Duas sentenças de morte canceladas na China, mas Justiça é ignorada

06/09/2014 06:05 Atualizado: 05/09/2014 16:40

Em 22 de agosto, oito anos de miséria acabaram para Nian Bin e sua família. O Tribunal Superior da província de Fujian, no Sudeste da China, o absolveu de todas as acusações, cancelando a sentença de morte que pairava sobre ele e libertando-o imediatamente. Algumas mídias estatais saudaram o episódio como um sinal de melhoria no sistema legal da China, mas a verdadeira história é bem diferente.

Em 27 de julho de 2006, uma família vizinha de Nian e o senhorio da família sofreram intoxicação alimentar após um jantar. Seis foram enviados para o hospital e dois deles morreram, duas crianças.

Doze dias depois, a polícia anunciou que o caso foi resolvido. Nian Bin foi acusado de assassinato. Nos oito anos seguintes, o caso de Nian Bin foi julgado, apelado, rejulgado e reapelado várias vezes. Ele foi condenado à morte quatro vezes.

Durante seu primeiro julgamento, ele negou sua confissão, dizendo que foi feita sob tortura e sob ameaças à esposa. Quando ele não aguentava mais, Nian Bin tentou se matar mordendo a própria língua. A polícia admitiu que ele tentou suicídio, mas negou a tortura, argumentando que a tentativa de suicídio ocorreu após o “trabalho de educação” da força policial.

Tortura

No início deste ano, um caso semelhante, também na província de Fujian, teve a sentença revertida. Wu Changlong e outros quatro suspeitos foram julgados inocentes pelo Tribunal Superior de Fujian. Até então, Wu esteve preso por 13 anos. Fazia 10 anos desde que ele foi condenado a uma pena de morte suspensa por um crime que não cometeu.

Wu foi preso em conexão com uma explosão num escritório do Partido Comunista. Após 53 dias de tortura e três tentativas de suicídio fracassadas, Wu começou a “confessar” e “entregar seus cúmplices”.

Tentando evitar prejudicar seus familiares e parentes, Wu deu o nome de ex-namorado de sua irmã. Esse azarado eventualmente “entregou” seu ex-motorista e outro tratorista. Todos foram condenados, dois receberam uma sentença de morte com adiamento.

O recente artigo “Recuperando a Inocência” da “Edição Semanal de Reportagem Investigativa” do Diário Metropolitano do Sul listou nove casos em que condenados por assassinato foram considerados inocentes por um tribunal superior provincial ou pelo Supremo Tribunal. Todas as condenações foram baseadas em “confissões” sob tortura.

Na maioria dos casos, havia fortes evidências – antes ou durante os julgamentos iniciais – para provar que os condenados não eram os responsáveis pelas mortes.

‘Tem de ser resolvido’

Em 2004, o website do Ministério da Segurança Pública emitiu uma ordem que todos os “casos de assassinato devem ser resolvidos”. No ano seguinte, o número de casos “resolvidos” aumentou dramaticamente.

Na China, a taxa de resolução de casos é para a polícia o que a taxa de crescimento do ‘produto interno bruto’ (PIB) é para os políticos provinciais – uma medida que determina seus aumentos salariais, bonificações, privilégios e promoção na carreira. O Partido Comunista Chinês (PCC) usa essa suposta alta taxa de resolução de casos como alavanca e justificativa para estabelecer sua legitimidade.

Na China, os promotores dificilmente rejeitam casos apresentados pela polícia. Mesmo que a evidência não seja suficiente para constituir um caso, ou a evidência seja obviamente fabricada, os promotores apenas enviam a papelada de volta à polícia para requisitar “mais evidências” e nunca para rejeitar o caso. Na maioria das vezes, o Ministério Público nem sequer envia o arquivo de volta, apenas usa os papéis para seguir com o processo.

Uma vez que o caso é levado ao tribunal, a sentença é quase certa. Na China, a polícia, o Ministério Público e os tribunais estão todos do mesmo lado. Não há mecanismo para corrigir os erros cometidos pela polícia, ou pior, para rejeitar os casos forjados pela polícia.

Sob a ordem de que “casos de assassinato devem ser resolvidos”, a taxa para resolver casos de assassinato se tornou a questão mais importante para todas as partes envolvidas. Sob essa ordem inquestionável do regime, a tortura não é apenas permitida, mas incentivada.

Esses casos não necessariamente são politicamente motivados, pelo menos não no início. No entanto, uma vez que o caso é arquivado e julgado, todos os funcionários envolvidos se tornam cumplices e um grupo de interesse. Sua reputação, carreira e situação financeira estão todas vinculadas ao caso.

Eles fariam qualquer coisa para evitar que os casos sejam reinvestigados e reparados. É por isso que um caso típico não pode ser revertido no mesmo nível ou superior do Judiciário.

