Com a abundante conversa sobre a democracia em crise, especialmente na Europa, uma avaliação inteligente de como as democracias têm se saído em crises passadas é extremamente necessária. É isso que o livro “A armadilha da confiança“, de David Runciman, oferece – com resultados decididamente mistos. Runciman é um bom escritor e um pioneiro corajoso. Pouco foi publicado sobre o assunto e (como observei ao tentar algo semelhante em “A vida e morte da democracia“) não é uma tarefa nada fácil comparar um grande número de casos de diferentes períodos históricos e chegar a um retrato convincente de por que as democracias fracassaram ou foram bem-sucedidas.
A imagem que ele esboça é certamente ousada: no século passado, com o fracasso de Woodrow Wilson em promover a democracia após a I Guerra Mundial até o quase colapso do sistema bancário em 2008, as democracias têm sido permeadas de confusão, malabarismos políticos tolos e recuos procrastinados. Elas são pobres em antecipar crises; levam uma eternidade para ler os escritos na parede; são facilmente distraídas por eventos frívolos da mídia e crises falsas; e são sedadas por seu histórico de sucesso (isso é a armadilha da confiança).
Sobrecarregada por “eleições, opinião pública volúvel e propriedades constitucionais”, as democracias normalmente não têm um senso de urgência ou de proporção. Elas cambaleiam pelas crises desencadeadas por forças antidemocráticas, como a guerra e o fracasso do mercado. Em seguida, elas mexem os polegares, geralmente por tanto tempo que, finalmente, são forçadas a entrar em ação. O quadro das democracias em períodos de crise “não é bonito e cria um sentimento generalizado de decepção”.
Ter ambas as coisas
Embaralhar-se pelo caminho é de fato o que as democracias fazem melhor, mas o que é surpreendente é a forma como Runciman coloca os dois bob (moeda britânica) em cada sentido de democracia. A resiliência das democracias em lidar com crises o leva a questionar o “apetite democrático perene de ouvir o pior de si mesmo”. Em situações difíceis, as democracias tipicamente superam as “autocracias” (seu tratamento de emergência é deixado em grande parte indiscutido, o que é uma grande falha de todo o argumento). No entanto, as democracias, diz ele, são aleijadas por seu hábito de procrastinação, e por isso elas recebem sua repreensão. “Democracias sobrevivem a seus erros”, escreve ele. “Assim, os erros continuam vindo.”
Runciman é um democrata relutante, cuja Lei da Democracia Hesitante (chamemos assim) tem raízes mais profundas do que o punhado de exemplos históricos cuidadosamente selecionados que ele usa para apoiar o seu caso. Isso diz que cidadãos de carne e sangue, movimentos sociais, órgãos de monitoramento do poder e outras forças da sociedade civil estão ausentes em seu livro. O “apetite [democrático destas forças] pela exposição e confronto” é julgado como “grosseria adolescente”.
Palavras duras, mas elas ajudam a explicar por que Runciman pensa que crises são mais bem tratadas por elites políticas afeitas à seriedade sem brincadeiras e à vontade de agir rápida e decisivamente. É a antiquada visão elitista de Max Weber sobre a política, e é por isso que Runciman, um velho etônio, admira líderes que impõem respeito por suas ações: animais políticos fortes em “autocontrole, disciplina e ação coordenada”; personalidades sagazes com inteligência afiada; comandantes frios quando sob pressão, que sabem como identificar uma crise e não têm vergonha de bater a cabeça e pisar nas pessoas para sobreviver ao momento do acerto de contas.
Nada disso (veja os casos do líder chinês Xi Jinping ou do marechal egípcio Abdel Fattah el-Sissi) tem muito a ver com a democracia, mas é por isso que o apego secreto de Runciman à política de elite alimenta sua reticência geral sobre a democracia, entendida como escrutínio público e castigo do poder arrogante. É também por isso que ele ignora a vinda de formas de monitoramento da democracia. Desde 1945, muitas pessoas vieram a pensar, por boas razões, que as democracias não devem nutrir fortes líderes armados, mesmo quando eleitos pela maioria dos votantes.
Novos dispositivos de alerta precoce para detectar e lidar com situações de crise democraticamente (do Greenpeace e WikiLeaks até a Lei Saskatchewan de Planeamento de Emergência) estão agora na agenda política. Neste livro, infelizmente, estas iniciativas não são mencionadas. Runciman ignora a grande mudança de paradigma que está ocorrendo no mundo real da democracia. À medida que a diversidade e o número de potenciais catástrofes globais crescem, vemos o surgimento de muitos novos mecanismos democráticos que são nossa melhor esperança de manuseio adequado de crises futuras.
Sucesso contínuo, fracassos repetidos
A esperança não está entre palavras favoritas de Runciman. Enterrada em suas linhas está uma metafísica estranha: a crença, rastreável ao antigo historiador grego Políbio, que o declínio e a decadência são intrínsecos à vida política. Não é por acaso que Runciman nunca define exatamente o que ele quer dizer com a palavra “progresso”, mesmo que ela seja usada constantemente para medir o desempenho das democracias sob pressão.
“O sucesso contínuo da democracia cria condições para repetidos fracassos, assim como repetidos fracassos são uma pré-condição para seu sucesso contínuo.” É o dito de Samuel Beckett: “Tente novamente. Falhe novamente. Fracasse melhor”, menos o humor negro. A maldição da condição humana, ou assim Runciman pensa, é que nada permanece o mesmo ou fica melhor. A emancipação das mulheres e a derrota do apartheid (digamos) são ganhos que lhe parecem desinteressantes. Estes seriam forjados pela maneira imperiosa que o inesperado mete o nariz nas formas estabelecidas de fazer as coisas. Isso às vezes provoca crises cuja resolução prepara o caminho para a próxima surpresa, e a próxima crise.
A metafísica aqui fica a desejar por um tratamento muito mais rico e convincente da democracia e da crise. A democracia nunca é devidamente definida. É o mesmo para o termo ‘crise’ originalmente grego, hoje usado em demasia e oprimido com conotações de salvação ou condenação. Presume-se que as crises tenham uma qualidade autoevidente. Elas nunca têm, sua definição e desdobramento são sempre uma questão política. O fato de que as democracias são por vezes demasiadamente lentas quando confrontadas com dificuldades políticas é atribuído ao “espírito” da própria democracia; no entanto, forças como lobbies organizados, ameaças de desinvestimento de capital e publicidade milionária não desempenham um papel sistemático na explicação de Runciman.
A editora, entretanto, alardeia este livro como uma história “global”, mas não é tal coisa. É principalmente sobre os Estados Unidos, o terceiro império democrático na história da democracia (Atenas e a França revolucionária vieram antes). As restrições especiais colocadas por seu status imperial, até mesmo seu desempenho quando intervêm em crises humanitárias longínquas, são ignoradas em silêncio.
Impressionante, também, é a negligência do livro de uma grande safra de democracias (a Alemanha Weimar, Polônia e Tchecoslováquia, por exemplo) que cometeram democídio durante os fatídicos anos 1920 e 1930. Como é que essas democracias não cambalearam com sucesso? Runciman não nos diz. O livro é igualmente negligente em casos – a Indonésia me vem à mente – em que a democracia nasceu e foi bem-sucedida, porque era a única maneira de resolver uma crise profunda. A lista de itens ausentes é longa, o que mostra nestes tempos obscuros o quanto ainda precisamos de um bom livro sobre democracia e crise.
John Keane é professor de Política na Universidade de Sydney
Esta matéria foi originalmente publicada pelo The Conversation