Entenda o conceito básico do programa ‘ObamaCare’

18/03/2014 14:00 Atualizado: 18/03/2014 14:32

Na seção final de Ação Humana, Ludwig von Mises declarou ser um “dever cívico primordial” estudar e entender as lições da economia. A crescente fúria do público americano em relação aos efeitos do Patient Protection and Affordable Care Act (Lei de Proteção ao Paciente e de Assistência Acessível) — popularmente conhecido como ObamaCare — ilustra perfeitamente o argumento de Mises.

Ninguém tem o direito de se surpreender com o fato de que milhões de americanos estão tendo seus atuais planos de saúde cancelados (dentre eles este furioso articulista). Tal resultado era óbvio desde o início. Adicionalmente, o hilário problema no website do governo, HealthCare.gov, que estreou dia 1º de outubro e até hoje não consegue processar inscrições para planos de saúde, são meramente uma diversão secundária. Os reais problemas com o ObamaCare são muito mais profundos do que um simples site estatal que não funciona como deveria.

A estrutura básica do ObamaCare

O Affordable Care Act (ACA) foi promulgado no dia 23 de março de 2010. Há várias cláusulas que começam a valer em etapas distintas, até 2020. Para os propósitos deste artigo, há quatro elementos essenciais do ACA que merecem nossa atenção:

• Os planos de saúde são legalmente obrigados a fornecer cobertura a todos os requerentes, independentemente de seu histórico médico. Para isso, haverá um sistema parcial de “classificação comunal” para os prêmios, o que significa que os planos de saúde terão de estipular seus prêmios baseando-se (majoritariamente) na geografia e na idade dos requerentes, e não no sexo ou nas condições médicas pré-existentes.

• As apólices dos planos de saúde terão de atender a padrões mínimos (chamados de “benefícios essenciais de saúde”), o que inclui não haver um limite máximo para indenizações anuais ou vitalícias das empresas seguradoras para uma apólice individual.

• Absolutamente todos os cidadãos dos EUA são obrigados a comprar um plano de saúde. Haverá isenção apenas para determinados grupos religiosos. Os mais pobres que se declararem incapazes de arcar com os custos dos prêmios receberão subsídios do governo federal. Haverá também “mercados de intercâmbio de planos” em nível estadual para auxiliar estes indivíduos.

• Haverá uma “obrigatoriedade aos empregadores” que penalizará empresas com mais de 50 empregados caso elas não paguem os planos de saúde de seus empregados que trabalham em tempo integral — no caso, aqueles que trabalham 30 horas ou mais por semana.

As consequências premeditadas

Há motivos para as cláusulas específicas acima, as quais, para um completo leigo em economia, podem parecer superficialmente sensatas. Obviamente, antes da promulgação desta lei, havia milhões de americanos sem nenhum plano de saúde. Embora muitos deles ainda fossem jovens e saudáveis — que imaginavam poder se arriscar sem ter um plano de saúde —, havia vários que realmente queriam cobertura, mas que não eram capazes obter nenhuma, seja porque era muito caro ou porque havia recusa das seguradoras pelo fato de o indivíduo já apresentar alguma condição médica.

Agora, dado que o governo queria obrigar as pessoas a comprar planos de saúde e queria obrigar as seguradoras a conceder planos de saúde para todos os requerentes, tinha de haver regras específicas estipulando o valor dos prêmios que elas poderiam cobrar, bem como o mínimo que elas deveriam oferecer. Caso contrário, as seguradoras poderiam simplesmente dizer: “Muito bem, presidente Obama, iremos de fato fornecer uma apólice para qualquer requerente — até mesmo para aquele que já apresentar câncer no cérebro. O único detalhe chato é que o prêmio anual para pessoas com câncer no cérebro será de US$ 2 milhões. E teremos também de limitar nossas indenizações a US$100 por ano. E então, quem vai querer apólices? Ficaremos extremamente felizes em nos sujeitarmos a esta nova lei.”

