O final dessa Copa no Brasil é, também, uma revolução da tática e da preparação física. Nós, que por tantos anos fizemos do W-M o nosso estilo de jogo, com cinco homens abertos no ataque e apenas dois beques para parar os contra-ataques, sentimos cortar o âmago do que é o futebol brasileiro pela introdução da marcação homem-a-homem, que nos impossibilitou como a touros carneados em uma estância uruguaia.
O primeiro tempo foi todo do Uruguai. Cinco marcadores colados e atentos o jogo inteiro anularam Zizinho, Bauer, Jair e Ademir, sempre com um na sobra,e limitaram nossa criatividade a contragolpes inócuos. Flavio Costa, tão vivido quanto ultrapassado, inverteu os pontas no intervalo, e tivemos as ligações diretas do líbero Danilo Alvim para Friaça como nossa válvula de escape. Assim saiu o gol que abriu o placar. Sem reduzir por um instante o ímpeto da marcação, com um preparo físico quase sobre-humano, os uruguaios não se descolaram de nós. E viraram o placar. Em nome do silêncio. E por 64 anos de uma eternidade que acabou agora.
Crucificados
De volta ao calendário habitual do futebol, Barbosa, Augusto, Danilo, Zizinho, Jair, Bauer, Friaça e Ademir, todos jogadores muito acima da média, foram execrados pela imprensa e crucificado como pecadores solitários em um país de baluartes, suprassumos da moral e da competência. Embora todos ainda atuassem em alto nível quatro anos depois, apenas Bauer retornou na Copa de 54. Chico, Juvenal e Bigode, mais limitados, tornaram-se personagens à margem da História, invisíveis e condenados à miséria a partir daquele 16 de julho de 1950.
Flavio Costa, agente do DOPS, morreu longos 50 anos depois sem que ninguém se recordasse de uma única explicação a respeito daquele jogo. Com todos mortos, é tarde confirmar: tratamos heróis como vilões. Em 1950, o Brasil não era uma potência no futebol. Vínhamos de uma boa Copa em 1938, conduzida pelos talentos isolados de Leônidas e Domingos da Guia e, no tempo da Guerra e logo depois, assistimos a seleção salpicada por alguns Sulamericanos, Copas Rio Branco e Roca. Nada para além do Prata.
Barrando Barbosa…
O martírio dos jogadores de 1950 foi consagrado pela conhecida atitude de Zagallo – o chapa-branca supersticioso – e do Parreira do vexame de hoje em barrar Barbosa na Granja Comary, em 1993, por considerar, emblematicamente, que aquele homem velho de mão sofridas e tantos títulos com a camisa do Vasco da Gama “era de mau agouro”.
Dos 14 trapalhões que entraram em campo na derrota da tarde de ontem (8) para a Alemanha, talvez o “martírio” caia bem ao azarado Júlio César e ao oculto Fred, que com a desculpa da idade não voltarão a vestir a camisa do Brasil. Os demais, tenham certeza, terão muitas e muitas convocações pela frente.
Júlio terá uma vida inteira pela frente para visitar a Granja Comary. Fred recebe um milhão de reais por mês do cooperativado Celso Barros para jogar no Fluminense, em um interessante caso de mecenato com dinheiro alheio, uma vez que nem Barros é dono da Unimed, nem Fred seu funcionário. Não passará pelas provações de Friaça, esquecido e doente em um casebre de Itaperuna até a morte, em 2009.
Parreira, Zagallo, Felipão, Galvão, Ronaldo (justamente ultrapassado por Klose), Marin, Del Nero, Teixeira e até o mumiesco Havelange permanecerão em seus postos, ricos, risonhos e defensores de que tudo permaneça como está.
Satanização
O trauma de 1950, quando os brasileiros satanizaram um time de heróis que foi derrotado em uma partida normal, disputada apenas dentro de campo, finalmente foi superado por outro maior. Em 2014, a sacolada para a Alemanha é a última estação de uma ferrovia decrépita, onde maquinistas acostumados a carbonizar madeira para produzir carvão se mostraram completamente alemães dos anos 50 na condução do futebol brasileiro. São inadequados e antigos em tudo, do ufanismo à incompetência.
Do oba a oba dos cartolas ao boboalegrismo das quatro linhas, o vexame da segunda Copa no Brasil é ainda mais revelador: enquanto copiamos e aprofundamos o futebol defensivo, voltado para peneirar portes físicos e não talentos, os alemães copiam o que o futebol brasileiro teve de melhor: sua própria natureza, ofensiva e bonita de se ver.