Em entrevista exclusiva, Kevin Slaten, coordenador do China Labor Watch, compara situação na China e no Brasil. Na França, ONGs querem processar empresa por propaganda enganosa
Entre agosto e setembro de 2012, relatórios publicados pela China Labor Watch (CLW), uma organização não governamental (ONG) fundada treze anos atrás em Nova York (EUA) com a missão de monitorar as condições de trabalho no gigante asiático, arrastaram a multinacional sul-coreana Samsung para o redemoinho que já havia maculado a imagem de sua maior rival, a norte-americana Apple.
Denúncias de trabalho infantil e condições degradantes em fábricas próprias e de fornecedores instaladas na China arranharam a credibilidade da companhia que é líder mundial do mercado de smartphones, com lucro líquido de US$ 22,3 bilhões no ano passado.
Meses depois, a Samsung veio a público para negar as acusações e comunicar que realizaria auditorias nas indústrias de sua cadeia produtiva. “Ela respondeu dizendo que realizaram auditorias em todas as suas 250 fábricas na China (próprias e de fornecedores). Mas até agora só vimos a publicação dos resultados de metade delas”, afirma Kevin Slaten, coordenador da CLW.
As denúncias feitas pela organização norte-americana repercutiram no meio do caminho entre Pequim e Nova York. Em fevereiro deste ano, um grupo de três ONGs de Paris protocolou um pedido oficial para que o Ministério Público francês processasse a Samsung por prática de “propaganda enganosa”. A justificativa para a ação é que a empresa sul-coreana ludibria os consumidores ao sustentar que oferece condições dignas a seus trabalhadores.
“O Ministério Público decidiu repassar a investigação preliminar para a polícia. De acordo com as evidências encontradas, ele pode seguir ou não com o caso. Mas já é um bom começo”, comemora Sophia Lakhdar, diretora da Sherpa, uma das organizações que encaminhou o pedido de processo.
Assim como Slaten, Sophia acredita que “as violações trabalhistas no Brasil são similares às da China” e que a companhia “é responsável pelas condições de trabalho de seus empregados diretos e por aqueles que trabalham para fornecedores, em qualquer parte do mundo”.
Slaten, por sua vez, torce para o sucesso da iniciativa das ONGs francesas. “Tomara que a Samsung seja punida pela prática de propaganda enganosa”, afirma.
Abaixo, a íntegra da entrevista.
Repórter Brasil – Na fábrica da Samsung da Zona Franca de Manaus há 5.600 empregados. No ano passado, houve mais de 2 mil pedidos de afastamento médico, por tendinites e problemas na coluna. Alguns funcionários ficam em pé por 10 horas e trabalham até 15 horas por dia. As condições são muito diferentes das verificadas na China?
Kevin Slaten – De acordo com as nossas investigações em fábricas chinesas, as condições de trabalho são parecidas. Lá as pessoas trabalham mais horas do que a lei permite. E o salário não é suficiente para cobrir os gastos do dia a dia. Na China, os trabalhadores dependem das hora-extras para sustentar a família. Em cidades como Xangai, o custo de vida ficou muito alto, mas os salários não aumentaram o suficiente para compensar o aumento dos preços.
Aqui no Brasil, o Ministério Público do Trabalho (MPT) está processando a Samsung e quer que a empresa pague uma indenização mínima de R$ 250 milhões. Isso poderá fazer a Samsung rever sua política trabalhista?
Kevin Slaten – É um caso importante e que será notícia assim que for tornado público. É uma forma de jogar luz sobre abusos nas fábricas e colocar pressão sobre a Samsung e sobre outras empresas porque se trata de um processo judicial que envolve muito dinheiro, mesmo que seja apenas um pequeno porcentual do lucro da empresa. Temos de aguardar, ver se o processo será bem-sucedido e se a Samsung pagará mesmo todo esse dinheiro. Aí então vamos ver se ela vai mudar sua política trabalhista ao menos no Brasil – e talvez em todo o mundo. Parece uma boa ideia mover processos judiciais baseados nas legislações locais. Se a empresa viola a lei, ela deve pagar por isso. Na China, as empresas também desrespeitam muito a legislação, porém, mover um processo com um valor tão alto como esse seria muito mais difícil do que no Brasil.
