É difícil descobrir o que é mais notável no livro de Frank N. Pieke sobre os centros de formação de quadros comunistas na China: os vislumbres tentadores de um estudo que não deu frutos ou o aparente fracasso em entender o assunto estudado. Em ambos os casos, o que temos é fascinante e vale a pena analisar, mas deve ser abordado com o conhecimento de que um botânico pode perder de vista a floresta em meio às árvores.
Pieke passou um bom tempo entre 2004 e 2007 viajando pelas escolas de formação do Partido Comunista Chinês (PCC) na China, chamadas de Escolas do Partido, entrevistando membros do PCC e revisando documentos do PCC sobre como a formação de quadros é estruturada e o que o PCC espera alcançar com isso.
Quadros, é claro, são as “pequenas engrenagens antiferrugem” que personificam e reforçam o poder do Partido Comunista. É esperado que eles se sacrifiquem – intelectual, espiritual e moralmente ou de qualquer forma julgada necessária – pelo PCC. E por isso eles são recompensados. Os frutos de sua obediência são descritos por Pieke com o excelente termo “culto de poder”: os membros do PCC se tornam parte de um culto de poder da elite que é separado e diferente das pessoas comuns.
Pieke imediatamente deixa claro que o culto de poder e exclusividade atual é diferente do existente na era maoísta. “A experiência revolucionária em primeira mão e o envolvimento direto na vida e obra das massas trabalhadoras da China é coisa do passado”, escreve ele. “Em vez disso, os quadros se tornaram uma elite dominante que venera o aprendizado em livros e as qualificações educacionais formais. Como a personificação e principal instrumento do papel da liderança do PCC na sociedade, os quadros devem ser simultaneamente líderes, gestores, exemplos morais e servos fiéis do PCC.”
Câmara incubadora
O “sentido de identidade” dessas pessoas “atravessa as fronteiras entre forte individualidade, total submissão à vontade do PCC, exclusividade elitista e anonimato sem rosto”, segundo Pieke.
Tradicionalmente, a formação do PCC visa principalmente a incutir uniformidade e compromisso ideológico com o PCC, escreve Pieke. Mas, na China moderna, também visa dar aos quadros “habilidades gerenciais, conhecimento profissional e ampla compreensão da China e do mundo que o PCC considere necessário às pessoas que terão de conduzir o país à modernidade plena e à proeminência global”. Isso tem seus limites, é claro.
A escola de quadros é uma forma útil de estudar o PCC, como Pieke deixa claro. É a câmara de incubação dos futuros líderes do PCC, bem como um local de socialização, recuperação e redoutrinação para burocratas veteranos.
“No contexto da formação de quadros”, escreve Pieke, “o Partido-Estado comunista chinês desenvolveu técnicas disciplinares, educacionais e de vigilância específicas que fazem parte de uma estratégia maior de governança que converte o PCC-Estado e os próprios líderes em seus objetos.”
“No processo, o PCC-Estado cria um culto de poder altamente específico que transforma os administradores burocráticos numa elite que encarna o carisma do PCC e sua ideologia… Desta perspectiva, o PCC e sua ideologia não são simplesmente veículos para o exercício do poder da elite dominante, mas são geradores dessa elite e de seu culto de poder.”
Bestas-feras
Não há nada a discordar aqui, mas é necessário mais elaboração sobre as consequências da criação dessa elite. Pelo menos, sabemos que a escola de quadros é o meio do PCC afirmar seu status a seus membros por meio do estudo político e do reforço do dogma do PCC e ao público em geral por meio da nebulosidade mística que envolve suas instituições.
Mas Pieke não conecta isso com as ações concretas de funcionários do PCC na sociedade, que é a causa de tanto sofrimento na China contemporânea. O leitor fica a se perguntar por que não.
O livro passa vários capítulos no meio da obra lidando com a hierarquia burocrática, as estruturas organizacionais, as mudanças e modernizações no regime de doutrinação do PCC e muito mais.
