Ao acompanhar o processo judicial contra Roberto Marinho, seus filhos e a TV Globo, envolvendo a suposta compra da TV Paulista S/A (hoje, TV Globo de São Paulo, antes controlada pela família Ortiz Monteiro), inicialmente eu estava convencido de que o dono da Organização Globo teria agido de boa-fé em 1965 e fora ludibriado por assessores de confiança.
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Situação idêntica e traumática teria vivido seu pai, Irineu Marinho, que teve o jornal “A Noite” negociado com prejuízo e à sua revelia por seus sócios entre 1913 e 1925, como bem relatado no livro biográfico escrito por Pedro Bial. Por isso, fiquei na dúvida, achando que esse antigo golpe contra a família Marinho poderia ter se repetido no caso da compra do canal 5 de São Paulo.
Contudo, reconheço hoje que me enganei, porque o próprio Ministério das Comunicações, 50 anos depois, oficialmente acaba de fornecer uma informação que permite desmentir as alegações de Roberto Marinho perante a Justiça.
Falsa “compra e venda”
Marinho afirmou que em novembro de 1964 o executivo Victor Costa Junior, diretor da TV Paulista, na condição de único herdeiro de Victor Costa (falecido em dezembro de 1959), teria lhe vendido o controle da sociedade anônima da emissora (52% do capital) por 3,75 bilhões de cruzeiros, que equivaliam a US$ 2 milhões, uma fortuna na época.
No contrato, cuja cópia foi anexada por Marinho ao processo judicial, estava assinalado que os bens supostamente deixados por Victor Costa, incluindo as ações da Rádio Televisão Paulista S/A, se encontravam em inventário no Fórum de São Paulo, e as referidas ações seriam transferidas a Marinho tão logo fosse homologada a adjudicação dos bens a Victor Costa Junior, o que deveria ocorrer no início de 1965. Há exatos 50 anos.
Acontece que o contrato não tinha a menor validade, porque infringia a legislação sobre transferência de controle de emissoras de TV, que exigia (e até hoje exige) prévia aprovação do governo federal. Marinho jamais pediu essa prévia e indispensável aprovação.
Além disso, a obrigatória transferência das ações jamais se efetivou, porque Victor Costa (pai) nunca fora dono de uma única ação da TV Paulista S/A. O inventário de seus bens, conduzido pelo mesmo advogado que representou Roberto Marinho no ato de suposta compra da emissora, arrastou-se por mais de 20 anos, de propósito e por desinteresse, já que não havia impugnação alguma. O inventário só foi concluído em 1986, sem que as anunciadas ações da TV Paulista S/A dele constassem.
A coincidência de o mesmo advogado representar Marinho na compra e simultaneamente conduzir o ardiloso inventário, por óbvio, também demonstra que o já temido e poderoso dono da Organização Globo não teria sido passado para trás nessa operação de vulto, imprescindível para a consecução de seu ambicioso projeto na área televisiva.
Fraude agora comprovada
Ao reexaminar a ação movida contra Roberto Marinho e a TV Globo, deparei-me com muitos documentos que ensejam a conclusão de que o suposto “comprador” da TV Paulista, com toda certeza, não foi enganado nessa negociação.
Deploravelmente, Roberto Marinho, em 1965, então, com 60 anos, no auge de sua lucidez e obstinação empresarial, ao “comprar” a TV Paulista de um executivo que não detinha o controle acionário, estava bem ciente dos riscos e problemas que poderia enfrentar se não contasse com a providencial omissão e o generoso silêncio apoiador dos militares ditadores da época.
E agora, ao final de 2014, em documento oficial, o próprio Ministério das Comunicações vem colocar água no champagne da comemoração dos 50 anos da TV Globo. Em resposta a um requerimento do senador Roberto Requião (PMDB-PR), o Ministério acaba de reconhecer oficialmente que, no processo de outorga da concessão do canal 5 de São Paulo e de transferência de seu controle acionário, não há nenhum registro da existência dessa anunciada “compra” da TV Paulista S/A em 1965 por Roberto Marinho, pela então astronômica quantia de dois milhões de dólares. E por uma razão muito simples: nos autos desse processo administrativo (nº 29100.006023/1964/65, que tratou da transferência em questão) jamais existiu a figura do suposto acionista/controlador/vendedor Victor Costa Junior.
Portanto, Victor Costa Júnior (vendedor de ações da TV Paulista sem ser acionista), Roberto Marinho (comprador do que não poderia ser negociado) e o advogado de ambos (que elaborou o contrato de venda e simultaneamente cuidou do inventário de Victor Costa pai, no qual não existiam ações da emissora), todos os três estavam cientes da fraude que cometiam e dos riscos que correriam, não fosse a explícita concordância dos militares.
