Nota: Esta matéria foi originalmente publicada pelo Instituto Ludwig von Mises Brasil em 16 de novembro de 2008.
Há pelo menos uma coisa extremamente positiva nas colunas de Paul Krugman no The New York Times: quando um economista austríaco quiser explicar para alguém como a ciência econômica convencional causa destruição em massa, ele poderá sempre contar com Krugman, que inevitavelmente estará fornecendo um exemplo de maneira clara e concisa. Isso é ótimo porque nos poupa muito trabalho, já que não precisaremos primeiro descrever a argumentação para depois derrubá-la.
Até mesmo o leitor ocasional da imprensa financeira sabe que ela é dominada pelo pensamento keynesiano “do lado da demanda”. Por exemplo, ainda no início do ano, durante o debate sobre o pacote de estímulo do governo americano — aquele que consistia na devolução de parte do dinheiro de impostos para que os cidadãos pudessem gastar mais —, a principal preocupação dos keynesianos e monetaristas era que os contribuintes resolvessem utilizar parte desse reembolso para pagar as faturas do cartão de crédito, ao invés de torrarem tudo nos shopping centers, como esses economistas queriam. Porem, ao leitor nunca foi dada uma explicação meticulosa e clara da visão de mundo que gera essas noções malucas.
Entra em cena Paul Krugman. Em um recente artigo, “Quando os Consumidores se Rendem“, o mais recente ganhador do Nobel finalmente esclarece qual a metodologia por trás dessa loucura. Vamos então aproveitar essa oportunidade para mostrar por que esse foco no gasto do consumidor não só é errôneo, como também é totalmente perigoso.
“O paradoxo da poupança”
Krugman primeiro nos informa das (supostamente) más notícias: “A capitulação dos consumidores americanos, há muito temida, enfim chegou… [O] gasto real com consumo caiu a uma taxa anual de 3,1% no último trimestre; o gasto real em bens duráveis (coisas como carros e TVs) caiu a uma taxa anual de 14%.”
Paremos aqui por um momento. Muitos economistas de esquerda — inclusive Krugman — viviam nos avisando, durante anos, que o déficit comercial americano estava muito alto, e que a taxa de poupança do país estava muito baixa. Portanto, seria o caso de alguém pensar que uma queda nos gastos com consumo seria uma coisa boa. Bem, parece que não funciona bem assim: Krugman nos informa que “o momento escolhido para essa nova sobriedade foi completamente infeliz… Os consumidores estão cortando gastos exatamente quando a economia americana caiu numa armadilha da liquidez.”
E agora vem a teoria por trás de todas essas ponderações. De acordo com Krugman:
“[U]m dos pontos altos do semestre, se você é um professor de macroeconomia introdutória, ocorre quando você explica como a virtude individual pode ser um vício público; como que as tentativas dos consumidores de fazer a coisa certa — ou seja, poupar mais — pode acabar fazendo com que todos piorem. A questão é que se os consumidores cortam seus gastos, e nada entra para substituir esses gastos, a economia irá cair numa recessão, reduzindo a renda de cada um.”
“Na realidade, a renda dos consumidores pode até cair mais do que seus gastos, o que significa, portanto, que sua tentativa de poupar foi um tiro que saiu pela culatra — uma possibilidade conhecida como o paradoxo da poupança.”
Por onde começar?
A questão mais central da ciência econômica — voltando a uma época ainda anterior à metáfora de Adam Smith sobre a “mão invisível”, a pelo menos até o livro de Bernard Mandeville, a Fábula das Abelhas, de 1732 — é que, em um sistema baseado na propriedade privada, os vícios privados podem ser aproveitados em benefício de todo o público. Mais especificamente, uma economia de mercado faz com que os gananciosos homens de negócio tenham de ficar acordados a noite toda pensando num jeito melhor de satisfazer seus clientes.
Além dessa verdade (que foi descoberta recentemente (em termos relativos) na história humana), as pessoas sempre souberam que um indivíduo sábio se abstém do consumo quando quer acumular poupança. A razão por que os humanos do século XXI são tão fantasticamente ricos comparados àqueles do século XI não é meramente por uma questão de inovação tecnológica. É também o resultado do crescente estoque de máquinas, ferramentas e equipamentos (isto é, “bens de capital”) que veio sendo transmitido de geração para geração. “Todo mundo sabe” que a parcimônia leva à prosperidade, ao passo que a gastança pródiga leva à ruína. Há até uma passagem famosa na Bíblia sobre esse tópico.
É verdadeiramente chocante saber que Krugman não apenas ensina a seus alunos o exato oposto — a saber, que as virtudes privadas geram vícios públicos, e que poupar empobrece a todos da comunidade —, mas também se regozija com a sua demonstração. Felizmente para o bem da sanidade, é muito fácil expor suas falácias.
