Cristina Kirchner deveria ler Mises

03/12/2013 14:45 Atualizado: 03/12/2013 14:45

Dois anos atrás, alguns dias após a vitória de Cristina Fernández de Kirchner na eleição presidencial da Argentina, o governo decidiu impor um novo sistema de controle de capitais estrangeiros rotulado pela imprensa de “cepo”.

De início, a medida foi uma tentativa de combater a evasão fiscal. Com o tempo, as medidas foram se intensificando e hoje já está claro que elas fazem parte de um grande esquema intervencionista de controle cambial capitaneado pelo Banco Central argentino.

Em um sistema de taxas de câmbio flexíveis, um Banco Central limita suas atividades apenas ao controle da base monetária. Ele não se preocupa com a taxa de câmbio. Consequentemente, os preços das moedas estrangeiras atuam somente como um indicador da eficácia ou da ineficácia da política monetária. Já quando o Banco Central adota controle de capitais (não confundir controle de capitais com câmbio fixo; são arranjos completamente distintos), ele passa a atuar como um ente que faz um “racionamento de divisas”, vendendo dólares a preços arbitrários a determinados grupos privilegiados escolhidos pelo governo.

No caso específico do “cepo” argentino, o Banco Central proíbe a compra de dólares por argentinos que querem manter sua poupança em moeda estrangeira, mas permite que alguns importadores ou algumas pessoas que queiram viajar ao exterior comprem dólares à taxa oficial de câmbio — mas sempre mantendo um controle estrito sobre a quantia transacionada. Adicionalmente, o BC argentino também vende dólares à taxa oficial àquelas pessoas que utilizam cartões de crédito no exterior, embora lhes cobre um imposto que aumenta a taxa de câmbio em 20%.

O governo justificou a imposição do “cepo” sobre os argentinos alegando que se tratava de uma tentativa de controlar o fluxo de dólares e de evitar uma desvalorização. No entanto, após dois anos, esse controle de capitais criou ainda mais problemas e não trouxe nenhuma solução.

Para começar, surgiu um mercado paralelo no qual dólares são transacionados a uma taxa 65% maior do que a taxa de câmbio oficial — valor esse que está bem em linha com a alta inflação de preços que está deteriorando o poder de compra do peso. Estas transações ocorrem naquilo que passou a ser prosaicamente chamado de mercado do “dólar azul”. Adicionalmente, as reservas internacionais do país já caíram mais de 30% desde outubro de 2011, sendo que, no resto do continente latino, elas continuam crescendo em decorrência da frouxa política monetária adotada pelo Fed. Finalmente, a balança comercial do país foi reduzida graças ao colapso na taxa de crescimento das exportações.

O gráfico abaixo mostra a discrepância entre a taxa de câmbio oficial (linha verde) e a taxa de câmbio no mercado paralelo (linha azul).

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Mas, então, por que o governo decidiu adotar uma política tão deletéria para a sociedade argentina? Uma possível resposta é que os burocratas se preocupam apenas com seus interesses de curto prazo. Aliás, e curiosamente, quanto mais um governo diz estar preocupado com o “bem comum”, mais ele está pensando apenas no bem de seus próprios integrantes. Outra resposta, e essa assumidamente ingênua, é que os políticos argentinos se esqueceram de ler o capítulo XXXI de Ação Humana, de Ludwig von Mises.

A escassez de divisas estrangeiras

Repetidas vezes, os burocratas da Argentina se referiram ao “cepo” como se fosse uma ferramenta vital para “cuidar dos dólares” ou para evitar a escassez de divisas necessárias para investimentos de longo prazo. No entanto, se eles houvessem lido Mises, eles saberiam que, em um livre mercado, não existe algo como escassez de dólares:

Os governos que se queixam de uma escassez de divisas têm na realidade outras preocupações. A escassez é o inevitável resultado de suas políticas de controle de preços. Como o governo fixou para a sua moeda um valor acima do mercado, a demanda por divisas excede a oferta.

A redução de US$ 14 bilhões nas reservas internacionais do Banco Central argentino pode ser explicada pelo simples conceito da oferta e demanda. À taxa de câmbio determinada pelo governo, vários argentinos querem converter seus pesos em dólares, e poucos querem abrir mão de seus dólares em troca de pesos. Se um produto é vendido a um preço muito abaixo de seu real preço de mercado, é muito fácil prever que seus estoques irão diminuir rapidamente a menos que os preços subam. Com as reservas estrangeiras, o princípio é idêntico.

