Finalmente, apareceu uma alternativa para turbinar as investigações relativas ao cartel do metrô de São Paulo. Havendo disposição política, poderão matar dois coelhos de uma só cajadada. Não só poderão apurar profundamente os ilícitos que originaram a CPMI como também mandarão o mais ameaçador recado às transnacionais que praticam o maior dos crimes contra a economia popular: não formem cartéis para explorarem o consumidor brasileiro porque vocês serão investigados também pelas temíveis autoridades norte-americanas.
Basta que os petistas – que vivem esbravejando que querem ir fundo na apuração dos fatos (o que, segundo eles, atingirá fortemente as administrações tucanas) – exijam o cumprimento do Acordo Brasil-EUA cujo objetivo é a colaboração das autoridades econômicas das duas partes. O probleminha é que, se por acaso tiverem coragem para tal ato, os petistas também podem se complicar. A turma do Tio Sam, que sabe de tudo sobre os negócios deles com a administração pública, também pode revelar um oceano de escândalos na CPI da Petrobras.
Quem dá o caminho das pedras é o engenheiro João Vinhosa, que já teve inúmeros artigos sobre o assunto publicados. A seguir, a íntegra da carta encaminhada por Vinhosa ao embaixador dos EUA nesta segunda-feira (18):
“Senhor Embaixador dos EUA,
Recentemente, o Congresso Nacional instalou uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) com o objetivo de investigar o “Cartel do Metrô de São Paulo”.
Formado por diversas transnacionais (Alstom, Siemens, Bombardier, etc.), referido cartel tem sido investigado por vários órgãos, como o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), a Polícia Federal, a Procuradoria Geral da República e o Supremo Tribunal Federal. Além disso, o Ministério Público de São Paulo, já denunciou o caso à Justiça, envolvendo 30 executivos de 12 empresas.
Acontece, Excelência, que o crime de formação de cartel já mereceu uma especial atenção dos governos do Brasil e dos Estados Unidos da América. A atenção foi tanta que os dois países chegaram a firmar um Acordo objetivando a cooperação de suas autoridades de defesa econômica para combater tal tipo de crime. Tal Acordo foi promulgado pelo Decreto nº 4702, de 21 de maio de 2003, e ainda se encontra em vigor.
Relativamente à troca de informações entre as partes, o Acordo é categórico: uma parte se compromete a notificar a outra sobre investigações que estiver realizando contra cartéis cujos integrantes atuem nos dois países. Assim, diante da existência de citado compromisso formal, lícito torna-se supor que o Brasil já notificou os EUA sobre as investigações aqui realizadas contra o Cartel do Metrô de São Paulo. Porém, tal suposição pode não ser correta. Afinal, não dá para ser desconsiderado um forte fator complicador: as desencontradas interpretações feitas por nossos operadores de direito sobre o compromisso de notificar previsto no artigo II do Acordo.
Para melhor avaliar o entendimento das autoridades brasileiras a respeito do compromisso de notificar previsto no Acordo, será apresentado a seguir um breve histórico do acontecido no caso do “Cartel do Oxigênio”, que, assim como o Cartel do Metrô, é integrado por diversas transnacionais que atuam tanto no Brasil como nos Estados Unidos.
No final de 2004, a Procuradoria Geral da República (PGR) instaurou um processo para apurar denúncia segundo a qual – por não notificar as autoridades norte-americanas a respeito das investigações aqui realizadas sobre o “Cartel do Oxigênio” – o Brasil estava descumprindo o Acordo.
O Relator de citado processo, Procurador Pedro Nicolau Moura Sacco, decidiu arquivá-lo, afirmando que, segundo o Acordo, a notificação era incabível. Foi a seguinte a interpretação do Procurador Pedro Nicolau: “O tratado apenas obriga as partes soberanas a notificarem uma à outra a respeito de investigações que coletem indícios de que os cartéis apurados também atuam no território da contraparte”.
Diante de referida decisão, foi interposto Recurso à PGR. Tal Recurso foi indeferido em abril de 2010, homologando-se o arquivamento, conforme proposto no Voto do Subprocurador-Geral da República Paulo de Tarso Braz Lucas, que entendeu “não merecer reparo o despacho de arquivamento”.
Em abril de 2011, o entendimento da PGR (as investigações realizadas no Brasil sobre um determinado cartel só têm que ser notificadas às autoridades norte-americanas se forem coletados indícios que seus integrantes também praticam o mesmo crime nos Estados Unidos) foi submetido à apreciação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), dando origem ao processo OAB 2011.18.03263-01.
O Relator do processo Welber Oliveira Barral, em seu voto, cometeu um erro impressionante: partiu da falsa premissa segundo a qual a denúncia havia sido baseada em um irrelevante caso ocorrido em “licitações realizadas por dois hospitais localizados em Brasília”. E tal falsa premissa levou à falsa conclusão segundo a qual as investigações não eram relevantes para as autoridades norte-americanas.