Mas quem são essas pessoas, esses quadros, e como a formação deles no Partido Comunista está associada a sua criação de bestas-feras? (Recordando o adágio de Johnson: “Aquele que faz uma besta de si mesmo se livra da dor de ser um homem” – isto parece uma formulação particularmente útil para descrever o processo de destruição da identidade e de reconstituição doutrinária que o Partido Comunista exige ostensivamente de seus quadros.)
O propósito dos quadros é servir o PCC no âmbito que o PCC comandar. Eles pagam o preço de sua consciência e da soberania de suas mentes e são recompensados como parte do culto de poder.
A maioria do breve relato correto de Pieke consiste de recordações e descrições, mas quando ele profere os próprios pontos de vista às vezes pode parecer difícil encontrar sentido. Ele argumenta, por exemplo, que “a contínua presença do Partido Comunista Chinês não é o problema que as reformas têm de superar, muito pelo contrário, a combinação de adaptabilidade modernista do PCC e dos princípios ideológicos e organizacionais leninistas é uma das principais causas dos 25 anos de crescimento econômico e estabilidade social”.
Pieke esquece de mencionar, no entanto, que este último não teria sido necessário se o PCC não tivesse passado os primeiros 30 anos de seu regime destruindo o país. E ele não pergunta quais as formas de repressão que compõem o termo “estabilidade social” ou que crescimento teria sido possível na China sob outros sistemas.
A grande promessa não satisfeita na obra de Pieke é que ele não faz o suficiente para nos ajudar a entender os quadros do PCC como observadores do regime chinês os percebem, frequentemente por meio de reportagens e declarações espontâneas vazadas. Para os chineses que estão sob seus calcanhares, os quadros do PCC podem ser cruéis e perigosos. Em algumas cidades, os funcionários do PCC e a máfia são indistinguíveis. De maneira geral, o próprio PCC se comporta identicamente a uma organização criminosa.
O que realmente ocorre
Os centros de formação de quadros onde Pieke passou algum tempo devem, é claro, mostrar um lado moderno e sofisticado do PCC. Mas no contexto do que realmente se passa na China, quanto eles escondem?
Consideremos, por exemplo, Tu Yuangao, um cozinheiro de 24 anos da província de Hubei, que foi morto em 2009 após exigir melhor salário e ameaçar expor que o hotel onde trabalhava era um local de prostituição e venda de droga. Quando ele foi jogado da varanda, seus órgãos genitais estavam pregados no seu crânio com um prego. A polícia não quis liberar o corpo.
Uma multidão rapidamente se reuniu e se revoltou. Relatórios disseram que o chefe de polícia e a esposa da maior autoridade judiciária local – instrumentos do PCC, membros ou não – estavam envolvidos no estabelecimento.
Outro caso bem conhecido é o de Li Shufen, uma jovem de 16 anos que foi estuprada e afogada pelo filho de um oficial da Secretaria de Segurança Pública local e por um amigo deste. Quando as autoridades locais do PCC tentaram encobrir o caso, as pessoas se revoltaram. Recentemente, um homem chamado Xue Jinbo, da vila de Wukan, famosa por protestos anticorrupção em 2011, foi torturado e morto sob custódia da polícia, enquanto lutava pelos direitos dos aldeões.
Os exemplos acima nem chegam perto da dimensão da supressão dos advogados de direitos civis, jornalistas e outros ativistas ou da perseguição sistemática à disciplina espiritual do Falun Gong e vários grupos religiosos, que são submetidos à barbaridade extrema em toda a China.
Estas supressões e perseguições são promulgadas e executadas pelos quadros do PCC que sem dúvida passam seu tempo nas confortáveis habitações que são o objeto de estudo de Pieke. A mentalidade que permite essas atrocidades exige uma explicação. Alguém poderia pensar que a escola de quadros seria um lugar para começar a encontrar uma resposta. Pieke, infelizmente, não tenta nos dar uma.