Se há algo de que nunca me canso e do qual não abro mão é olhar por horas a fio da janela de um avião. Por toda a história da humanidade até praticamente anteontem, nenhum ser humano podia ver o mundo desta perspectiva. As pessoas podiam, no máximo, subir ao topo das montanhas e ver alguns vales logo abaixo. Mas ver toda aquela diversidade de cenários se alternando logo abaixo de si era um privilégio exclusivo dos pássaros e de Deus. E então, aproximadamente 100 anos atrás, esta realidade mudou e passamos a poder vivenciar aquilo que nunca havíamos realmente experimentado diretamente.
Mas não é a visão da natureza em estado puro o que me fascina. São as metrópoles. São as pequenas cidades. São as luzes. São aquelas vastas terras cultivadas pela agricultura. É ver aquela aparente regularidade e ordem gerada pela civilização humana, algo que não foi planejado por nenhum comitê superior, mas que foi surgindo espontaneamente, aos poucos, por meio da criação da mente humana. Tudo o que vemos concretizado hoje foi apenas uma ideia ontem, e passou a existir por meio da ação de indivíduos.
Não obstante toda a pretensão dos governos, toda a arrogância de seus funcionários e toda a mentalidade centralizadora e planejadora de seus burocratas, tudo aquilo que você vê da janela de um avião é, em sua pura essência, resultado de uma anarquia ordeira, a evidência do que milhões de unidades de explosiva criatividade (também conhecidas como ‘pessoas’) são capazes de construir quando passam a interagir e cooperar entre si em busca da realização de seu interesse próprio.
É igualmente intrigante observar, ao se fazer um voo continental — seja nos EUA, seja no Brasil ou na Europa —, a imensa quantidade de terras desabitadas que ainda existe no mundo, o que deixaria qualquer um estupefato ao ouvir a conversa de que o mundo está ‘excessivamente povoado’ ou de que estamos ‘ficando sem espaço’. Sob as condições adequadas, a população mundial poderia mais do que decuplicar, ocupar todo este espaço e ainda assim sobraria muito ar respirável. Ah, sim, lembra-se daquela conversa, muito recorrente alguns anos atrás, de que estávamos ficando sem lugar para fazer aterros sanitários? Quanta besteira!
Mas isso não é tudo que podemos constatar quando passamos a usufruir a mesma visão dos pássaros. Há uma cena no filme O Terceiro Homem, de 1949, rodado em Viena após a Segunda Guerra Mundial, em que o criminoso Harry Lime, interpretado por Orson Welles, e o escritor Holly Martins, interpretado por Joseph Cotten, estão no topo de uma roda-gigante. Eles olham para baixo e Holly pergunta a Harry se ele já havia visto pelo menos uma de suas vítimas. Harry responde:
“Vítimas? Não seja melodramático. Olhe para baixo. Veja todas aquelas pessoas. Agora diga-me: você realmente sentiria qualquer tipo de compaixão caso um daqueles pontos parasse de se mover para sempre? Se eu oferecesse a você 20 mil libras para cada ponto que parasse de se mover, será que você, meu velho, realmente iria me mandar ficar com o dinheiro? Ou você apenas calcularia quantos pontos você se daria ao luxo de poupar?”
A alusão a como os pilotos de aviões de combate veem o mundo certamente era algo impossível de não ser imaginado naqueles dias após a guerra. As pessoas eram apenas pontos vistos lá de cima, coisas tão valiosas quanto as formigas que rotineiramente esmagamos com nossos pés quando andamos sobre um gramado qualquer.
E é exatamente assim que o Estado nos enxerga. O Estado é uma ave predadora constantemente olhando para baixo, e o que ele vê não são vidas prósperas e preciosas, mas apenas pontos que podem ser controlados, manipulados, devorados ou liberados para se moverem estritamente da maneira que ele aprova. O Estado se imagina o senhor e mestre de todas as coisas abaixo dele; porém, por não possuir a capacidade de realmente fazer com que coisas bonitas sejam criadas, ele apenas se concentra em seu poder de destruir, sem nenhuma demonstração de clemência.
O grande desafio da liberdade é saber olhar o mundo lá de cima, não como uma ave predatória, mas sim com a reverência e estupefação que sentimos como passageiros quando olhamos da janela de um avião. Devemos ver e apreciar a impressionante e valiosa complexidade do nosso mundo, uma ordem que pode ser observada, mas que jamais pode ser controlada desde o topo.
É assim que imagino como F.A. Hayek via o mundo quando ele escreveu seu famoso artigo “O uso do conhecimento na sociedade“, o qual foi publicado durante a guerra, em 1945. Em sua visão, a ciência econômica havia sido radicalmente mal interpretada e mal explicada. A economia não era algo que servia para explicar como melhor empregar recursos sociais. Ao contrário, disse ele, o problema da economia era descobrir um sistema que fizesse o melhor uso possível das várias formas de conhecimento que existem na mente de cada indivíduo. O conhecimento detido por cada indivíduo, conhecimento acerca do tempo e do espaço que o cerca, escreveu ele, é totalmente inacessível para os planejadores centrais:
“O caráter peculiar do problema de uma ordem econômica racional se caracteriza justamente pelo fato de que o conhecimento das circunstâncias nas quais precisamos agir nunca existe de forma concentrada e integrada, mas apenas como pedaços dispersos de conhecimento incompleto e frequentemente contraditório, distribuído por diversos indivíduos independentes. O problema econômico da sociedade, portanto, não é meramente um problema de como alocar “dados” recursos — se por “dados” entendermos algo que esteja disponível a uma única mente que possa deliberadamente resolver o problema com base nessas informações. Em vez disso, o problema é como garantir que qualquer membro da sociedade fará o melhor uso dos recursos conhecidos, para fins cuja importância relativa apenas estes indivíduos conhecem. Ou, para dizê-lo sucintamente, o problema é o da utilização de um conhecimento que não está disponível a ninguém em sua totalidade.”
