Desmitificando alguns mitos sobre bancos centrais

03/02/2014 14:57 Atualizado: 03/02/2014 21:34

O moderno sistema mundial de bancos centrais se sustenta sobre mitos. E, como vários mitos, eles contêm um elemento de verdade que foi distorcido pelo exagero e pelo uso indevido.

Em dezembro de 2013, o Banco Central americano, o Federal Reserve — aquela máquina que, ao inundar o mundo de dólares, obriga os bancos centrais de outros países a adotarem a mesma política monetária para evitar valorizações cambiais, e que, ao adotar a política inversa (aumento de juros), os obriga a seguir o mesmo padrão — completou seu 100º aniversário. A ocasião, portanto, é apropriada para se desfazer alguns mitos persistentes.

O primeiro mito é o de que bancos centrais são intrinsecamente necessários para o funcionamento das economias de mercado. Tanto a teoria quanto a história contrariam e desmentem isso. Peguemos os exemplos dos bancos centrais mais famosos do mundo.

O Federal Reserve só foi criado em 1913, o que significa que durante o período de maior enriquecimento da história americana — 1865 a 1913 — não havia nenhum banco central. Mais ainda: quando foi criado, o Fed não possuía a função de gerenciar a oferta monetária do país. Os EUA ainda operavam sob um padrão-ouro clássico e, sendo assim, não havia necessidade de se ter um banco central para controlar a oferta monetária. O uso do ouro, ou de qualquer outra commodity, como moeda impõe uma limitação natural à criação de dinheiro, limitação essa representada pelo custo de se extrair da natureza quantidades adicionais desta commodity. É apenas quando se adota dinheiro de papel e sem nenhum lastro em commodity (o chamado dinheiro fiduciário) que os bancos centrais adquirem a função de controlar a oferta monetária. E é exatamente este gerenciamento da oferta monetária — que leva a uma criação cíclica de dinheiro — o que gera os ciclos econômicos que fustigam as economias de mercado.

O Banco Central do Canadá só foi criado em 1935. O sistema bancário canadense passou incólume à Grande Depressão, não registrando nenhuma grande falência bancária. Em contraste, milhares de bancos americanos quebraram, não obstante a existência do Federal Reserve. Essas falências bancárias em larga escala só acabaram porque Franklin Roosevelt decretou feriado bancário e criou o FDIC, o seguro federal para depósitos (o que fez com que as pessoas parassem de retirar seu dinheiro dos bancos). O Fed não deu qualquer contribuição para a estabilidade bancária.

O segundo mito é o de que bancos centrais são necessários como emprestadores de última instância — isto é, para ofertar liquidez em épocas de tensão financeira, quando o mercado de crédito interbancário fica paralisado. As operações de liquidez criadas pelo Federal Reserve logo após o colapso do Lehman Brothers em 2008 vêm sendo usadas como o mais recente exemplo prático desta função. Mas o problema é que este argumento inverte causalidade e efeito.

Walter Bagehot, o eminente jornalista financeiro britânico do século XIX, cunhou a expressão “emprestador de última instância” em seu clássico livro “Lombard Street“. Ele disse que esta era uma função essencial do Banco Central da Inglaterra.

No entanto, o contexto em que ele disse isso quase nunca é mencionado. Bagehot sabia que um banco central impunha que todos os bancos concentrassem nele suas reservas, automaticamente fazendo com que ele se transformasse num emprestador de última instância. Se uma instituição ordena que os bancos repassem a ela parte do dinheiro que foi neles depositado, é óbvio que tal instituição se torna uma “emprestadora de última instância”. Mas Bagehot não acreditava que um banco central era inevitável ou mesmo desejável.

Para Bagehot, o “sistema natural” era aquele que “surgiria naturalmente caso o governo não se intrometesse no sistema bancário”. Haveria “vários bancos de tamanho semelhante ou pelo menos muito parecidos”. Ele descreveu este arranjo como “o sistema de várias reservas”, no qual cada banco seria responsável por suas próprias reservas, o que levaria a um sistema bancário mais robusto. No debate atual, o celebrado “emprestador de última instância” de Bagehot é uma solução de eficácia secundária — secundária a um arranjo de bancos operando concorrencialmente num sistema sem um banco central para protegê-los e socorrê-los.

Após a Guerra Civil, o sistema bancário dos EUA não operou como o “sistema natural” visionado por Bagehot. Regulamentações governamentais concentraram as reservas bancárias nas principais cidades americanas, com o previsível resultado de que a economia americana se tornou sujeita a pânicos e corridas bancárias (as quais eram raras em outros países que também ainda não tinham um banco central), culminando no famoso Pânico de 1907. Em vez de corrigir os problemas do sistema bancário nacional, os legisladores, liderados por um presidente progressista, Woodrow Wilson, criaram um banco central, o Federal Reserve System.