O enganoso modelo do “fluxo circular”
De forma resumida, o problema com a análise keynesiana de Krugman é que ela é estática, o que significa que ela não leva em consideração a passagem do tempo, e consequentemente é incapaz de abordar a estrutura do capital de uma economia moderna. O “diagrama do fluxo circular” ilustra a maneira como Krugman vê a economia:
Assim, durante uma recessão, Krugman acha que (por alguma razão) os consumidores ficam esquisitos, perdem o bom senso e começam a gastar menos. Isso reduz as receitas obtidas pelas empresas com a venda de bens e serviços. E isso significa que as empresas passam a ter menos dinheiro para gastar com fatores de produção (recursos naturais, horas de trabalho e bens de capital). Isso significa que a renda obtida pelos proprietários desses itens — isto é, por todos na economia — inevitavelmente cai. E com uma renda menor, as pessoas — em seus papéis de consumidores — não podem mais gastar com bens e serviços da maneira como gastavam antes, o que faz com que as receitas das empresas caiam ainda mais. E por aí vai até que a economia de mercado se afunde em uma grande depressão. Repetindo: Krugman acredita que o livre mercado não é capaz de resolver esse problema porque os indivíduos racionalmente reagem ao início de uma crise aumentando seu efetivo em caixa (isto é, eles passam a poupar mais, retendo mais o dinheiro que possuem), o que só faz piorar a crise.
De acordo com Krugman, para a economia sair desse círculo vicioso, o governo deve persuadir os consumidores a voltar a gastar mais. Para atingir esse intento, o governo pode cortar a taxa de juros ou fazer programas de devolução de dinheiro de impostos. Mas, algumas vezes (como na atual situação), esses remédios são insuficientes, e então passa a ser função dos políticos virarem adultos e começarem a gastar dezenas de bilhões de dinheiro emprestado. Apenas isso poderá dar um Ctrl-Alt-Del na economia, que voltará a ter um crescimento sustentável.
Há tantas falhas e falácias nesse pensamento krugmaniano que é difícil saber por onde começar. Primeiramente, se a gastança estatal pode turbinar as receitas de todas as empresas, o que fará aumentar a renda nacional, o que irá permitir mais expansões dos negócios, etc. etc., então por que utilizar essa técnica apenas durante recessões? Por que não recomendar que o governo esteja sempre praticando déficits orçamentários, para assim poder criar empregos e aumentar o PIB?
“Bem”, diriam os keynesianos, “em uma situação de pleno emprego, um estímulo à demanda agregada não faria com que as empresas contratassem mais trabalhadores. Uma nova demanda por produtos ou serviços a essa altura serviria apenas para aumentar os preços, e não para aumentar o produto real”.
Ah, agora estamos chegando a algum lugar. Com toda essa conversa sobre gastos do consumidor e renda nacional, havíamos nos esquecido de que a produção deve ocorrer antes de as pessoas poderem consumir alguma coisa. Não importa quantas cédulas de dinheiro haja na sua carteira, você não pode “demandar” um aparelho de TV a menos que a loja de fato tenha uma unidade na prateleira. Retrocedendo uma etapa, não importa quantos consumidores estejam fazendo fila na porta da loja, o gerente só poderá abastecer suas prateleiras com aparelhos de TV se o fabricante já as tiver produzido anteriormente. E, é claro, o fabricante só poderá atingir esse objetivo se ele encontrar mão-de-obra suficiente, bem como os componentes necessários para se fabricar as TVs. E isso independe da quantidade de dinheiro que o gerente da loja lhe ofereça. Cédulas de dinheiro, por si só, não criam os insumos — e nem a qualificação — necessários para a fabricação de bens de capital.
Agora podemos ver por que o diagrama de fluxo circular acima é um modelo bem enganador da economia. Ele nos faz pensar que a produção de bens de consumo final pode imediatamente aumentar e cair de acordo com o “gasto”. Essa estrutura seria válida caso não houvesse bens de capital, o que significa que todos os bens de consumo e serviços seriam produzidos imediatamente, como se os trabalhadores fossem capazes de pegar os bens da natureza e os transformar imediatamente em bens de consumo final.
Por exemplo, em uma economia composta de massagistas e malabaristas, o diagrama do fluxo circular poderia ser útil. Se alguém quisesse uma massagem e tivesse o dinheiro, o massagista poderia prontamente iniciar o trabalho. A única restrição física sobre a produção do “setor massagista” seria o número de massagistas e o fato de que eles precisam dormir em algum momento. Além do insumo “mão-de-obra”, o único outro item envolvido é uma mesa de massagem, mas a mesma mesa pode ser utilizada na produção de milhares de massagens antes de precisar ser trocada.
