O mês de junho deste ano era para ser uma festa para a comunidade de transplante chinesa. Uma importante conferência havia sido planejada e a agenda era “fazer da China um modelo das normas internacionais estabelecidas pelos Princípios Orientadores da Organização Mundial da Saúde e pela Declaração de Istambul“, duas referências globais para a prática ética do transplante de órgãos.
Mas não houve conferência em junho deste ano. E nem um pio foi ouvido sobre o assunto, nem da Comissão Nacional de Saúde e Planejamento Familiar da China, que ostensivamente supervisiona o sistema de transplante de órgãos do país, nem da Sociedade de Transplantes (TTS), um grupo médico internacional que tem por muitos anos trabalhado com funcionários chineses na tentativa de fazê-los transformar seu sistema atual abusivo num paradigma ético para outros países.
Na verdade, grupos de transplante internacionais parecem ter deixado de cooperar abertamente com a China, após a TTS e a Grupo de Custódia da Declaração de Istambul enviarem uma repreensão pública em fevereiro, pedindo diretamente ao líder chinês Xi Jinping que limpe a corrupção e acabe com os abusos na indústria chinesa de transplante do órgão.
A participação da comunidade mundial de transplante foi fundamental para a conferência proposta para junho. Sem ela, isso teria fracassado. Não há menção da conferência em qualquer lugar na internet chinesa, onde tal notícia é geralmente bastante alardeada.
“Os chineses querem ter sua fatia do bolo e degustá-la – eles querem se envolver nos abusos de transplante de órgãos e ganhar prestígio global na profissão”, disse David Matas, um advogado canadense de direitos humanos coautor de um livro seminal sobre a extração forçada de órgãos de praticantes do Falun Gong na China. “Os profissionais da comunidade de transplante estão evitando-os e repreendendo-os pelos abusos em sua política de órgãos.”
Mudança política
A ideia de realizar uma conferência em junho deste ano foi proposta em outubro passado, durante a excitação da Resolução de Hangzhou, quando médicos de destaque internacional foram prometidos pelas autoridades chinesas que a China eliminaria gradualmente o transplante de órgãos de prisioneiros executados.
“A reunião está prevista para Pequim em junho de 2014, sob a presidência de Huang Jiefu, que gostaria de convidar os dirigentes das principais sociedades internacionais… para endossar a mudança na prática de doação e transplante de órgãos na China”, dizia uma transcrição da reunião de outubro, publicada no website do Grupo de Custódia da Declaração de Istambul, que defende a ética nas práticas de transplante de órgãos.
Muita coisa mudou desde outubro passado.
O mais impressionante, Huang Jiefu, o ex-vice-ministro chinês da saúde e agora o diretor do Comitê de Transplante de Órgãos da China, o organismo oficial que supostamente supervisiona e implementa as políticas nacionais de transplante de órgãos, declarou publicamente que a China não pararia o transplante de órgãos de prisioneiros executados e inclusive incentivou a expansão da prática.
Grande parte das relações da China com a comunidade internacional de transplante tem sido na condição de que todos estavam trabalhando para eliminar essa prática antiética de usar órgãos de prisioneiros.
Em março, no entanto, Huang foi citado dizendo: “Os órgãos judiciais e departamentos de saúde locais devem estabelecer laços e permitir que os prisioneiros no corredor da morte doem órgãos voluntariamente e sejam adicionados ao sistema de alocação de órgãos.”
Esta reversão na política oficial de transplante da China levou a comunidade médica internacional a uma abordagem muito mais fria em relação à China em questões de cooperação.
‘Promessas vazias’
“Médicos ocidentais que trabalham com a China não estão sendo mais enganados”, disse o Dr. Torsten Trey, diretor-executivo dos ‘Médicos Contra a Extração Forçada de Órgãos’ (DAFOH), um grupo de medicina ética que tem se concentrado nas práticas abusivas de transplante na China.
“Após seis ou sete anos de promessas vazias da China, os médicos agora podem entender, e estão dizendo: ‘Ei, ou você cumpre o que prometeu na Resolução de Hangzhou ou não colaboraremos com vocês jamais.’”
Representantes oficiais da TTS não responderam a repetidas solicitações sobre a conferência – se eles se recusaram a participar e por que eles não o fizeram.
O Dr. Jacob Lavee, um cirurgião de transplante israelense e membro do Comitê de Ética da TTS, disse num e-mail: “Desde a carta aberta do Dr. Delmonico e de outros líderes da TTS ao presidente da República Popular da China, a TTS se desvinculou de qualquer outra atividade na China.”
A Organização Mundial de Saúde (OMS), que participaria do evento e adicionaria outro carimbo de aprovação e credibilidade global, não respondeu a um pedido de comentários. É possível que a conferência seja realizada até o final do ano, com um conjunto reduzido de participantes.
A Sociedade de Transplantes não cortou o contato com a China inteiramente – o Dr. Francis Delmonico, presidente da TTS, assistiu e falou numa reunião de transplante, patrocinada pela Comissão Nacional de Saúde e Planejamento Familiar da China, realizada em março.
É possível que a mudança para uma postura mais firme em relação às promessas chinesas sobre melhorar suas práticas de transplante seja útil no longo prazo.
“Não se trata de isolar a China, o que significaria parar toda a discussão, debate e diálogo. As portas de comunicação ainda estão abertas”, disse Trey. “Houve uma promessa, e é óbvio que a promessa não estava sendo cumprida. É um sinal para a China que promessas vazias não funcionarão com a comunidade médica internacional.”
Se algo significativo pode ser reconstruído é uma questão em aberto, dado o colapso interno na China, onde os serviços de segurança e o complexo médico-militar mantêm um rígido controle sobre a maior parte do sistema de transplante de órgãos, deixando aos tecnocratas da saúde pouca influência na forma como as práticas de transplante são realmente efetivadas e de onde se originam os órgãos.
“Todo o esforço, por parte de todos, mesmo sincero, era ingênuo”, disse David Matas. “A teoria é que você conseguirá concretizar uma ilha de estado de direito num mar revolto de tirania e abusos – é impossível que isso aconteça, especialmente quando você está lidando com uma arena onde a perseguição ao Falun Gong é central”, explicou ele.
“Inevitavelmente, isso tinha de falhar. Qualquer um que pensou que isso poderia ter sucesso, eu diria que, no mínimo, observava a questão muitos estreitamente, sem compreender o contexto, que é o fato do Partido Comunista Chinês governar a China.”