Em contraste com os esforços fervorosos para acompanhar o hino nacional da República Popular da China e o hasteamento de sua bandeira vermelha, centenas de chineses se reuniram numa cidade chuvosa no nordeste do país em 1º de outubro para comemorar discretamente a vida de um vendedor ambulante que foi recentemente executado pelo Estado.
Xia Junfeng, de 36 anos, foi condenado à morte em 25 de setembro, mas desde então se tornou um ícone nacional da injustiça e da resistência, embora – ou talvez porque – ele tenha matado dois policiais urbanos, chamados ‘chengguan’.
Autodefesa
Em 16 de maio de 2009, Xia Junfeng foi espancado em seu estande de rua por dois chengguan e depois levado para uma delegacia de polícia. Os chengguan são comumente encarregados de manter a ordem em ruas movimentadas da China, mas há inúmeras histórias de violência extrema que eles praticam com impunidade contra os que cruzam seu caminho.
Após os chengguan levarem Xia para a delegacia, ele disse mais tarde que eles se preparavam para atacá-lo violentamente, então ele puxou uma faca de cozinha de sua roupa e esfaqueou mortalmente dois chengguan e feriu outro.
Funeral sombrio
A procissão funeral de Xia, realizada em 1º de outubro, atraiu outros vendedores ambulantes, advogados de direitos civis e simpatizantes de toda a China. A maioria deles soube do incidente e da história de Xia via internet e sua morte se tornou um ponto de congregação dos insatisfeitos com os abusos do sistema legal do Partido Comunista Chinês (PCC).
Zhang Jing, a esposa de Xia, e o filho carregaram sua foto e cinzas no funeral no Cemitério Memorial Floresta no subúrbio da cidade de Shenyang, no nordeste da China. O evento ocorreu no início da manhã.
“Não haverá banquete; nós não aceitamos dinheiro de presente; sem faixas ou palavras de ordem”, escreveu Zhang Jing dias antes no Weibo, um serviço da internet chinesa similar ao Twitter, anunciando o evento. A postagem foi posteriormente excluída pelas autoridades.
A sentença de morte de Xia foi proferida pelo tribunal com base no testemunho de outros quatro chengguan, colegas daqueles que ele matou. Mas as autoridades negaram que outros que viram Xia ser maltratado e agredido testemunhassem, segundo Chen Youxi, o advogado de Xia, numa entrevista com o Ku6, um dos maiores sites de vídeo da China.
Injustiça, raiva e poesia
Grande parte da mágoa sobre o caso de Xia está relacionada à recente punição altamente politizada de Gu Kailai – a esposa de Bo Xilai, um ex-membro desgraçado do Politburo – que teve sua pena de morte suspensa, em troca de prisão perpétua, pelo assassinato premeditado de um empresário britânico.
Xia, por outro lado, estava apenas se defendendo, segundo muitos que ficaram furiosos com a execução.
“Os chengguan não dão chance às pessoas para viverem. Eles merecem ser espancados! Eles sabem que as pessoas pobres não são fracas quando eles morrem espancados!”, escreveu um internauta anonimamente.
“Quando os chengguan matam vendedores ambulantes, eles não são condenados à morte; quando a esposa de um líder do PCC assassina um estrangeiro, ela não é condenada à morte; quando campanhas políticas mataram inúmeras pessoas, o líder [Bo Xilai] não foi condenado à morte”, escreveu Chen Zonghe, um investidor e blogueiro, no Weibo.
“Xia Junfeng se foi”, acrescentou ele. “Tentamos incisivamente falar por ele por muitos anos, mas no fim assistimos ele ser levado e executado.”
Alguns trouxeram flores para sua esposa, enquanto outros escreveram poesias comoventes, que ela pendurou por sua casa.
A chuva em 1º de outubro somou-se à atmosfera sombria. “É o céu que está triste e derramando lágrimas pelo sofrimento da China?”, perguntou um internauta.
‘Dia Nacional’?
A data do funeral foi particularmente comovente para muitos: o 1º de outubro deste ano é o 64º Dia Nacional da República Popular da China e marca a fundação da “Nova China” pelo PCC.
As autoridades chamam de aniversário da China, mas agora ele tem sido chamado de ‘dia de lembrança’ pelo vendedor de rua que lutou contra um sistema injusto e por tantos outros que foram mortos pelo comunismo na China.
“É um dia nacional muito especial este ano”, disse o investidor Chen. “Velas em vigília enchem o Weibo”, acrescentou ele, referindo-se aos ícones de velas que os internautas postaram para marcar seus sentimentos.
“É bastante irônico que por um lado seja uma celebração nacional e por outro seja um pequeno e triste funeral”, comentou um blogueiro.
Violência nas ruas
O dever dos chengguan, oficialmente, é defender os estatutos municipais quanto à aparência e passagem das ruas e à disposição dos vendedores e de seus objetos de trabalho. Mas eles são notória e amplamente conhecidos pela violência chocante que empregam em ação.
O caso mais recente ocorreu em julho, quando um vendedor de melancia foi morto numa disputa com os chengguan, que o golpearam com força na cabeça com sua própria escala de metal usada para pesar frutas. O caso foi concluído com uma compensação de 897 mil yuanes (US$ 146.533) pagos à família. Nenhum chengguan foi enviado para a prisão e muito menos executado.
Uma série de imagens de chengguan espancando pessoas na rua se tornou viral na véspera do Dia Nacional. Numa das imagens, um chengguan uniformizado ajoelhava-se no pescoço de uma mulher, pressionando-a contra o meio-fio da rua. Outra foto mostrava um coletor de lixo idoso caído no chão com as mãos na cabeça sangrando após ser espancado por um chengguan.
Foi nesse contexto que Xia enfrentou a violência e o abuso dos chengguan. “Eu estava me defendendo. Eu não queria matá-los. Eu não sou culpado!”, disse Xia à família antes de ser executado. “Eu não aceito a sentença, mesmo que eu também tenha de morrer”, disse sua esposa à imprensa de Hong Kong.
Um internauta comentou: “Quando um assassino se torna um herói no coração das pessoas, será que não deveríamos nos perguntar por quê? Será que esta sociedade está doente?”