A mídia russa e o presidente ucraniano deposto Viktor Yanukovych são chocantes em suas tentativas de reescrever os eventos em Kiev, que eles chamam de “golpe fascista” e cujo argumento usam para justificar a invasão de um país soberano.
Provavelmente ninguém fora da Ucrânia cortou através da propaganda mais eficazmente do que Timothy Snyder, professor de história na Universidade de Yale e autor de “Bloodlands: Europe Between Hitler and Stalin“. Ele disse: “A Ucrânia (sob Yanukovych) foi provavelmente governada pelo regime financeiramente mais corrupto na história do mundo, que até o final de seu governo não era apenas opressivo fisicamente, mas estava matando seus cidadãos… (por) exercerem seus direitos de expressão e de reunião.”
Snyder observa sobre os primeiros protestos: “Entra… um afegão… Mustafa Nayem, o homem que começou a revolução. Usando a mídia social, ele convocou… jovens a se reunirem na praça principal de Kiev em apoio de uma opção europeia para a Ucrânia. ‘Praça’ é chamada de ‘maidan’… uma palavra árabe. Nos primeiros dias de protestos, os estudantes a chamaram de ‘Euromaidan’. A propaganda russa a chamou previsivelmente de ‘Gayeuromaidan’. Quando a polícia de choque foi enviada para bater nos estudantes, quem foi defendê-los? Mais ‘afegãos’… veteranos ucranianos do Exército Vermelho soviético, homens que foram enviados para invadir o Afeganistão durante a invasão soviética do país em 1979. Estes homens vieram para defender ‘seus filhos’, como eles chamavam os estudantes.”
“Em todos esses aspectos, o Ocidente ‘decadente’, como o ministro das Relações Exteriores da Rússia definiu, estava presente… A imprensa russa apresentou o protesto como parte de uma conspiração gay maior. O regime ucraniano instruiu sua polícia de choque que a oposição era liderada por uma conspiração judaica maior. Enquanto isso, os dois regimes informaram o mundo exterior que os manifestantes eram nazistas. Quase ninguém no Ocidente pareceu notar essa contradição.”
Contas externas
Quando guarda-costas de Yanukovych o abandonaram, ele fugiu para a Rússia. Um dia depois, ele disse numa conferência de imprensa lá que não tinha contas bancárias no estrangeiro; os governos da Suíça, Áustria e Liechtenstein ordenaram o congelamento de seus bens e os de seu filho e 20 funcionários ucranianos. O Instituto Peterson de Washington estima que ele e sua família roubaram entre US$ 8 e 10 bilhões por ano desde 2010.
O Parlamento da Ucrânia, em seguida, elegeu o primeiro-ministro Arseniy Yatsenyuk numa votação de 371-1. Ele disse aos deputados: “Cerca de US$ 70 bilhões foram retirados do sistema financeiro da Ucrânia para contas no exterior ao longo dos últimos três anos. Agora, está claro que eles retiraram os fundos que foram levantados como empréstimos sob garantias do Estado e roubados por representantes do governo anterior.” Ele acrescentou: “O tesouro está vazio”, com apenas US$ 400 mil deixados nos cofres do governo e apenas US$ 15 bilhões em reservas cambiais para pagar os US$ 12 bilhões em dívidas a vencer. Além disso, ele exortou a Rússia, que ele se referiu como “parceira” da Ucrânia, que não “faça guerra contra nós… pois somos amigos”.
Incursão russa
Em seguida veio a intervenção militar russa, sem qualquer provocação, em parte do território ucraniano: a Crimeia. A incursão de Putin na Crimeia foi destinada a três audiências. Primeiro, uma abordagem linha-dura na Ucrânia mobilizaria tanto os nacionalistas na Rússia como intimidaria os defensores internos de reformas democráticas. Em segundo lugar, uma vitória rápida e sem derramamento de sangue seria fácil na Crimeia. Isso minaria a confiança dos soldados no Leste da Ucrânia e frearia qualquer governo que contemplasse assistir Kiev militarmente.
Em terceiro lugar, Putin quer avançar seu modelo rival de civilização. Ele, seus conselheiros e a mídia russa cúmplice acreditam que os eventos ucranianos foram causados por uma civilização europeia decadente, que promove os direitos de minorias culturais e sexuais. A habilidade de Putin de associar suas noções bizarras com a força nacional numa vitória militar pode capacitá-lo a projetar sua intolerância além do território russo. Esta perspectiva é tão perturbadora quanto sua agressão militar.