Dando sequência à lista, consideremos a obrigatoriedade individual, a qual exige que (praticamente) todo cidadão americano adquira um plano de saúde. O motivo desta cláusula é evitar aquilo que é conhecido como seleção adversa. Se as seguradoras fossem obrigadas a fornecer cobertura para todos os requerentes e se os indivíduos tivessem a liberdade de decidir entre comprar ou não um plano de saúde, então as seguradoras rapidamente iriam à falência. Afinal, pessoas saudáveis poderiam simplesmente cancelar suas apólices — não mais tendo de pagar os caros prêmios —, e então comprar uma apólice apenas quando elas estiverem doentes. Isso seria igual às pessoas comprarem seguros de veículos somente após terem se envolvido em um acidente; é óbvio que não seria nada racional para nenhuma empresa oferecer seguro em um ambiente assim.

Porém, dado que o governo irá obrigar todos os indivíduos a adquirir um plano de saúde, era então necessário oferecer subsídios e outros mecanismos para garantir que esta obrigatoriedade seria exequível.

Finalmente, a obrigatoriedade do empregador em pagar o plano de saúde de seus empregados foi ostensivamente incluída com o intuito de minimizar os distúrbios no sistema. Na ausência desta obrigatoriedade, temia-se que os empregadores abandonassem os planos de saúde que já pagam atualmente para seus empregados e lhes dissessem para utilizar o novo mercado estadual de intercâmbio de planos. O motivo de restringir esta obrigatoriedade às empresas maiores (com 50 ou mais empregados em tempo integral) e aos empregados em tempo integral (aqueles que trabalham 30 horas ou mais) é que seria desarrazoado e contraproducente impor exigências tão caras — as quais podem chegar a milhares de dólares por ano por empregado — às pequenas empresas ou até mesmo a uma grande empresa que trabalhasse maciçamente com empregados de meio expediente.

Os efeitos “não-premeditados”, porém totalmente previsíveis

Os americanos estão agora vivenciando os efeitos indesejáveis do ACA. Tais efeitos estão sendo tipicamente descritos como “não-premeditados”. No entanto, este adjetivo é incabível, uma vez que tais resultados eram totalmente previsíveis e de fato foram previstos por vários economistas pró-livre mercado no debate que antecedeu a aprovação do ACA. Os mais cínicos podem corretamente especular que pelo menos alguns dos defensores do ACA sabiam perfeitamente bem que as consequências seriam insustentáveis, o que levaria o público a pedir ainda mais intervenções federais no sistema de saúde.

A consequência mais óbvia é um acentuado encarecimento nos prêmios das apólices de vários americanos. Isso já está ocorrendo. Tão logo as coberturas tornadas obrigatórias pelo governo estejam totalmente em vigor, o encarecimento contemplará a todos. O maior aumento irá ocorrer em locais que atualmente oferecem políticas mínimas, com grandes deduções e baixas indenizações. Por exemplo, segundo este artigo da CNN, funcionários do governo estimam que, na Flórida, os prêmios de um plano “prata” irão encarecer algo entre 7,6 a 58,8%, ao passo que em Ohio estima-se um aumento médio de 41%.

Agora, mesmo que a quantia oficial que determinados indivíduos irão pagar por seus planos de saúde diminua, a real questão é se esta redução será mais do que compensado pelo aumento nos impostos necessário para cobrir todos os novos subsídios que serão concedidos a indivíduos pobres que não são capazes de satisfazer a obrigatoriedade individual (que obriga todos os indivíduos a adquirir um plano de saúde). Retrocedamos um pouco e analisemos o cenário como um todo: sob o ObamaCare, milhões de novas pessoas irão repentinamente sair à procura de mais serviços médicos do que antes. Não há nada na nova lei que irá magicamente criar mais médicos, mais hospitais ou mais máquinas de ressonância magnética. Os americanos como um todo irão pagar mais por tudo isso, de um jeito ou de outro.

Com efeito, o enorme aumento no controle governamental sobre os gastos da saúde irá fornecer a justificativa para futuros racionamentos impostos pelo governo — como até mesmo o próprio Paul Krugman reconhece quando ele descaradamente defende a imposição de “comitês da morte” que iriam determinar quem deve viver e quem pode morrer. (Sério mesmo, clique no link para assistir ao vídeo caso não esteja acreditando em mim).

“Mas o presidente disse que eu poderia manter o meu plano de saúde original caso gostasse dele…”

Outro resultado previsível é que vários americanos não poderão manter seus planos de saúde originais. Vários planos já foram cancelados e estão sendo cancelados diariamente ao redor do país (dentre eles, o meu).