Rolando numa cama de pregos

Internautas chineses não engoliram a explicação oficial de que os dois casos revertidos na província de Fujian são resultado da melhoria no sistema legal da China. A maioria acredita que os dois casos foram revistos por causa das irmãs dos dois suspeitos.

Nem Nian Jianlan, a irmã de Nian Bin, nem Wu Huaying, a irmã de Wu Changlong, jamais desistiram de apelar pelos irmãos. Durante 13 anos de apelação, Wu Huaying foi detida quatro vezes e passou um ano na prisão.

Os internautas elogiaram as duas como “irmãs que rolam numa cama de pregos”. Na Dinastia Qing, pessoas que acreditavam que eles ou seus familiares foram injustamente condenados podiam apelar diretamente às instâncias superiores, inclusive ao próprio imperador.

No entanto, os peticionários tinham de provar que suas queixas eram tão significantes que eles estavam dispostos a sofrer enorme dor para buscar justiça. Numa famosa história real, a irmã de um suspeito acusado injustamente rolou numa tábua de madeira cheia de pregos com as pontas para cima. Após um novo inquérito, o irmão foi finalmente inocentado de todas as acusações.

A situação atual é pior do que durante a Dinastia Qing. Novas regulamentações tornaram impossível a apelação às autoridades superiores. As autoridades não se importam se alguém rolar numa cama de pregos ou, como peticionários na China às vezes fazem, queimar-se até a morte.

Sem imitação

Nian Jianlan não apelou pelo irmão como os outros fazem. Ela disse que a maioria dos peticionários apenas “compartilham suas histórias miseráveis”. “Não há esperança, apenas emoções negativas” entre os peticionários, disse ela. Ela aceitou a sugestão de seu advogado, continuou recorrendo aos tribunais, e finalmente conseguiu.

O Diário Jovem de Pequim publicou um artigo intitulado “O percurso da irmã de Nian Bin para apelar pode ser copiado”. Na verdade, o caso de Nian Bin não é um modelo que a maioria dos peticionários possa facilmente seguir.

Nian Bin tinha uma irmã que estava disposta a se sacrificar por ele. Nian Jianlian ainda era jovem e pôde aguentar a pressão, tanto mental como fisicamente. Ela aprendeu a lei e Direito sozinha. Ela aprendeu a recolher provas para provar a inocência de Nian Bin.

Eles também tinham uma equipe jurídica forte. Zhang Yansheng, sua primeira advogada, estava profundamente envolvida. Ela cobrou primeiramente 100 mil yuanes, em seguida reduziu sua taxa para 50 mil e finalmente dispensou o pagamento trabalhando pro bono. Ela também pagou outros advogados para viajarem a Fujian e ajudarem com o caso.

O caso ganhou atenção nacional e profissionais da área jurídica inclusive realizaram um fórum para discutir o caso em Pequim. Quantos casos podem preencher esses requisitos?

A ideia de que o caso de Nian Bin pode ser imitado tem outro problema maior. Muitas discussões semelhantes, com foco nas vítimas do sistema legal, tentam “educar” as pessoas a depender do sistema que criou seus sofrimentos e injustiças.

Ao mesmo tempo, é ignorado o fato que o sistema – a polícia – fabricou o caso contra pessoas inocentes em primeiro lugar. Os policiais, promotores e juízes têm todos os recursos e autoridade, enquanto as vítimas vivem na parte inferior da sociedade com pouca ou nenhuma educação.

Pedir às vítimas que encontrem evidências que provem sua inocência é irracional e injusto.

Sem mudança

Wu Huaying, a irmã do suspeito no outro caso de Fujian, nunca considerou que a absolvição foi uma vitória. Apesar de Wu Changlong e outras vítimas de sentença de morte errôneas terem recebido compensação do Estado, é difícil dizer que seus sofrimentos possam ser compensados. É ainda mais difícil de dizer que a justiça foi feita.

No caso famoso da Dinastia Qing, pelo menos 30 funcionários foram punidos com rebaixamento, remoção do posto oficial ou exilados. Mas nunca ouvimos falar de um único funcionário punido que esteve envolvido nos casos atuais que foram revertidos.

A polícia e outros funcionários que aplicaram a tortura, que extraíram confissões, forjaram provas e manipularam testemunhas ainda estão por aí, usufruindo o poder que veio parcialmente dos casos falsos que eles “resolveram”. O sistema que tornou possível esses casos falsos generalizados não foi tocado absolutamente.

Reverter esses casos criminais é apenas um ajuste fino da politicagem e não o estabelecimento do estado de direito. Para a nova liderança, reverter alguns casos famosos é uma maneira de ganhar o apoio das pessoas comuns sem realmente mudar o sistema. Enquanto isso, o sistema legal continua aumentando a supressão e a perseguição de dissidentes, ativistas dos direitos humanos, advogados de direitos civis e crentes religiosos.