Segundo Barral, por terem nossas autoridades determinado que as investigações sobre o Cartel do Oxigênio não eram relevantes para os EUA, a notificação só seria obrigatória se ficasse comprovado que integrantes do cartel estavam praticando o mesmo crime em território norte-americano. E devido ao fato de as investigações aqui realizadas não terem coletado indícios da prática de cartel nos EUA, a notificação foi considerada incabível por nossas autoridades, o que foi avalizado pelo relator Barral no âmbito da OAB.
Em Recurso interposto junto à OAB, ficou comprovado, de maneira absolutamente inequívoca, que a denúncia não tinha nada a ver com os citados “dois hospitais localizados em Brasília”; ela era muito mais ampla, e era da maior importância para os EUA.
O relator do Recurso, Cezar Britto, sequer contestou qualquer das onze razões apresentadas para comprovar que as investigações aqui realizadas eram da maior relevância para os EUA. Ele usou uma terceira e diferente razão para justificar a “não notificação”: o desinteresse dos EUA em ser notificado.
Ao indeferir o Recurso, o relator Britto afirmou que as autoridades norte-americanas estavam cientes do Cartel do Oxigênio, e “mesmo cientes de tais fatos, essas autoridades decidiram por não solicitar qualquer esclarecimento ou informação sobre o caso através de uma consulta. Adotar entendimento divergente do adotado pelo próprio Estado estrangeiro interessado em ser, quando cabível, notificado, não faria sentido”.
Excelentíssimo Embaixador, ninguém pode ter qualquer dúvida sobre a gravidade da afirmativa do relator Cezar Britto. O desinteresse das autoridades norte-americanas em informações sobre o “Cartel do Oxigênio” é altamente suspeito. Não devemos nos esquecer que os valores financeiros envolvidos são gigantescos, e “ter autoridade corrupta” não é exclusividade do Brasil.
Como não se interessar, considerando que as transnacionais integrantes do cartel e suas controladoras dominam, além do mercado brasileiro, os mercados dos EUA e mundial?
Como não se interessar, considerando que duas das quatro transnacionais envolvidas são de capital norte-americano?
Como não se interessar, considerando que o fato de tais transnacionais e suas controladoras já terem sido processadas e condenadas na União Européia, na Argentina e no Chile permite inferir que é altamente possível e, até mesmo, provável que tais empresas também estejam atuando de forma cartelizada em território norte-americano?
Como não se interessar, considerando que, por sua participação no “Cartel do Oxigênio”, a líder do mercado brasileiro – cuja totalidade de quotas pertence à norte-americana Praxair Inc. – recebeu a incrível multa de R$ 2,2 bilhões?
Como não se interessar, considerando que há uma inegável evidência da harmonia de procedimentos da Praxair Inc. e sua controlada no Brasil? O mais evidente exemplo é a ascensão funcional do Vice-Presidente Executivo da Praxair Inc nos EUA, Ricardo Malfitano: ele iniciou sua carreira na controlada brasileira, trabalhou algum tempo na Praxair nos EUA, retornou ao Brasil como Diretor da controlada brasileira, voltou para os EUA como Presidente da Praxair – New York, retornou ao Brasil como Presidente da controlada brasileira, deixando tal cargo para ocupar a posição de Vice-Presidente Executivo da Praxair nos EUA.
Como não se interessar, considerando que empresas controladas por grupos norte-americanos foram condenadas por participarem de um cartel que pratica, entre outros, o hediondo crime de fraudar licitações públicas para superfaturar contra os miseráveis hospitais públicos brasileiros?
Ante a realidade acima exposta, Senhor Embaixador, venho solicitar que, pondo a autoridade de seu cargo em defesa da reputação das autoridades norte-americanas e dos consumidores dos dois países parceiros no Acordo, encaminhe cópia desta carta às autoridades de defesa da concorrência que representam os Estados Unidos da América no Acordo, a saber: o Departamento de Justiça e a Comissão Federal de Comércio.
Cumpre esclarecer, nesta altura, que, cópia desta carta será formalmente encaminhada ao Procurador Geral da República Rodrigo Janot, ao Presidente da OAB Marcus Vinicius Coelho, ao Ministro Marco Aurélio Mello (relator do processo do Cartel do Metrô de São Paulo no STF), ao Promotor Marcelo Mendroni (responsável pelo caso no Ministério Público de São Paulo) e ao relator da CPMI no Congresso Nacional.
Finalizando, Excelência, informo que as controversas interpretações da PGR e da OAB foram categoricamente criticadas em dezembro de 2013 por meio do vídeo intitulado “O cartel do metrô de São Paulo e o Acordo Brasil-EUA para combater cartéis”, que foi dividido em duas partes, e tem seus links apresentados a seguir.”