Milhões de americanos que compraram planos de saúde no mercado individual (isto é, por conta própria e não via seus empregadores) estão descobrindo que seus planos atuais não mais atendem aos critérios impostos pelo ObamaCare.

Para evitar um encarecimento do valor de seus prêmios, profissionais liberais relativamente jovens e saudáveis haviam adquirido planos mais simples e com altas deduções. Tais planos estão doravante proibidos. De acordo com este artigo da Forbes, ainda em 2010 (sic!), funcionários do governo Obama já estimavam que 93 milhões de americanos possuíam planos de saúde que seriam inaceitáveis sob o ObamaCare.

Demissões

Além do encarecimento dos prêmios (e, em última instância, racionamentos estatais dos serviços de saúde), outro grande aspecto negativo do ObamaCare é as demissões que ele irá causar. Por exemplo, eis o trecho de um e-mail que um economista enviou para o professor Greg Mankiew, de Harvard:

“Com a implementação do ACA (Affordable Care Act), estas instituições (de ensino superior) estão notificando seus professores que trabalham meio-expediente de que seus cronogramas de aulas serão limitados a três seções. Na faculdade, isso irá resultar no cancelamento de 20 a 25% das aulas de economia. Creio que outras áreas vivenciarão resultados similares. Os alunos não estão completamente cientes desta situação, e vários se surpreenderão ao descobrir que seu desejo de obter um ensino superior será impactado pela necessidade de se evitar a total implementação do ACA.”

Até mesmo alguns líderes sindicais reconhecem a devastação que o ObamaCare iria gerar sobre os trabalhadores, e estão protestando dizendo que o governo irá “destruir as bases das 40 horas semanais de trabalho”.

Isso não é nenhuma ciência astronáutica. Se o governo tem de obrigar empregadores a fornecer um benefício para seus empregados, então tal benefício é necessariamente não-lucrativo; caso contrário, os empregadores já o estariam fornecendo como parte de seu pacote de compensação para atrair mão-de-obra qualificada. Portanto, se esta custosa e não-lucrativa obrigatoriedade for aplicada apenas a empresas com 50 ou mais empregados, e ainda assim valer apenas àqueles empregados que trabalham 30 horas ou mais, então ninguém tem o direito de se surpreender com o fato de que as empresas ou não estão contratando mais do que 49 empregados ou estão limitando seus empregados a 29 horas de trabalho por semana.

Conclusão

O ObamaCare representa a maior expansão da autoridade regulatória do governo federal em toda a história americana. De uma só vez, esta nova lei coloca 16% da atividade econômica americana — praticamente todo o setor de planos de saúde e de serviços médicos — sob o jugo de burocratas federais. A lei estipula a cobertura mínima que tem de ser fornecida pelos planos de saúde. Estipula a cobertura mínima que cada cidadão americano tem de comprar das seguradoras de saúde. Pune severamente, sem direito a interrogatório, qualquer indivíduo ou empresa que optar voluntariamente por algo que seja menos do que a cobertura mínima imposta pelo governo. Obriga praticamente todos os cidadãos americanos a adquirir apólices homogêneas, que inclusive tenham cobertura para eventos que não podem ocorrer. E obriga os planos de saúde a aceitarem pessoas com condições médicas pré-existentes e a cobrarem delas o mesmo prêmio que cobram de pessoas saudáveis, que não têm nenhuma condição pré-existente.

Quando os custos de se fornecer um seguro são encarecidos artificialmente, haverá ou um encarecimento dos prêmios ou uma diminuição efetiva da cobertura, por mais que isso esteja sendo proibido por burocratas. Caso contrário, as seguradoras quebram. É uma questão de realidade econômica e contábil. Ao que tudo indica, os burocratas do governo americano desconhecem esta realidade.

Robert P. Murphy é PhD em economia pela New York University, economista do Institute for Energy Research, um scholar adjunto do Mises Institute, membro docente da Mises University e autor do livro The Politically Incorrect Guide to Capitalism, além dos guias de estudo para as obras Ação Humana e Man, Economy, and State with Power and Market. É também dono do blog Free Advice

Esta matéria foi originalmente publicada pelo Instituto Luwig von Mises Brasil