Além da indenização, um dos pedidos mais importantes da ação movida pelo MPT é a implementação de pausas de 10 minutos a cada 50 minutos de trabalho, como prevê a Norma Regulamentadora 17, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Qual é a sua avaliação sobre esse tipo de medida?
Kevin Slaten – Nós falamos muito sobre assunto no relatório que lançamos no ano passado sobre as fábricas da Samsung na China. Muitos trabalhadores são obrigados a trabalhar em pé em turnos de até 12 horas. E esse tipo de pressão sobre seus corpos gera uma série de doenças ocupacionais. A Samsung até colocou alguns equipamentos ergonômicos para os trabalhadores utilizarem, também disponibilizou mais cadeiras, porém, mesmo que se ofereçam essas proteções ergonômicas, se você trabalhar constantemente, sem intervalos, ainda terá lesões por sobrecarga de esforço nos músculos e nos tendões. É isso que essa Norma Regulamentadora quer prevenir no Brasil. Creio que não exista uma norma como essa na China. Mas seria uma boa ideia criar uma.
No Brasil, a norma até existe. Mas não é fácil colocá-la em prática.
É com isso que os trabalhadores na China e no Brasil lidam. Não importa quão forte a lei seja, é necessário cumpri-la. Pessoas que não conhecem bem a China dizem que ela tem leis horríveis que não protegem os trabalhadores. Na realidade, a legislação trabalhista na China é forte – em alguma medida, é até mais protetiva do que a legislação nos Estados Unidos. A diferença é que ela não é cumprida. E uma legislação que não é cumprida é inútil. Infelizmente, essas companhias se aproveitam disso. Essa é a característica lamentável das cadeias produtivas globais: as companhias pulam de país em país até acharem um lugar que tenha essa fragilidade.
No ano passado, a China Labor Watch publicou alguns relatórios sobre as condições de trabalho nas fábricas da Samsung na China. Quais foram os principais problemas encontrados e como a empresa reagiu?
Kevin Slaten – Nós listamos 16 grupos de violações trabalhistas – violações legais ou éticas. Dentre as mais importantes, há a questão das jornadas exaustivas: trabalhadores de uma fábrica fizeram 186 horas-extras em um mês. Empregados que ficam em pé em turnos de 12 horas. Trabalhadores que não têm um dia sequer de folga em um mês inteiro. Outro problema comum nas fábricas da China é que os trabalhadores precisam comparecer a reuniões antes de começarem seus turnos, mas não são pagos por isso. Trabalho de adolescentes, trabalho infantil. Discriminação na hora de contratar. Falta de segurança no trabalho. Enfim, há muitas questões. Nós fizemos essa lista de 16 grupos de abusos e a Samsung respondeu dizendo que realizaram auditorias em todas as suas 250 fábricas na China (próprias e de fornecedores). Mas até agora só vimos a publicação dos resultados de metade delas.
Qual é a sua avaliação sobre a iniciativa das ONGs francesas que estão tentando processar a Samsung por propaganda enganosa?
Kevin Slaten – Nós apoiamos essa pressão sobre a Samsung na França. Esse caso é obviamente diferente do que acontece no Brasil porque essas organizações querem processar a empresa por propaganda enganosa e não por abusos cometidos contra os trabalhadores. É como se estivessem usando outro método para punir a companhia. A Samsung e muitas outras empresas promovem seus códigos de conduta, dizendo: “somos uma grande companhia, tratamos muito bem nossos funcionários”. Mas, na realidade, essas coisas não acontecem do jeito que a Samsung diz. Tomara que ela seja punida pela prática de propaganda enganosa.
Você está acostumado a monitorar as condições de trabalho na China. Foi uma surpresa receber denúncias de trabalho degradante em uma fábrica da Samsung no Brasil?
Kevin Slaten – Para mim, não é uma surpresa. Se a Samsung faz isso na China, vai tentar fazer em outros países também. Eles tentam se beneficiar das legislações trabalhistas que não são cumpridas. Mas, pessoalmente, fiquei impressionado com o valor do processo judicial de R$ 250 milhões. Mesmo que seja menos de 0,5% do lucro da empresa em um ano, ainda é uma quantia significativa. Tomara que atingir a Samsung no bolso ajude a empresa a reconsiderar suas prioridades. Estou empolgado para saber o que vai acontecer depois do processo.
Essa matéria foi originalmente publicada pelo Repórter Brasil