Anatole France disse que “a ignorância é a condição necessária da felicidade dos homens”.
Às vezes, conversando com minha esposa, nos questionamos sobre nosso comportamento nas redes sociais. De um bom tempo para cá temos focado nossas postagens de Facebook e Twitter em praticamente um assunto: política. De vez em quando sai uma foto de algum felino ou canino aqui de casa, mas no geral é política e mais política. E por ver tantas pessoas que vivem felizes e saltitantes Facebook afora, sempre prontas a disseminar mensagens bonitinhas e otimistas, a gente acaba pensando: o pessoal deve nos achar um casal de chatos.
Mas afinal, vivemos uma época propícia para comemorações? É melhor se cercar de pessoas que não falam de política, e que preferem não se envolver com essa “coisa suja”? Para mim é impossível pensar nisso e não lembrar do filme Matrix. Impossível não imaginar que viver hoje, no Brasil, ignorando a situação do país e o governo que pesa suas mãos sobre cada um de nós, equivale a viver na Matrix, num sonho controlado, num simulacro de democracia. No filme, um dos meus preferidos de todos os tempos, Neo é chamado a uma decisão que mudaria sua vida para sempre, uma decisão sem volta: se tomasse a pílula azul acordaria no dia seguinte sem nenhuma lembrança do ocorrido. Se tomasse a vermelha, já era. Movido por uma profunda inquietação com o mundo em que vivia e por um sentimento constante de não pertencimento, ele toma a pílula vermelha, que o leva a descobrir que não passava de um escravo manipulado pelas máquinas, criado e mantido vivo para fornecer o que elas precisavam.
A pílula vermelha é dureza… Muito tempo atrás um grande amigo meu me deu um livro, o primeiro volume de “História da Filosofia”, do Giovanni Reale. Na primeira página uma breve dedicatória, que jamais esqueci, e que me marcou demais: “O conhecimento da realidade traz a verdade. A verdade liberta. O preço da liberdade? A solidão. Boa sorte.”
Ele não poderia estar mais certo. Os anos seguintes, de estudo e de aprofundamento na filosofia e na política, me abriram os olhos para a realidade em que eu vivia. Embora sempre achasse que o Brasil tinha inúmeros defeitos, a preferência por não vasculhar as notícias diariamente, e focar minha atenção muitas vezes em assuntos totalmente diversos, o que incluía minhas muitas atribuições religiosas na igreja em que congregava, me permitia continuar vivendo na “Matrix” e nela ser feliz. Ali eu era a personificação dos dizeres de Anatole France: a minha ignorância me proporcionava felicidade. Mas a inquietação que levou Neo a tomar aquela pílula foi a mesma que me levou a começar a ler, estudar e descobrir em que situação eu realmente vivia.
Com o tempo a dedicatória profética de meu amigo se cumpriu: a intelectualidade fortalecida deu origem a uma visão de mundo muito mais realista. As camadas de verniz e tinta que escondiam a realidade foram retiradas, como num minucioso trabalho de restauração, e o que eu vi por baixo delas não foi uma obra de arte maravilhosa, e sim um retrato cru e inóspito do Brasil em que eu vivia. Ao mesmo tempo, tudo o que eu escutava de outras pessoas tinha que passar por mais e mais etapas de validação – já não era possível aceitar nenhuma informação sem uma dose considerável de análise e estudo. E eu vou te contar algo importante sobre isso: sobram pouquíssimas pessoas em sua lista de “gente com opinião a respeitar” depois que você começa a passar todos os discursos pela peneira da razão. É justamente daí que vem a solidão da verdade, pois a maioria das pessoas prefere viver no sonho, na simulação, no autoengano, na ignorância.
Aonde quero chegar? Simples: se o Brasil é hoje o que é, é em grande parte devido a esse apego à felicidade baseada na ignorância. Não há nada mais agradável do que viver num sonho, e o brasileiro é o campeão mundial de viver sonhando. A simpatia e a alegria dos brasileiros, que são cantadas e entoadas como nossa maior virtude, são fruto de nossa maior fraqueza: a recusa em ver a verdade. Desde frases populares como “Deus é brasileiro” até canções que dizem “Moro num país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza”, o brasileiro nasce, cresce, reproduz-se e morre achando que o seu país é o que há de melhor no mundo, e que viver aqui é ser abençoado, é ser especial, é ser o topo da pirâmide mundial de felicidade. Em outras palavras, o brasileiro nasce, cresce, reproduz-se e morre acreditando em mentiras e vivendo um sonho dirigido.
Os últimos dois anos foram muito atípicos a meu ver: por um lado o governo petista se avolumou e tomou uma posição de ataque às liberdades individuais, principalmente a de expressão; por outro, parece que muita gente anda tomando a pílula vermelha (por favor, não confunda esse vermelho com o do PT) e acordando do sonho dirigido. Não falo aqui dos bocós que foram para as ruas no meio do ano passado sem a menor ideia do que estava acontecendo, mas das pessoas que têm partido para o engajamento intelectual, que têm se preparado para o debate de ideias, que têm povoado a internet com bons artigos, que têm escrito livros, que têm lutado por ideais e princípios justos. Muitos, como eu, que já haviam se conformado com a solidão intelectual permanente, passaram a conhecer outros solitários, e mais outro, e mais um ali, e assim por diante. É por isso que tem sido mais fácil encarar a batalha contra o comunismo no Brasil, por causa dos amigos que tenho feito. E os chamo de amigos, mesmo não conhecendo pessoalmente alguns deles, mas de uma maneira mais aristotélica: acreditamos nas mesmas coisas, buscamos as mesmas virtudes, abominamos os mesmos males.
Espero estar vivendo um momento único para o Brasil, um momento de construção de uma base intelectual que oxalá acomodará futuros líderes a combater a praga comunista que nos assola. A esquerda tem hoje muito dinheiro, principalmente pela sua presença tentacular em todas as esferas do poder público, mas a hegemonia intelectual ela já não tem mais. A acomodação já fez ruir muitos impérios na história da humanidade, e novas forças, forjadas em condições desfavoráveis, conseguiram reverter o curso de governos que pareciam imbatíveis. Tudo isso me dá esperança. Pode não ser muita, mas é esperança. E, como no dito popular, ela é a última que morre.
Flavio Quintela é escritor e edita o blog Maldade Destilada
Esta matéria foi originalmente publicada pelo blog Maldade Destilada