoas. “Eu não tenho pontos de vista políticos. A diferença entre mim e o Partido Comunista Chinês [PCC] é estética.”
Ele explica: “Os porcos, pelo menos, têm um melhor senso de beleza; após encherem a barriga, eles fazem sons de alegria e satisfação e não incomodam ninguém, eles apenas dormem. Mas o PCC, depois de comer e tomar tudo o que querem, eles ainda tratam os outros com crueldade e brutalidade.”
Ele disse que esperava que os leitores ocidentais pudessem ver por si mesmos as condições do sistema prisional na China e destacou que as atrocidades no livro ainda ocorrem hoje. “Se eles ainda querem fazer negócios com o PCC, eles realmente devem perguntar a suas consciências, isso é bom para as pessoas comuns da China?”
Agora, um célebre autor no Ocidente, Liao reflete sobre seus dias na China, quando seus livros foram proibidos e vendidos em mercados clandestinos. “Eu finalmente me transformei de um inimigo oculto do Estado num inimigo público”, disse Liao rindo. “Eu considero isso minha honra.”