Um terceiro mito é o da independência do banco central. Isso varia de país para país, mas em todos o banco central se submete aos caprichos do governo. Varia apenas a intensidade com que tal sujeição é percebida. Nos EUA, o Federal Reserve é visto como sendo uma entidade independente desde o Acordo de 1951 junto ao Tesouro. Após o acordo, o Fed não mais tinha a obrigação de manter os preços dos títulos do Tesouro (o que, na prática, significa fixar a taxa de juros). Tal obrigação, oriunda das necessidades fiscais impostas pela Segunda Guerra Mundial, havia impedido o Fed de combater a inflação de preços por meio da elevação dos juros durante a Guerra da Coreia.

Desde 1951 não houve nenhuma alteração relevante no status legal do Fed. Ele atuou de forma independente durante algumas épocas — porém, durante outras, suas ações foram completamente submissas a outros setores do governo.

Durante a década de 1950, quando o presidente do Fed era William McChesney Martin, a inflação se manteve baixa. No entanto, isso pouco teve a ver com Martin. O presidente Dwight Eisenhower era resolutamente contra a inflação, e durante sua gestão o governo federal praticamente não apresentou déficits orçamentários. Quando os presidentes Kennedy e Johnson aceitaram o ativismo fiscal keynesiano, os déficits cresceram. Martin não demonstrou problema algum em acomodar o aumento dos gastos do governo com inflação monetária. Ele não acreditava que a política monetária poderia — ou deveria — operar de forma independente da política fiscal. O resultado foi a primeira contínua inflação de preços da história americana em períodos de paz.

A independência do Fed atingiu seu ponto mais baixo sob a gestão de Arthur Burns. O diário que ele mantinha durante os anos Nixon confirma que a política do Fed havia se tornado totalmente submissa aos objetivos do governo e à campanha à reeleição de Nixon. Como ele escreveu certa vez em seu diário: “Eu estava encarregado de cuidar da política monetária e ele [Nixon] não precisava se preocupar quanto à possibilidade de o Federal Reserve restringir a economia.” O resultado desta postura foi a grande inflação da década de 1970.

Paul Volcker, que foi o presidente do Fed de 1979 a 1987, restaurou a reputação anti-inflacionária da instituição. Sua gestão é considerada até hoje o genuíno modelo de independência. E, verdade seja dita, havia vários políticos no legislativo, bem como pessoas fora do governo, que criticavam asperamente sua política de restrição monetária, a qual de fato domou a inflação e estimulou o crescimento econômico americano da década de 1980. Não obstante essas reclamações, Volcker, assim como seu antecessor Martin, tinha o apoio resoluto dos dois presidentes americanos a cujas administrações ele serviu: Jimmy Carter e Ronald Reagan.

Na atualidade, foi difícil ver algum resquício de independência no comportamento do Fed sob Ben Bernanke. Em 2011, por exemplo, o Fed comprou 77% dos títulos da dívida que foram emitidos pelo Tesouro, um comportamento sem precedentes. Com seu compromisso de manter a taxa básica de juros em praticamente zero durante um longo prazo, Bernanke vinculou a política monetária à política fiscal do governo Obama com o objetivo de inflar artificialmente os preços dos ativos (imóveis e ações) da economia americana. Isso é o oposto do que deve fazer um banco central independente — e denota um Fed ainda mais submisso a um presidente do que ele já havia sido durante a era Burns/Nixon.

A lição de toda esta história é aquilo que chamo de “banco central sem romance”, parodiando um famoso artigo escrito pelo Nobel de economia James Buchanan intitulado “Política sem Romance“. Um banco central é necessário apenas para uma economia que aceita que o governo detenha o monopólio da produção de papel-moeda fiduciário. E, durante alguns períodos, ele de fato pode se comportar de maneira independente — mas não quando o governo decide incorrer em déficits orçamentários de larga escala, como os atuais que estão ocorrendo nos EUA sob Obama.

Buscar a estabilidade de preços é um objetivo que praticamente todos concordam ser a responsabilidade de um banco central. No entanto, foi exatamente neste objetivo que tanto o Fed quanto vários outros bancos centrais do mundo fracassaram miseravelmente. Desde sua criação em 1913, os preços ao consumidor americano aumentaram 2.326%.

Se um governo conseguir acabar com seus déficits orçamentários, a estabilidade de preços pode vir a ser um objetivo alcançável para seu banco central. Caso contrário, a existência de um banco central não passa de pura mitologia.

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Gerald P. O’Driscoll é membro sênior do Cato Institute e foi vice-presidente da sucursal do Federal Reserve em Dallas

Esta matéria foi originalmente publicada pelo Instituto Ludwig von Mises Brasil