Transferência ilegal
Justamente por conta da nulidade do contrato com Victor Costa Filho, Roberto Marinho teve de concretizar, entre 1965 e 1977, as mais absurdas e ilegais iniciativas jurídico-societárias, para conseguir se apossar de todas as ações da TV Paulista S/A e transferir para seu nome a concessão da emissora em 1977, doze anos depois de assumir ilegalmente o controle. Ou seja, manteve a emissora ilegalmente no ar por doze anos, sem ter a concessão em seu nome, e o governo militar fingiu que não percebeu.
Com isso, Marinho usurpou não somente os direitos dos verdadeiros concessionários (a família Ortiz Monteiro), mas lesou também mais de 600 acionistas minoritários, que não tiveram compensação financeira alguma e perderam suas participações no canal 5 de São Paulo, que responde hoje por cerca de 45% do faturamento bruto da Rede Globo (R$ 14 bilhões).
O caminho seguido para se apossar dos direitos acionários dessas centenas de famílias, legítimas detentoras do capital inicial da TV Globo de São Paulo, foi simplista demais, mas profundamente fraudulento, como apontado por acórdão proferido há alguns anos pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
Os crimes prescritos
Foi através de assembleias gerais extraordinárias, inteiramente irregulares e sem quórum legal, convocadas por meio de anúncios quase invisíveis em jornais de circulação restrita, que Roberto Marinho, ilícita e silenciosamente, se apropriou dos direitos dos verdadeiros acionistas.
Quando tardiamente descoberta a fraude e cobrada na Justiça, os advogados de Marinho e da TV Globo argumentaram que, de acordo com a legislação, todos os atos societários dolosos ou fraudulentos prescrevem em apenas dois anos. E alegaram que, se os crimes cometidos contra os mais de 600 acionistas fundadores já estavam prescritos, em consequência a emissora pertenceria legalmente ao dono da Organização Globo. Para eles, é o que basta. Se houve crime, ato doloso e simulação de transferência de controle acionário, não adianta chorar. Está tudo prescrito. É o que diz a lei.
Cabe uma pergunta. Sem escrúpulos ou preocupações com procedimentos éticos, os herdeiros de Marinho podem agora saudar e comemorar os 50 anos da “aquisição” da TV Globo de São Paulo?
Claro que não, porque a comprovação dessa simulada transação não somente contamina irremediavelmente a biografia de todos os artífices e participantes dessa farsa muito mal engendrada, como também abre a possibilidade de ser anulada a concessão concedida ilegalmente à TV Globo de São Paulo, um verdadeiro estelionato cumulado com falsidade ideológica. Todos os atos referentes à transferência da concessão, sem valor algum, seriam considerados nulos em qualquer país medianamente sério.
Requerimento de Requião
O Requerimento de Informações 135/2014, apresentado pelo senador Roberto Requião ao Ministério das Comunicações e que ainda está aguardando dados complementares, por certo ajudará no esclarecimento dessa nebulosa transação, em que o vendedor finge que tem um bem e o comprador conscientemente paga uma fortuna para adquirir o que sabe pertencer a terceiros, enquanto a Justiça e o governo se omitem para deixar tudo como está.
Ao dar ganho de causa a Marinho no processo, o ministro-relator do recurso especial nº 1046/497-RJ, João Otávio de Noronha, do Superior Tribunal de Justiça, citando o jurista Pontes de Miranda, desenvolveu o seguinte raciocínio, que nem merece comentários:
“Se A vendeu a Lua a B, não há negócio jurídico de compra e venda. De fato, a venda da Lua é exemplo clássico de negócio inexistente. Porém, se, por absurdo, B pagou o preço da Lua a A e este, com o dinheiro recebido, pagou empréstimo contraído perante C, o pagamento do empréstimo existe e, possivelmente, é válido, presumida a boa-fé de C. De outro lado, se B, por sua vez, doou a lua a D, este ato será inexistente. Por óbvio, B terá ação judicial, para, vendo declarada a inexistência do negócio, obter a condenação de A a devolver-lhe o dinheiro indevidamente recebido: não terá, porém, ação contra C para ver declarada a inexistência do pagamento do empréstimo, ainda que A não devolva o dinheiro, alegando que pagou o empréstimo a C”.
Enriquecimento ilícito
A propósito dos 50 anos da “compra” da TV Paulista por Roberto Marinho, cuja comemoração vai durar todo o ano de 2015, é de se refletir sobre o que ficou decidido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo nos autos da apelação no. 141.845-1/9, em que se discutiu a tal “compra e venda”, concretizada mediante a realização de uma Assembleia Geral Extraordinária totalmente ilegal:
“Não pode ter subsistência um negócio jurídico cujo proprietário da coisa objeto do negócio sequer participou da cogitada alienação. A entender-se de outra forma, estar-se-ia proclamando a legalidade do enriquecimento ilícito, o que não é possível sancionar-se, irrefutavelmente… a Assembleia não dispõe de poderes para determinar a alienação do que não lhe pertence”.
Ou seja, o Império de Roberto Marinho foi montado com base em apropriação indébita.