Estamos vivendo um corporativismo de esquerda, onde as corporações são usadas por agentes estatais para gerar caixa 2, ampliar uma rede de favores ilegais e bancar o espraiamento de determinadas ideias, ao mesmo tempo em que ouvimos discursos sobre a redução da pobreza, a proteção das minorias e o empoderamento de trabalhadores.
Esse texto serve para dois tipos de público. O primeiro é aquele seu amigo de esquerda que vai comentar essas últimas notícias sobre a operação Lava Jato; e o segundo é você mesmo, que não confia nos políticos mas também não vê a iniciativa privada com bons olhos.
É que ambos os públicos estão certos e, ao mesmo tempo, errados. Se você sabe disso, pode ir comer uma pizza com a família, levar a namorada para aproveitar o show do Arctic Monkeys – que foi excelente, por sinal –, ou assistir um vídeo legal no YouTube.
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Aos que ficaram, é preciso dizer que o Brasil foi tomado por uma iniciativa privada profundamente anti-mercado. A manchete de diversos jornais mostra que a operação Lava Jato está prendendo preventivamente vários executivos das seguintes empresas:
Odebrecht
Mendes Junior
Engevix
OAS
Camargo Corrêa Construções
Iesa Óleo e Gás
UTC
Construtora Queiroz Galvão
Isso mostra que uma empresa pode estar nas mãos da iniciativa privada e simplesmente não ter nada a ver com a oferta de produtos e serviços cada vez melhores e mais baratos. Pode ser o exato oposto. No Brasil, na verdade, temos motivos bastante racionais para desconfiar da maioria das pessoas que diz ser um empresário.
Acontece que vivemos em um capitalismo de compadrio onde nossos empresários não precisam de consumidores, mas sim de políticos. Não é coincidência, por exemplo, que a maior parte das doações aos presidenciáveis vieram de algumas das construtoras que aparentam envolvimento nesse escândalo da Petrobrás.
Então, se você é de esquerda e está lendo esse texto, o que você vive repetindo sobre as corporações é verdade: “os bônus são privados mas os ônus são públicos”.
Só que nos próximos dias todos nós vamos ouvir alguns comentários curiosos, e eu tentei resumir todos eles em uma única frase. Então, faço um convite: vamos refletir seriamente sobre o seguinte raciocínio:
“As corporações concentram muito poder econômico. Logo, precisamos melhorar a fiscalização e criar regras capazes de conter essas corporações.”
Vamos contar uma história – baseada em fatos reais – para deixar as coisas mais claras. Digamos que você detenha o poder de criar regras que restrinjam a atuação de diversas empresas.
E digamos que uma dessas regras exija que cada corporação seja avaliada de acordo com diversos critérios, tais como o cumprimento de suas responsabilidades fiscais, ambientais e sociais. Sem as devidas licenças e alvarás garantindo essas responsabilidades todas, nenhuma corporação poderá explorar determinada atividade econômica. Podemos falar, por exemplo, na atividade da construção.
Os fins são os mais nobres possíveis: com essa malha regulatória você quer proteger o meio ambiente; quer proteger o urbanismo da cidade; e quer evitar a especulação imobiliária desenfreada. Excelente! Você é quase um super-herói.
Mas você não para por aí, e acha que alvarás e licenças não são suficientes. E então você cria, na melhor das intenções, um regime licitatório para tentar filtrar apenas as construtoras mais qualificadas em atender a esses nobres interesses público: reputação ilibada, bons preços, serviços impecáveis.
Você levanta todos os critérios possíveis para selecionar as melhores empresas. E você também investe em fiscalização!
Ops. Acontece que as suas boas intenções fazem com que uma construtora só precise de licenças, de alvarás e da vitória em uma licitação. E sabe como ela vai fazer isso? Não será com nenhum dos seus critérios originais. Será através da linguagem empresarial.
O dinheiro
Pense que esse seu processo licitatório representa uma receita hipotética de R$ 202,87 milhões anuais para as construtoras. Seria o equivalente a R$ 1 por ano, vindo de cada brasileiro.
Mas, pensando individualmente, um real parece muito pouco, correto? Isso significa que seria bastante trabalhoso conseguir juntar todos – ou a maioria – dos brasileiros em um protesto toda vez que esse R$ 1 fosse subtraído ou desviado de seu propósito original; em outras palavras, o valor individual é pequeno, mas o esforço de organização é alto.
Por outro lado, os grupos potencialmente beneficiados teriam a ganhar R$ 202,7 milhões anuais. É muito mais fácil que esses grupos se organizem – afinal, eles são menores e mais poderosos, e os incentivos são maiores – para conseguir capturar esses R$ 202,7 milhões anuais, ao contrário da dificuldade de se organizar boa parte da sociedade.
É que o poder estatal para regular e restringir as construtoras é exatamente o mesmo poder para transformar a regulação em uma distribuição de favores. Não é transferindo poder para uma pequena elite – de políticos – que vamos conseguir mitigar outra pequena elite – de corporativistas.
