H. L. Mencken, polêmico as usual, disse que “a democracia também é uma forma de idolatria. Ela é a idolatria de chacais por burros.” Esse dito talvez não valha para a democracia em sentido moderno; mas certamente atinge certos aspectos nefastos desse regime de governo, ou melhor (porque esse não é nosso foco), de ideologia.
Como regime de governo (e não forma de governo), a democracia tem história. Tem sido frequente a sua caracterização semipopular como o “menos pior” dos regimes, dentro da linha “dos males, o menor”. Seu prestígio é incomensurável. Sua irmã fidalga, cujo nome causa calafrios – a aristocracia –, pode nos ajudar a pensar melhor sobre ela.
A ideia clássica de aristocracia é a seguinte: trata-se do governo dos melhores (ariston, gr. excelente, e blah blah). Sustenta-a um “substrato” social muito disseminado: o julgamento autoevidente de que o povo entende muito pouco de política, e que, além disso, não possui as virtudes que se exige para o cumprimento dos deveres de um governante. Essa ideia permanece intocada até hoje. Uma empresa, por exemplo, prefere contratar diretores que se tenham distinguido pelas suas virtudes empresariais a realizar uma votação interna com base numa campanha envolvendo discursos e agências de publicidade. Isso decorre do princípio da excelência, da “meritocracia” (para sermos pouco técnicos e mais didáticos: o correspondente norte-americano da aristocracia, expurgado de qualquer referência nobiliárquica ou genealógica), já que numa empresa qualquer tipo de demagogia é extremamente prejudicial, por ineficiente. O modo vulgar de aplicar esse princípio no âmbito político é conhecido: “Você colocaria fulano [por exemplo, um determinado candidato a presidente da República] para administrar a sua empresa?” Por trás disso está o raciocínio análogo: se fulano não inspira confiança num âmbito menor – o da empresa –, não está apto a deter o poder em escala nacional. É evidente que se trata de uma analogia. Ser presidente ou governador ou prefeito é responder pelo governo e não pela administração. Mas quem negará que essas atividades mantêm entre si uma grande proximidade?
Mas me parece que o problema maior com a democracia é antes de mentalidade, ideológico num sentido muito preciso, que de política. O fenômeno democrático é muito mais amplo que o do voto e o do modo de governar. A crítica da democracia como ditadura da maioria (ignoro o autor da caracterização) explica muito bem essa questão. O espírito democrático mais extremado diz que a maioria tem em suas mãos o poder de tudo decidir na esfera pública. Levando esse raciocínio até o fim, deveremos admitir que, se o povo, essa entidade abstrata, quiser que a pedofilia se torne uma prática lícita e seja encorajada, devemos alterar a ordem jurídica (legislativo), executar esse novo conjunto de normas (executivo) e decidir os pleitos do povo com base nele (judiciário). Tudo de acordo com o que Niklas Luhmann chamou de “a legitimação pelo processo” (Legitimation durch Verfahren): basta que observemos os procedimentos previstos para que algo se torne legítimo – na hipótese, as novas normas pró-pedofilia.
Essa crença extrema obviamente encontra obstáculos pouco visíveis. Um deles é que a maioria é uma ficção. Mesmo numa eleição segundo o princípio one man, one vote (um voto por indivíduo), o que cada um escolhe é sempre influenciado por uma espécie de profecia que se realiza por si só. Muitos acham que muitos pensam assim; e acabam votando segundo essa influência. É um paradoxo autorreferencial. Torno-o mais claro: se observamos com atenção, veremos que a opinião pública, cuja origem mais funda se desconhece, acaba por forjar maiorias. Todos pensam que todos pensam de determinada maneira; o resultado prático é que acabam por “pensar” assim e escolher de acordo com essas diretivas. Pensemos num exemplo bastante vulgar. Numa novela hipotética, num país bastante indeciso, personagens realizam divórcios e cometem infidelidades. A audiência explode. Uma ideia simples é inoculada: “O brasileiro é favorável ao divórcio e, além disso, já se tem mostrado bastante tolerante diante do adultério.” Qualquer pessoa que não pense assim passa a se sentir um marginalizado; e como é natural, sentindo-se estranho, estará tentado a mudar de opinião. O indivíduo A, marginalizado ficcionalmente como minoria, pensa que B, C e D pensam como a maioria; B, por sua vez, pensa que A, C e D pensam como a maioria; e assim por diante. O resultado final é que A, B, C e D acabam por pensar segundo essa mítica maioria com a qual nunca se encontraram fora da novela. Então a mítica maioria se torna uma verdadeira maioria. Todo publicitário sabe que basta a uma ideia chocante um sorriso vencedor para que ela se torne familiar. A sós, nenhum desses indivíduos pensa como os personagens na novela; mas a marginalização (“minorização”) ficcional produz neles a tentação de mudar. Pensar por conta própria será sempre uma exceção corajosa.
Mas um aspecto certamente positivo é que sempre um governo que não seja para o povo será ilegítimo. Tomás de Aquino sugere, como combinação ideal, um pouco de democracia, aristocracia e monarquia. Democracia porque o governo é, ou deve ser, um serviço de grave responsabilidade que tem como beneficiados cada um dos indivíduos e cada uma das comunidades intermediárias. Aristocracia porque o único critério, na seleção dos que devem exercer o múnus público, é a excelência. E monarquia porque o governo deve manter a unidade.
Não importam os nomes. O antídoto para o problema da criação de maiorias que apontamos acima é a defesa de valores permanentes, como a vida, a liberdade, a ordem. Para que as maiorias míticas e autorreferentes não estraguem conquistas civilizacionais, é preciso que uma minoria as garanta.
Não com a força, mas com a persuasão.
Julio Lemos é escritor, advogado e doutorando em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo do São Francisco (USP)
Esta matéria foi originalmente publicada pelo Instituto Ordem Livre