O estrago às exportações

Antes da imposição do controle de capitais estrangeiros, as exportações argentinas cresciam a uma taxa anual de 27%. No entanto, o ritmo foi reduzido a apenas 3% em setembro de 2013. Mises explicou por que essa queda iria ocorrer:

“Qualquer cidadão que adquirir divisas — procedentes, por exemplo, de uma exportação — é obrigado a vendê-las ao correspondente órgão central, pela taxa de câmbio oficial. Se essa estipulação, que equivale a um imposto de exportação, for efetivamente aplicada, o comércio exterior ou irá diminuir muito ou será completamente abolido.”

Por meio do Banco Central, o governo paga aos exportadores somente 60% do valor de seus produtos vendidos para o exterior. Se um exportador argentino vender um produto que custa US$ 100, o Banco Central argentino irá lhe pagar somente $600 pesos quando ele for trocar os dólares por pesos. No entanto, se o Banco Central respeitasse o preço de mercado do dólar, ele deveria pagar ao exportador $1.000 pesos. Logo, não deveria ser nada surpreendente que os exportadores estejam sendo profundamente afetados pelo “cepo”.

Importações

Em um discurso à Universidade de Harvard, a presidente Cristina Kirchner negou a existência do controle de capitais estrangeiros e, para exemplificar essa sua negativa, ela sugeriu que havia “120 categorias que permitiam aos argentinos adquirir dólares”. Uma delas, alegou, são as importações. Isso não surpreenderia Mises, que escreveu que:

“Por outro lado, o órgão central de controle de câmbio, aferrando-se obstinadamente à ficção de que as taxas de câmbio ‘na realidade’ não subiram e que a taxa oficial de câmbio é uma taxa real, vende divisas aos importadores pela taxa oficial.”

Porém, quando um importador paga 6 por algo pelo qual ele na realidade deveria pagar 10, ele está recebendo um considerável subsídio do governo, algo que provavelmente fará as importações aumentarem ao ponto de ameaçar a tão enaltecida “produção doméstica”. E isso é algo que nenhum governo (especialmente um governo intervencionista como o da Argentina) irá tolerar. Mises observa que:

“Consequentemente, as autoridades recorrem a outros artifícios. Ou aumentam as tarifas de importação, ou estabelecem um imposto especial sobre os importadores, ou oneram de alguma forma a compra de divisas.”

Caso Mises mencionasse uma das malfadadas políticas do governo Kirchner, as Declaraciones Juradas Anticipadas de Importación (DJAI — Declarações Juramentadas Antecipadas para Importações, um novo obstáculo burocrático para os importadores), poderíamos dar a ele o título de futurólogo.

A inflação é o problema

Como última observação, vale dizer que o motivo para os controles de capitais — bem como o motivo para todo e qualquer controle de preços — é a persistente inflação de preços criada pela política monetária do Banco Central argentino, algo que o governo faz de tudo para ignorar. Em menos de 4 anos, a oferta monetária quase triplicou.

Porém, como Mises nunca se cansou de alertar, nenhuma intervenção pode acobertar ou alterar “o fato de que uma moeda nacional perdeu parte do seu poder aquisitivo em relação às divisas estrangeiras, ao ouro, e às mercadorias em geral”.

Controles de capitais apenas agregam mais problemas aos problemas já existentes. Se o governo argentino houvesse lido Mises (ou ao menos não o ignorasse deliberadamente), ele veria o encarecimento do dólar como um indicador dos excessos de sua política monetária. Como corolário, nós argentinos teríamos evitado todos os efeitos distorcivos de um “cepo” e, principalmente, não estaríamos hoje sofrendo com essa vergonhosa inflação de preços, a qual rouba dos argentinos o poder de compra de seu dinheiro, o qual eles honestamente adquiriram por meio de interações pacíficas e voluntárias no mercado.

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Iván Carrino é analista econômico da Fundación Libertad y Progreso na Argentina e possui mestrado em Economia Austriaca pela Universidad Rey Juan Carlos, de Madri

Esta matéria foi originalmente publicada pelo Instituto Ludwig von Mises Brasil