Ser reaça tem muitas vantagens. Nós temos tempo de cultivar hábitos pequeno-burgueses como escutar música clássica e usar produtos de higiene pessoal, por exemplo. A maior de todas as vantagens, porém, é mais afeita ao campo dos chamados valores morais: ser reaça significa ter no nosso íntimo a reconfortante certeza de que, aconteça o que acontecer, haja o que houver, nós jamais seremos obrigados a defender crimes “do bem”, cometidos por “bandidos de estimação”.
A imagem do adolescente negro amarrado a um poste rodou a internet, os jornais e as televisões nos últimos dias. Nela, vemos um rapaz sem roupas amarrado a um poste, depois que populares reagiram a uma ação criminosa dele. A imagem despertou os mais diversos graus de revolta, como não poderia deixar de ser: o instituto da vingança privada, onde o ofendido resolvia “com as próprias mãos” sempre foi uma das marcas da barbárie. Superar isso, criando instituições destinadas a deter o monopólio do uso legal da força a fim de assegurar a paz social, é um dos pilares da nossa civilização. O problema surge quando esse ente encarregado de fazer valer as leis e a ordem deixa de cumprir sua função essencial e abandona os indivíduos à própria sorte…
Eu não endosso linchamentos, claro. Acho que responder barbárie com mais barbárie é dinamitar as bases do nosso próprio sistema de liberdades individuais, o que vai terminar por comprometer ainda mais nosso modo de vida. Não aprovar a prática, porém, não me torna cego a ponto de não permitir que eu entenda por que ela aconteceu naquele caso do Rio de Janeiro – e vai continuar acontecendo, a menos que o Estado cumpra seu papel.
Chamem-me de insensível, mas o que mais me chamou a atenção no episódio do rapaz preso ao poste, no Rio, foi a reação pronta, rápida, sistemática e organizada dos vários grupos da – como é mesmo que eles chamam? – sociedade civil, sempre desejosos de analisar todo e qualquer evento social a partir da luta de classes. Não demorou nadinha e o bandido agredido logo se tornou vítima da desigualdade e da opressão social, ambas fruto – claro! – da sociedade capitalista e exploradora. Não bastou aos vários intelectuais e estudiosos ouvidos tratar os fatos como aquilo que eram: uma ação violenta (e, por isso mesmo, errada!) respondendo a uma outra ação violenta (e, por óbvio, também errada!). Não! Eles precisam sempre de um oprimido para chamar de seu e de um opressor para apresentar como vilão – de preferência alguém da classe média, essa pobre coitada tão odiada nos meios acadêmicos tupiniquins.
Linchar uma pessoa e prendê-la a um poste sem roupas é errado porque vai contra os preceitos de civilidade mais básicos, não porque quem fez isso resolveu com violência aquilo que as várias Marilenas Chauís do Brasil consideram um problema social ligado à exploração da força de trabalho do proletariado. Quando um Ivan Valente aparece sugerindo que aquilo é “a volta do Pelourinho”, como se a reação guardasse relação com ódio de classes ou etnia, e não apenas com a revolta generalizada da sociedade, abandonada à mercê da total insegurança pública, percebemos a glamurização da bandidagem que certa esquerda promove, sempre que lhe convém.
Eu fico muito curioso, por exemplo, para saber por que o tal de Ivan Valente não acha um absurdo nauseabundo o que vai retratado na imagem citada… Por que amarrar alguém a um poste no Rio de Janeiro é tão revoltante, mas amarrar alguém a um poste em Cuba, não? Vale lembrar que no Rio o bandido amarrado não foi executado. Os modernos opressores que, segundo Valente, estariam emulando os antigos senhores de escravos, mostraram-se, afinal, mais piedosos que os bravos revolucionários cubanos.
Ser reaça é saber que a foto do marginal preso e a que ilustra este post devem provocar repulsa em quem vê, pois ambas representam a subversão dos direitos e garantias individuais sobre os quais se ergueu o Ocidente. É, enfim, não fechar os olhos para uma ditadura amiga, ao mesmo tempo em que se fazem discursos pseudo-indignados contra a violência – afinal os linchadores brasileiros, se comparados a Che Guevara, não passam de moleques travessos.
Nós, os reaças, somos aborrecidamente previsíveis, como já mencionei no passado. Carregamos sempre os mesmos valores morais, que se mantém firmes independente do momento político ou das conveniências eleitorais da vez. Os progressistas são mais – se me permitem… – “versáteis”. A moral deles é maleável e se ajusta aos interesses de ocasião com bastante facilidade, sem que eles sintam sequer um mísero comichão de vergonha.
É por isso que essa gente consegue levantar a voz para condenar um linchamento no Rio, comparando cidadãos cegos de fúria em razão da omissão estatal a senhores de escravos, ao mesmo tempo em que militam em partidos que não apenas defendem os fuzilamentos praticados até hoje em Cuba, como se propõem a implementar no país um regime como aquele da ilha dos irmãos Castro. São os mesmos que chamam de fascistas as pessoas que votaram no “não” no referendo de 2005, mas abrem as portas do Palácio do Planalto pro MST, um dia depois do bando stalinista de João Pedro Stédile agredir policiais e ameaçar invadir prédios públicos em Brasília. A lógica deles é sempre a mesma: há os bandidos e há os bandidos de estimação. Nada novo… Orwell ensinou, no sensacional livro chamado “A revolução dos bichos”, como funciona a mente sociopata dessa gente: “todos são iguais, mas uns são mais iguais que outros”.
Esse conteúdo foi originalmente publicado no portal Reaçonaria