A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) traz, em seu nome, uma obviedade: a utilização de verbas oriundas da arrecadação de impostos precisa ser responsável. Por princípio, não se deveria gastar mais do que se arrecada ou se estima arrecadar – se em nossas casas também não gastamos o que não temos, por que governantes poderiam arrogar a si mesmos outros direitos?
A legislação sobre o óbvio, no entanto, foi promulgada no ano 2000. Contudo, até hoje não é inteiramente aplicada. Um dos focos de maior resistência, aliás, encontra-se no governo federal do PT, que ainda não quis fixar limites para o endividamento da União através de regulamentação. Coerentemente, talvez: o PT também foi contrário à aprovação da LRF há 13 anos.
Os avanços trazidos pela LRF são dignos de nota: hoje, todas as esferas de governo e todos os poderes precisam planejar suas despesas anuais de acordo com as receitas previstas. Além disso, no caso das administrações públicas federais, estaduais e municipais, os entes políticos precisam planejar e fixar em lei como será a execução orçamentária dos quatro anos seguintes ao primeiro do respectivo mandato.
Dessa forma, além de garantir a previsibilidade das despesas futuras, a norma permite ao prefeito, governador ou presidente pensar a sua administração de forma continuada. Além disso, foram fixados limites máximos para gastos com pessoal, evitando inchaços na folha de pagamento à custa de investimentos em outras áreas da administração, dentre as quais saúde, educação e transporte, por exemplo.
Não obstante tais avanços mais técnicos, que fazem da lei em si uma peça notável, são duas as principais ameaças que permanecem como obstáculos ao seu cumprimento: a recorrente má vontade de políticos ansiosos por gastar mais do que aquilo com que poderiam arcar e a fiscalização deficiente. Ambas as ameaças, aliás, andam de mãos dadas e alimentam uma a outra.
Uma das formas de diminuir os riscos de descumprimento à LRF, frequentemente sugerida como solução, encontra-se em seu próprio texto. Mais especificamente, trata-se de seu artigo 67, que prevê a criação de um Conselho de Gestão Fiscal. Tal conselho seria formado por representantes de todos os poderes e esferas de governo, do Ministério Público e de entidades técnicas representativas da própria sociedade.
Ainda assim, não poderia a eficácia de tal conselho ser anulada pelos governantes do dia? Os exemplos que vemos nos últimos anos permitem-nos confirmar este temor. Ao invés de mais independência do aparelho estatal, conselhos e agências reguladoras têm tomado com assustadora frequência o caminho oposto, tornando-se não apenas subservientes ao Estado como também, lamentavelmente, curvados aos partidos no poder.
Logo, chega-se a um dilema e a uma pergunta inevitável: com a criação de tal conselho, estaríamos dando um passo adiante na guarda da responsabilidade fiscal das administrações públicas, ou estaríamos apenas oferecendo mais uma oportunidade para que o governante do momento entregasse aos seus protegidos o poder de “fiscalizá-lo”?
A confusão institucional brasileira causada pela recente interferência indevida de partidos onde não são chamados é tão grande que, nesse último caso, o próprio conselho, se efetivamente criado, pode paradoxalmente tornar-se ameaça adicional ao fiel cumprimento da lei. Sobretudo, ressalte-se, quando a própria ideia de real independência dos órgãos de fiscalização e controle não encontra respaldo no histórico recente do governo federal brasileiro, responsável pela regulamentação da LRF. Talvez seja, pois, melhor que fique de momento tudo como está se não quisermos arriscar novos retrocessos.
Marcel van Hattem é cientista político, jornalista e consultor para relações internacionais. Mestre em ciência política pela Universidade de Leiden (Holanda) e bacharel em relações internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestrando em jornalismo internacional pelas Universidades de Aarhus (Dinamarca) e de Amsterdã (Holanda).
Esse artigo foi originalmente publicado pelo Instituto Millenium