Lendo isso, você instantaneamente responde: “Ora, basta nos organizarmos melhor! Esse é o princípio da democracia! Não é pensando justamente nisso que vocês estão protestando?”
Frente a esse questionamento, vamos supor que você conseguiu organizar protestos contra o roubo do R$ 1 de cada um. De certa forma, é isso que está acontecendo agora, não é mesmo? Milhares de pessoas nas ruas. Todos protestando, fervorosamente, exigindo o fim dos assaltos aos cofres públicos.
Parece bom, não é? Bem, essa pressão dos protestos aumenta os riscos dos roubos serem descobertos e punidos. E isso pode nos levar a três resultados diferentes:
A) O primeiro resultado possível é a existência de desvios de dinheiro público cada vez maiores e menos constantes, afinal o crime só pode compensar se os ganhos forem proporcionais a esse aumento no risco de prisão;
B) O segundo resultado possível é um incentivo para que políticos e corporações aparelhem, cada vez mais, as instituições responsáveis por puní-los e fiscalizá-los, em uma blindagem contra os protestos;
C) E o terceiro e último resultado possível seria construirmos, aos poucos, uma democracia mais participativa.
Vamos ignorar os dois primeiros resultados possíveis, que são bastante importantes e extremamente atuais, e pensar apenas nesse último resultado possível – a letra “C”.
Aqui, prezadas admiradoras da Luciana Genro, entra um fator interessante. É que para políticos meramente patrimonialistas, o roubo seria limitado por uma relação entre o ganho potencial, o patrimônio atual do criminoso e o risco de ser pego (de forma mais técnica: há uma utilidade marginal decrescente). Então os protestos funcionam!
Só que a mecânica não é essa quando falamos de políticos ideológicos. Ao contrário dos políticos patrimonialistas, a ideologia faz com que o roubo não seja pautado apenas por ganhos patrimoniais individuais; estamos falando, também, de uma guerra de ideias.
Na guerra de ideias, talvez valha a pena ser preso se, no final das contas, as suas ideias de alguma forma saírem fortalecidas (e talvez as suas contas na Suiça, Singapura, Luxemburgo, Bermuda, Países Baixos, Qatar, Bahamas ou Irlanda permaneçam intocadas, quem sabe?; aliás, melhor parar listar de listar essas regiões, antes que isso vire um outro tipo de guia). Nessa lógica, o partido estaria acima de seus integrantes individualizados, e os que se sacrificaram pela causa viram verdadeiros heróis.
É por isso que os tais “políticos ideológicos” não podem ser parados meramente por protestos contra a corrupção.
E eles usarão as regras que foram criadas para restringir as corporações, aquelas mesmas intervenções que você defendeu com unhas e dentes, para aumentar ainda mais o poder das construtoras, ou dos bancos, ou de quaisquer outras corporações, já que elas representam o capital necessário para vencer essa empreitada – desculpem pelo trocadilho – de ideias.
Me parece que essa é, exatamente, a experiência brasileira: estamos vivendo um corporativismo de esquerda, onde as corporações são usadas por agentes estatais para gerar caixa 2, ampliar uma rede de favores ilegais e bancar o espraiamento de determinadas ideias, ao mesmo tempo em que ouvimos discursos sobre a redução da pobreza, a proteção das minorias e o empoderamento de trabalhadores.
Mas você sabe que corporações não são a favor de nada disso. E, se os políticos ideológicos estão aumentando o poder das corporações, portanto usando fins totalmente contrários aos discursos de esquerda nos quais você acredita, então talvez você esteja sendo usado como mais um voto que, no final das contas, não deveria apoiar mais regulações como se esse instrumento jurídico regulatório fosse a solução para o país.
Não é. Essas intervenções são, na verdade, o meio que permite as corporações transformarem poder econômico em poder político, fortalecendo gente que, no longo prazo, definitivamente não está preocupada com os menos favorecidos (a não ser que você considere que o CEO de uma construtora seja alguém que precise de ajuda).
Concluindo: talvez seja a hora de refletir sobre o que anda acontecendo, despolarizando a discussão. E é melhor você fazer isso rápido, querido revolucionário hipster, antes que a iniciativa privada do Brasil seja completamente fusionada com políticos ideológicos em um plexo corporativista… de esquerda.
A coisa vai ficar feia, e você é responsável. Depois não adianta chorar sobre o crony capitalism brasileiro. Então é melhor tirarmos o corporativismo da jogada, enquanto ainda há tempo, diminuindo o poder do Estado. Precisamos deixar o embate ideológico no campo da livre discussão, bem longe das mãos de elites que, lá na frente, não conseguiremos mais parar.
Igualdade? Justiça social? Não. Pode ter certeza que nenhum discurso bonito vai vingar nas mãos dessa gente sedenta por poder.
André Ichiro é empreendedor na área da alta tecnologia – big data & machine learning – e mestrando pela São Francisco (USP), com foco na Teoria dos Sistemas (Luhmann) e no pensamento libertário