Na primeira semana de janeiro, a violência atingiu diversas áreas industriais em Phnom Penh, no Camboja, onde centenas de milhares de trabalhadores do setor de vestuário iniciaram um protesto contra as condições de trabalho injustas. Eles exigem um aumento significativo em seus magros salários, dos atuais 100 dólares por mês para 160 dólares americanos. Trabalhadores, ao lado de uma ampla gama de ativistas, entraram em confronto com forças policiais e militares, que abriram fogo matando quatro pessoas e ferindo muitas outras.
O governo cambojano proibiu reuniões e aglomerações públicas. Embora esses conflitos representem a escalada de uma crise política bastante complexa no Camboja, envolvendo não apenas os trabalhadores e sindicatos, mas também os partidos de oposição e os diferentes grupos da sociedade civil, unidos contra o primeiro-ministro Hun Sen, nos lembram também, mais uma vez, que o modelo inaceitável do sistema mundial de produção está por um fio.
A indústria do vestuário “moderno” tem sido sempre um caso de capitalismo em suas formas mais horrendas, suas condições de trabalho com diferenças abismais e práticas que persistem desde o seu nascimento na revolução industrial. Foi em 1911 que um incêndio em Nova York destruiu a fábrica Triangle Shirtwaist e custou a vida de 146 trabalhadores, principalmente jovens mulheres migrantes.
Ao longo do século passado, o modelo de fábrica exploradora se globalizou, atravessou o mundo e continuamente se mudou em sua busca incessante de novos reservatórios de mão de obra barata. Esse fenômeno acelerou-se com a ascensão do neoliberalismo e a “inclinação às exportações” tornou-se sinônimo de desenvolvimento rápido. A realocação de fábricas de vestuário para o mundo em desenvolvimento tem sido acompanhada por um declínio progressivo dos preços para os consumidores, e o consumismo tem sido enquadrado como um meio de aliviar a pobreza no mundo, não só através de esquemas de comércio justo, mas também através da retórica da “ajuda ao comércio”. Hoje, no contexto do que é conhecido como a “revolução do varejo”, os consumidores ocidentais podem comprar um par de jeans por aproximadamente 8 dólares – e também sentir-se satisfeitos com o pensamento de que, afinal de contas, eles estão comprando para salvar o mundo.
A luta continua
Na indústria do vestuário, a violência e a exploração são praticamente a norma, vivida pelos trabalhadores de várias maneiras. Em muitos casos, os trabalhadores que suam a camisa em fábricas de vestuário globais são migrantes provenientes de áreas rurais, “ejetados” de suas aldeias pela pobreza, o desemprego ou a falta de terras, com a pálida esperança de um futuro melhor para suas famílias. Em muitos casos, são mulheres jovens, passando das mãos do patriarca da família às do patriarca do mercado de trabalho, que ama os salários mais baixos que eles estão dispostos a aceitar. Uma vez nas fábricas, elas enfrentam condições de trabalho duras e intensas e salários extremamente baixos.
Após dez anos estudando, pesquisando e investigando esta indústria, eu ainda estou espantada com os inúmeros matizes em que a exploração se manifesta, e pelas infindáveis lutas que os trabalhadores da indústria de vestuário enfrentam não apenas no trabalho, mas em suas vidas diárias. Na Índia, os trabalhadores lutam para encontrar uma habitação decente, e vivem em barracos imundos às margens das metrópoles urbanas, ampliando o perímetro do “Planeta das Favelas”, de Mike Davis. Na China, os trabalhadores ficam confinados aos dormitórios das empresas, com cada momento de suas vidas totalmente mercantilizado e controlado.
Em Bangladesh e Paquistão, trabalhadores do setor de vestuário lutaram por suas vidas em meio ao colapso dos edifícios onde trabalhavam. Friamente, depois de mais de um século, a tragédia do Rana Plaza, em Dhaka, repetiu perfeitamente o padrão do incêndio da fábrica Triangle Shirtwaist. Em ambos os casos, centenas de trabalhadores foram trancados em um prédio velho, superlotado e caindo aos pedaços, impossibilitados de escapar.
No Camboja, os trabalhadores protestam nas ruas por direitos trabalhistas e meios de subsistência, exigindo uma compensação justa pelo seu suor. Afinal de contas, é o seu suor – juntamente com a de outros trabalhadores asiáticos, latino-americanos ou africanos – que tecem as roupas do mundo. Em resposta às suas demandas, foram baleados e espancados nessas ruas por seus governantes.
Os acontecimentos que se desenrolaram em Phnom Penh são os espasmos de um regime que perde cada vez mais a legitimidade política em face da crescente oposição; mas também são a face de um regime capitalista global profundamente desigual, em que grandes populações do mundo existem apenas para fornecer mão de obra barata. Para que o Camboja continue a ser um destino desejável para o capital global, os salários devem ser mantidos baixos. Neste sentido, o governo cambojano está usando violência não só contra a oposição nacional, mas também em defesa da sua posição dentro da ordem mundial neoliberal.
Em seu artigo de 1997 “Em louvor à mão de obra barata”, o economista Paul Krugman argumenta que, apesar da “retórica” sobre as condições de trabalho terrivelmente degradantes, os trabalhadores em regiões em desenvolvimento foram os principais beneficiários da arquitetura mundial atual de produção industrial porque, afinal de contas, qualquer trabalho, mesmo que ruim, é melhor do que nenhum trabalho. No momento em que os trabalhadores marcham no Camboja para lutar por sua própria revolução de varejo, é justamente a hora de desafiar de uma vez por todas esse argumento estreito e míope. E ao mesmo tempo em que nós devemos condenar o governo cambojano por seu ataque sangrento contra seu próprio povo, devemos também reconhecer, francamente, que as roupas que nós vestimos estão manchadas de sangue, em cada costura, e que estamos todos juntos nisso.
Alessandra Mezzadri recebe financiamento da ESRC, DFID e da Academia Britânica
Esse artigo foi originalmente publicado em The Conversation
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