Olhando de cima, portanto, podemos apenas ver e apreciar as coisas, mas não podemos realmente apreender e dominar todos os dados que fazem com que a ordem social se desenvolva da maneira como vemos. Se não podemos saber completamente o que impulsiona e conduz cada escolha individual, cada ação humana, então certamente não podemos substituir a vontade e os planos de cada indivíduo pela vontade de agentes planejadores e esperar resultados melhores. Isto seria de uma presunção indescritível.
Tenho de admitir que demorei anos para ser capaz de compreender totalmente e valorizar adequadamente esta magistral constatação de Hayek. Mesmo após ler seu artigo mais de 100 vezes, a essência desta descoberta de Hayek ainda me escapava em alguns detalhes.
Mas tudo mudou quando fui a São Paulo, Brasil. Lá, vivenciei uma extraordinária experiência que me ajudou a finalmente cristalizar o raciocínio de Hayek. Fui ao topo de um prédio alto encravado no meio da cidade. Lá em cima havia um bar muito elegante chamado Skye, de onde era possível vislumbrar a cidade de todas as direções. Para onde quer que você olhasse, havia prédios por todos os lados. Você podia girar em círculos e tudo o que você iria ver era a mais pura evidência do trabalho humano em seu constante esforço para criar e sustentar vidas.
Existem aproximadamente 20 milhões de pessoas em São Paulo. Mas, olhando tudo de cima, a impressão que se tem é que cinco Nova Yorks foram comprimidas e jogadas ali. Não parece haver um centro específico na cidade. As construções se espalham num contínuo de tal forma que é impossível para a mente humana compreender como tudo aquilo pode funcionar. A única coisa que você pode realmente fazer é apenas ficar parado, admirando em total estupefação toda aquela visão. Foi exatamente isso que eu e meus amigos do Mises Brasil fizemos.
O Brasil possui um Estado socialista, mas, assim como todos os atuais Estados socialistas, o governo brasileiro pode apenas fingir que está fazendo o que alega estar fazendo. Em vez de inspirar coisas novas e permitir a criação de mais coisas maravilhosas, o Estado apenas se intromete e fica no meio do caminho, impedindo ou dificultando empreendimentos por meio de suas intrusivas regulamentações e sua espoliativa tributação. Como todos os Estados, o governo brasileiro é apenas um sumidouro de produtividade e de riqueza da sociedade. Sua contribuição para a geração de riqueza é nula, para não dizer negativa.
De alguma maneira, tudo isto se tornou translúcido para mim, como nunca antes, no momento em que tive esta visão de São Paulo do alto do Skye. É o suprassumo da arrogância que um grupo de burocratas queira se pretender capaz de controlar um lugar como este. Os mercados negro e cinza prosperam à luz do dia. Bens cuja venda não é autorizada pelo governo são transacionados abertamente, definindo sua própria vida. A espontaneidade prevalece. Toda a cidade é gloriosamente rebelde aos ditames do Estado, e é exatamente isto o que a torna tão sensacional.
Sim, existe planejamento. Muito planejamento. Indivíduos planejam suas vidas. Empresas planejam sua produção. Consumidores planejam suas compras. Mas o governo não planeja nada. Ele apenas interfere, vive às expensas da riqueza alheia e arruma desculpas para justificar tal comportamento parasítico.
É exatamente como disse Hayek: “Não está em discussão se se deve planejar ou não, mas sim se o planejamento deve ser feito de forma centralizada, por uma autoridade única para todo o sistema econômico, ou se ele deve ser dividido entre vários indivíduos.”
Enquanto eu estava no topo daquele prédio, mesmerizado pela visão e tentando imaginar e compreender toda aquela vastidão de São Paulo, um casal começou a se beijar na minha frente, bloqueando minha visão. Eles se abraçavam afetuosamente. E demoradamente. Quem eram aquelas pessoas? Há quanto tempo elas se conheciam? Quem entre os dois sentia uma maior afeição pelo outro? A que esta demonstração pública de afeto levaria? Isso seria algo de apenas uma noite ou geraria laços para toda uma vida?
Eu não tinha nenhuma ideia das respostas, e jamais sequer sonharia em interferir naquela relação. Somente aquelas duas pessoas podem e sabem como moldar suas vidas, aprender com seus erros e tudo mais. E elas eram apenas duas pessoas entre as 20 milhões que vivem na cidade. E estas 20 milhões são apenas 10% da população do Brasil. E o Brasil possui apenas 3% de toda a população do mundo. E cada indivíduo deste mundo possui uma mente própria e exclusiva. Graças a Deus por isto. E, de alguma forma, tudo funciona.
Ninguém jamais será capaz de controlar este mundo.
Jeffrey Tucker é o presidente da Laissez-Faire Books e consultor editorial do mises.org. É também autor dos livros It’s a Jetsons World: Private Miracles and Public Crimes e Bourbon for Breakfast: Living Outside the Statist Quo
Esta matéria foi originalmente publicada pelo Instituto Ludwig von Mises Brasil