Mas as coisas são diferentes com a maioria dos bens e serviços produzidos em uma economia moderna. Em quase todos os setores, os trabalhadores se apresentam no local de trabalho e utilizam ferramentas e equipamentos que ampliam enormemente sua produtividade. Ademais, a esmagadora maioria dos trabalhadores não utiliza suas ferramentas diretamente nos recursos naturais em estado bruto. Ao invés disso, eles utilizam suas ferramentas para transformar os materiais que lhe são enviados por outras empresas.
Seria interessante retroceder uma etapa e considerar o que acontece diariamente no mercado mundial. Há bilhões de seres humanos espalhados pelo planeta. Alguns trabalham em plataformas de petróleo, extraindo vários barris da commodity. Outros trabalham na agricultura, plantando e colhendo trigo. Outros mais trabalham em navios petroleiros ou dirigem carretas, transportando as matérias primas (ou os produtos já acabados) para os mais diferentes lugares. Como consumidores, vemos apenas a ponta final de uma estrutura de produção que pode ter começado muitos anos antes. Os bens finais que você compra na loja são feitos de componentes que provavelmente passaram por várias mãos diferentes, em dezenas de países, antes de tudo ser combinado num só item que você coloca no seu carrinho de supermercado.
Uma vez que entendemos a assombrosa complexidade do verdadeiro “problema econômico” — como que toda essa entrelaçada atividade humana é coordenada de modo a fazer a produção fluir suave e previsivelmente —, podemos ver a absurdidade das receitas keynesianas que exigem gastança pura e simples. Durante uma recessão, não é verdade que toda a produção em todos os setores irá cair exatamente na mesma percentagem. Pelo contrário, alguns setores encolhem mais do que outros. Isso ocorre porque alguns setores sofreram prejuízos enormes e precisam liberar uma parte (ou o todo) de seus trabalhadores e recursos para setores mais lucrativos. Esse rearranjo leva tempo, principalmente porque alguns bens intermediários críticos precisam ser produzidos para que as operações mais ao final da estrutura de produção possam recomeçar. (Nesse artigo, eu conto uma rápida história descrevendo esse processo para uma hipotética ilha de 100 pessoas.)
Os keynesianos estão certos quando dizem que, em uma situação de “pleno emprego”, suas propostas não farão com que sejam construídas mais TVs e mais caminhões para desafogar a linha de montagem. Mas mesmo em uma situação de desemprego maciço, as soluções keynesianas não ajudam. Para enfatizar: simplesmente não é possível aumentar do nada a atividade de todos os setores em, digamos, 1%, de modo a elevar o produto novamente aos níveis pré-recessão; isso é fisicamente impossível, pois, não importa quanto dinheiro os consumidores joguem na economia, a Ford só vai conseguir produzir 1.000 Rangers a mais se ela comprar 4.000 pneus específicos a mais. E o produtor de pneus, por sua vez, só será capaz de atender as encomendas da Ford se puder comprar a quantidade necessária de borracha extra. E o produtor de borracha só vai atender as encomendas se… e por aí vai.
Quando a recessão é resultado de um boom artificial induzido pelo banco central (como ocorreu na recente bolha imobiliária), o declínio econômico é um período de reajustamento, que é quando os recursos que foram mal alocados são canalizados de volta para usos mais apropriados, consistentes com as preferências do consumidor e com a realidade tecnológica. Quando o governo intervém, tentando impedir esse reajustamento, ele acaba simplesmente mantendo essa distribuição insustentável dos recursos escassos. Os gargalos passam a ser frequentes nas milhões de diferentes estruturas por onde “escorre” o fluxo de recursos naturais, que vão desde inúmeras mãos de trabalhadores até as prateleiras das lojas.
Não há nada de paradoxal quanto à poupança
Para finalizar, seria útil esclarecer exatamente o que acontece em uma economia de mercado quando os consumidores decidem poupar mais da sua renda. A primeira coisa a ser percebida é que as pessoas não decidem se vão “gastar” ou não; elas decidem se vão gastar no presente ou no futuro. Por exemplo, imagine que milhares de casais vivendo em uma grande cidade decidam, num belo dia, parar com suas saídas semanais para jantar em restaurantes com o intuito de poupar dinheiro para um cruzeiro de verão. À primeira vista, parece que isso iria afetar a economia. Afinal, os restaurantes locais irão ver suas vendas caírem, o que fará com que eles comprem menos itens de seus fornecedores e demitam alguns empregados. Os fornecedores e trabalhadores, consequentemente, terão menos renda pra gastar, o que afetará as vendas em outros setores também.