Entre as violações das normas internacionais na implantação de soldados russos à paisana através de Crimeia, Putin violou a Carta das Nações Unidas e a Ata Final de Helsinki. Ele também desafiou o acordo de 1994 entre Rússia, Ucrânia, Reino Unido e Estados Unidos, ao abrigo do qual a Ucrânia, então a terceira maior potência nuclear na Terra, abdicou de todas as suas armas nucleares, deixando a lição sombria de que, se um país abre mão de suas armas nucleares, isso convida a invasão de vizinhos autoritários.
Putin também reivindica o direito de invadir um vizinho para defender os direitos indefinidos de uma comunidade linguística minoritária, ou como ele disse numa conferência de imprensa em 4 de março, “as pessoas que estão intimamente ligadas (sic) a nós, histórica, cultural e economicamente”. Muitos falantes de russo na Ucrânia já assinaram uma petição dizendo que não precisam de qualquer parte externa para proteger seus direitos.
Outro benefício presumido para Putin é desviar a atenção dos russos de seus problemas econômicos. Sua economia caiu de uma taxa de crescimento de 4,5% em 2010 para 1,3% em 2013. O rublo caiu recentemente em quase um quinto (ou 20%). A perspectiva da Rússia em longo prazo é preocupante, em parte por causa do rápido envelhecimento da população. Investidores nervosos, severamente lesados pela corrupção generalizada, agora se perguntam se este é o início de um renovado imperialismo da era soviética. Letônia, Lituânia, Estônia e Cazaquistão são potenciais alvos futuros.
Autoridades provisórias em Kiev estão agora sendo substituídas por um novo governo, eleito pelo Parlamento. O novo primeiro-ministro é um tecnocrata de língua russa. Os dois principais candidatos à Presidência nas eleições marcadas para maio são falantes de russo. Um deles, Vitali Klitschko, é filho de um general das forças armadas soviéticas, mais conhecido fora da Ucrânia como um boxeador campeão dos pesos pesados. Ele é falante de russo. O russo deve ser restaurado rapidamente como língua oficial no país.
Em suma, não estamos lidando com um golpe fascista de forma alguma. Nas palavras de Snyder: “O que tem ocorrido é uma revolução popular, com toda a bagunça, confusão e oposição que isso implica. Os jovens líderes da Maidan, alguns deles esquerdistas radicais, arriscaram suas vidas para se opor a um regime que representava, num extremo, as desigualdades que criticamos em casa. Eles têm uma experiência de revolução que nós não temos. Parte dessa experiência, infelizmente, é que os ocidentais são provinciais, crédulos e reacionários. Até agora, as novas autoridades ucranianas têm reagido com notável calma.”
Exemplo da Finlândia
Martti Ahtisaari, ex-presidente da Finlândia e premiado com o Nobel, disse: “O respeito pela integridade territorial de um país soberano é essencial. Reconhecer isto é uma condição prévia para a construção de um futuro de paz para todos os cidadãos da Ucrânia.”
Alcançar isto nas atuais circunstâncias difíceis pode muito bem exigir que a Ucrânia a siga o exemplo da própria Finlândia após a II Guerra Mundial e se tornar totalmente independente da Europa e da Rússia, enquanto faz comércio e se mantém em bons termos com ambos.
A “finlandização” é desagradável para alguns, mas é instrutivo nos lembrarmos de como a Finlândia é hoje – forte, unida, próspera e livre. Esta opção oferece aos ucranianos a melhor oportunidade para um futuro democrático, preservando sua integridade territorial.
Ainda há, provavelmente, uma estreita janela de oportunidade para negociar uma solução deste tipo antes que uma nova Cortina de Ferro desça sobre a Europa.
David Kilgour é copresidente dos ‘Amigos Canadenses de um Irã Democrático’ e diretor do ‘Conselho para uma Comunidade de Democracias’ (CCD) sediado em Washington DC. Ele foi membro do Parlamento do Canadá de partidos conservador e liberal na região sudeste de Edmonton e também serviu como o secretário de Estado para a América Latina e África, como secretário de Estado para a Ásia-Pacífico e como vice-presidente da Câmara. David Kilgour foi proibido de entrar na Rússia desde 2011 após publicar o livro ‘Colheita Sangrenta’ em 2009, coescrito com o advogado internacional David Matas
Esta matéria foi originalmente publicada no Yahoo.com