Documentário chinês revê a Era Mao Tsé-tung

14/05/2013 China

“Quando eu morrer, me enterrem no lado ensolarado do morro, pois tenho medo do frio”, disse uma criança chinesa, agora sem nome ou rosto, a seus companheiros de prisão adolescentes mais de meio século atrás. Para esses 4 a 5 mil prisioneiros juvenis no Campo de Trabalho Dabao, tais pedidos eram comuns, pois eles estavam cercados pela morte todos os dias.

Construído numa área remota e montanhosa no sudoeste da província de Sichuan no final de 1950, o campo de trabalhos forçados era uma cópia das instalações da ex-União Soviética para a “reforma” de crianças de rua.

Normalmente com idade entre 10 e 17, as crianças acabavam lá porque eles eram sem-teto, haviam cometido pequenos delitos como roubo, ou eram descendentes de “contrarrevolucionários”, como intelectuais rotulados de “direitistas”. A “educação” que eles recebiam incluía mais de 10 horas de trabalho pesado durante o dia, seguido de “sessões de luta” política à noite.

“Um sobrevivente me disse uma vez que eles não eram seres humanos naquele tempo, eles eram fantasmas”, disse a diretora Xie Yihui. “Sua humanidade foi em grande parte destruída.” Xie Yihui trabalhou com um jornalista investigativo para descobrir a história perdida dessas crianças e produziu um novo documentário chamado “Trabalhadores juvenis confinados em Dabao“.

As crianças eram obrigadas a fazer o trabalho agrícola pesado ou outras tarefas que até mesmo os adultos evitavam. Aqueles que trabalhavam lentamente eram chicoteados, mas o pior era a fome. Crianças famintas roubavam nas aldeias vizinhas em busca de alimento. “Eu sobrevivi pelo roubo”, disse o sobrevivente Wang Yufeng. “Eu roubei minha vida de volta.”

No entanto, muitos não tiveram a mesma sorte. Crianças pegas roubando frequentemente eram cruelmente punidas pelos aldeões igualmente famintos: seus dedos eram cortados, elas eram queimadas ou pimenta era aplicada em seus órgãos genitais. Colocando tudo que parecia comestível em suas bocas, a morte ou a intoxicação causadas pelo consumo de cogumelos venenosos, caranguejos e minhocas não cozidos, não eram algo raro entre as crianças de Dabao.

Se os dias eram pesadelos, as noites eram um inferno. Para quem não experimentou os episódios coordenados pelo Partido Comunista Chinês (PCC) como a Revolução Cultural, as sessões de luta política que caracterizaram a era Mao Tsé-tung são inconcebíveis. Assim como os adultos em todo o país, as crianças eram incentivadas, impelidas e forçadas a identificar e denunciar “inimigos” entre seus amigos e familiares.

Frequentemente, as acusações eram baseadas em atos falhos ou numa expressão facial incorreta, mas as punições eram brutais. Insultos verbais coletivos e tortura física, chamados de sessões de luta, eram comuns; a violência crescia rapidamente quando os acusados de simpatizarem com as vítimas se tornavam alvos também.

A documentarista Xie Yihui ficou intrigada com o destino de milhares das crianças enviadas para o Campo de Trabalho Dabao, numa parte remota da província de Sichuan. Ela rastreou os sobreviventes e dirigiu um documentário sobre suas angustiantes experiências (Ai Xiaoming)
A documentarista Xie Yihui ficou intrigada com o destino de milhares das crianças enviadas para o Campo de Trabalho Dabao, numa parte remota da província de Sichuan. Ela rastreou os sobreviventes e dirigiu um documentário sobre suas angustiantes experiências (Ai Xiaoming)

Meninas de Dabao inventavam métodos de tortura para usar contra outras nessas sessões, como furar mamilos com agulhas ou esfregar a vagina com escovas de dente.

Em 1961, quando crianças começaram a ser liberadas, pelo menos 2.600 dos presos originais haviam perecido. O sobrevivente Yan Jiasen disse que 12 crianças morreram num dia e ele mesmo foi considerado morto numa ocasião – ele foi jogado numa pilha de pequenos cadáveres e passou a noite lá, inconsciente. “Fui acordado pela chuva no dia seguinte e rastejei de volta para o campo”, disse Yan Jiasen.

Após o fechamento do campo em 1962, os sobreviventes se tornaram principalmente trabalhadores infantis considerados pessoas “reformadas”, enquanto os mortos foram enterrados sem cerimônia perto do Campo de Dabao em valas comuns. Nenhuma morte foi oficialmente documentada.

Por muito tempo, a única pessoa que tentou investigar este pedaço da história foi Zeng Boyan, um ex-editor de jornal que foi preso num campo de trabalho para adultos, localizado nas proximidades, em 1958. Seus esforços foram em sua maioria infrutíferos até a ativista de direitos e documentarista independente Xie Yihui ler sobre Dabao num dos livros de Zeng Boyan e decidir ajudá-lo a reconstruir a história.

Juntos, os dois entrevistaram muitas pessoas, desde sobreviventes até moradores locais e guardas do campo de trabalho, e criaram o documentário intitulado “Trabalhadores juvenis confinados em Dabao“. O filme estreou em 1º de maio em Hong Kong e Taiwan, juntamente com outro documentário, “Mulheres sobre cabeças de fantasmas“. Este último retrata a tortura no Campo de Trabalho Feminino de Masanjia, no nordeste da China. “Trabalhadores juvenis confinados em Dabao” está programado para estrear na Suíça e no Reino Unido em setembro.

A diretora Xie Yihui também planeja disponibilizar o documentário online com o objetivo de ele chegar a mais pessoas e gerar maior conscientização. “Espero apresentar algumas das verdades desse pedaço da história por meio deste documentário, para preservar a história de forma que as pessoas aprendam com isso”, disse Xie Yihui à Rádio Netherlands Worldwide.

“‘Trabalhadores juvenis confinados em Dabao’ não deve ser abandonado num arquivo. Ele deve ser parte das mudanças sociais e devemos aproveitar o poder deste documentário para acelerar o fim do sistema de reeducação pelo trabalho forçado”, disse ela.

O ativista de direitos e professor chinês Ai Xiaoming comentou em seu blogue que o Campo de Dabao era um Auschwitz juvenil na China e uma memória do genocídio. “O relato dos sobreviventes desafia o limite da humanidade e o impacto é quase sufocante”, disse ele. “O filme é um golpe mortal no sistema anti-humanidade e anti-humano dos campos de reeducação pelo trabalho forçado” na China, finalizou Ai Xiaoming.