Entretanto, desde que os empreendedores envolvidos na indústria de cruzeiros navais antecipem o eventual aumento na demanda por seus serviços, eles irão contrabalancear exatamente os efeitos citados acima ao contratarem mais trabalhadores e outros itens para se prepararem para os atarefados meses de verão. A nova poupança acumulada (que antes era gasta em restaurantes) leva a uma diminuição da taxa de juros, o que talvez permita às operadoras de cruzeiros contraírem mais empréstimos para pagar por um navio adicional. Portanto, a decisão de poupar mais não reduziu a renda ou o emprego total, uma vez que todos se ajustaram aos novos padrões de gastos. E não seria diferente em qualquer outro cenário, como um em que milhares de pessoas se tornam adeptas de uma vida saudável e decidem gastar seu dinheiro em vegetais ao invés de em fast food.
Por outro lado, é verdade que, nas circunstâncias do atual pânico financeiro, os gastos com consumo caíram por causa do temor e da insegurança, e não por causa de alguma alteração fundamental no timing do consumo. Mas, ainda assim, a questão permanece a mesma: as pessoas reduzem o atual nível de consumo com a intenção de poderem “gastar dinheiro” no futuro. A diferença entre a nossa atual situação e a história do cruzeiro relatada acima é apenas que as pessoas nesse momento não estão muito certas sobre quando, e nem com o quê, irão gastar essa poupança extra.
Todavia, a melhor solução ainda é impedir o governo de se intrometer e deixar que as pessoas encontrem a solução dos problemas voluntariamente. A incerteza não é falsa; as pessoas realmente não sabem o que irá acontecer no mês seguinte. Nessa situação, é totalmente apropriado que a economia pare de produzir tantos iPods e outros objetos afins, permitindo que haja um acúmulo temporário dos recursos utilizados na produção desses itens não essenciais.
O que é especialmente irônico em tudo isso é que, mesmo em seus próprios termos, as recomendações de Krugman não fazem sentido. Quer dizer, mesmo se ignorarmos todos os reais ajustes físicos que devem acontecer para se reformar a economia à luz do insustentável boom imobiliário, ainda seria o caso de se defender que o governo não faça nada. Se a atual crise de fato fosse, em grande medida, o resultado de um pânico irracional e de um entesouramento, então um ativismo governamental iria apenas deixar as pessoas mais incertas sobre o futuro. Em particular, ninguém faz qualquer ideia do que a dupla Paulson & Bernanke irá anunciar amanhã em relação a empresas financeiras e hipotecas. Se a intenção é tranquilizar os consumidores de que tudo está normal, por que querer ressuscitar as ferramentas do manual de estratégias do New Deal?
Há mais uma contradição que deveríamos mencionar. A essência do paradoxo da poupança e da armadilha da liquidez é a percepção de que as empresas não irão expandir suas operações se não houver demanda para seus produtos. Mas se Krugman e outros keynesianos são capazes de ver que a interrupção do consumo é apenas temporária, então os empresários do setor também o são. E para aqueles setores em que a interrupção dos gastos não é temporária — por exemplo, construtores de casas atualmente estão tendo vendas muito baixas, e isso não se deve a um entesouramento irracional da parte dos consumidores —, então os gastos do governo com o intuito de “preencher o vazio” somente irão deturpar as coisas ainda mais.
Uma produção sustentável de longo prazo é aquela em que os produtos das empresas emergem do fluxo de produção exatamente quando os consumidores querem comprá-los. Os preços de mercado e o sistema de lucros e prejuízos fornecem a melhor maneira de permitir que os empresários façam essas previsões. Se o governo começar a comprar, digamos, máquinas de fotocópia, mesmo que não precise delas, isso pode de fato criar empregos temporários em algumas empresas, mas os proprietários sabem que não podem confiar nessa demanda porque ela está sujeita a caprichos políticos. Portanto, os esforços do governo irão apenas confundir os empresários que estão tentando configurar sua capacidade produtiva para atender a demanda futura.
Conclusão
Em sua discussão sobre o “paradoxo da poupança”, Paul Krugman comprova que ele não é um economista — ou, pelo menos, não é um muito bom. Suas recomendações políticas são baseadas em um modelo keynesiano em que não se considera o tempo e nem a estrutura do capital de uma produção. As recessões são, na realidade, causadas por desarranjos nessa estrutura inacreditavelmente complexa — desarranjos esses causados pela intervenção governamental, principalmente na área monetária —, e é necessário haver um período de produção abaixo do normal para que essa estrutura se conserte a si própria. E o que é mais importante: os consumidores estão fazendo a coisa certa quando aumentam sua poupança durante uma recessão. Se acabar com uma recessão fosse tão simples quanto colocar as pessoas para gastar, então recessões não seriam algo tão recorrente.
Robert P. Murphy é PhD em economia pela New York University, economista do Institute for Energy Research, um scholar adjunto do Mises Institute, membro docente da Mises University e autor do livro The Politically Incorrect Guide to Capitalism, além dos guias de estudo para as obras Ação Humana e Man, Economy, and State with Power and Market. É também dono do blog Free Advice