Comunidade internacional de transplante critica comércio de órgãos na China

14/04/2014 12:13 Atualizado: 14/04/2014 12:13

Duas organizações internacionais importantes de transplante escreveram uma carta aberta ao líder chinês Xi Jinping, chamando o sistema de transplante de órgãos da China de corrupto e “desprezado pela comunidade internacional”, enquanto exortaram ao líder do Partido Comunista que fizesse mudanças profundas e urgentes.

A publicação da missiva assinada conjuntamente pela Sociedade de Transplantes e pelo Grupo de Custódia da Declaração de Istambul, que aparece na revista Transplantation este mês, representa uma ruptura com a abordagem cuidadosa e sem confrontos que a comunidade de transplante internacional tem assumido há anos em relação à China. No passado, vozes críticas dificilmente eram ouvidas além das promessas entusiastas de cooperação e o tilintar de copos de cocktail em recepções diplomáticas.

Recentemente, em novembro do ano passado, os principais representantes da comunidade internacional de transplante, alguns deles signatários da atual carta, foram fotografados (num semicírculo como uma equipe de esporte) com as principais autoridades chinesas da área.

Algo aconteceu entre aquela época e fevereiro na China. Naquela época, rascunhos da carta foram divulgados, evidentemente provocados pelo azedamento das relações entre médicos globais e representantes do Partido Comunista.

“Esta carta é um reflexo desta perspectiva incerta na China. Ela pede respostas claras e põe fim às promessas enganosas da China como as conhecemos do passado”, disse Torsten Trey, o diretor-executivo do grupo de defesa ‘Médicos contra a Colheita Forçada de Órgãos’ (DAFOH), que segue de perto o assunto.

“Além disso, a carta é também um testemunho dos médicos que realmente querem ver o fim da extração de órgãos antiética na China”, disse Trey. Embora seja um passo adiante, alguns observadores dos abusos no sistema de transplantes da China acham que a carta não vai longe o suficiente ao retratar a situação dos prisioneiros de consciência.

‘Espada da justiça’

A Declaração de Istambul é a posição ética básica da comunidade médica mundial sobre transplantes de órgãos, e afirma que o uso de órgãos de prisioneiros é “incompatível” com seus objetivos.

Este é o principal ponto de discórdia entre o mundo e a China, onde o Partido Comunista continua a executar prisioneiros por seus órgãos, enquanto oscila entre prometer acabar com a prática e continuar a defendê-la.

Os autores da carta usam a própria retórica da China para alfinetá-la por não cumprir as diretrizes éticas internacionais e suas orientações sobre transplantes de órgãos. O Diário da China, uma mídia em língua inglesa porta-voz do regime chinês, é citado no sentido de que o sistema judicial deve “brandir a espada da justiça e balancear a igualdade” pela China. O “Sonho da China”, o slogan do governo de Xi Jinping, não é nada menos do que “um chamado para uma cultura de direitos humanos”, afirma a carta.

As autoridades chinesas de fato concordaram em novembro do ano passado com um quadro legal que estabeleceria credenciais para médicos de transplante de órgãos e proibiria o comércio de órgãos. Depois disso, 38 hospitais teriam prometido parar de usar os órgãos de prisioneiros executados.

Este foi um “passo encorajador em direção a um sistema de transplante de órgãos justo, ético e aberto na China”, diz a carta. É dada inclusive grande confiança a Huang Jiefu, o ex-vice-ministro da Saúde, que tem sido o arquiteto do sistema de transplantes chinês, e o homem-chave do Partido Comunista para lidar com os médicos estrangeiros preocupados com a ética profissional.

Colocando as coisas em ordem

Foi perturbador, no entanto, para aqueles preocupados com a prática ética, quando no mês passado o próprio Huang Jiefu defendeu o uso de órgãos de prisioneiros executados.

“Os órgãos judiciais e ministérios de saúde locais devem estabelecer laços e permitir que prisioneiros no corredor da morte doem órgãos voluntariamente e sejam adicionados ao sistema de dados de alocação de órgãos”, disse Huang Jiefu, em declarações parafraseadas pelo Diário da Manhã de Pequim e amplamente publicados em websites chineses.

Isso visaria a integrar o ilícito sistema de órgãos de prisioneiros executados com o que seria um sistema de doação voluntária baseada no altruísmo, este último aproximadamente nos moldes que existe em muitos países desenvolvidos.

As declarações de Huang foram efetivamente um repúdio às promessas que as autoridades chinesas fizeram anos atrás. Ethan Gutmann, um jornalista investigativo que escreveu um livro sobre o sistema de órgãos da China, disse: “Estamos de volta onde começamos em 2006”, numa entrevista anterior com o Epoch Times. “Eles estão basicamente dizendo que precisam por seu sistema em ordem.”

Para aumentar a confusão, as observações de Huang vieram em meio a promessas de outros funcionários sobre “reduzir a dependência” de órgãos de prisioneiros. “Eu estou ciente das declarações aparentemente inconsistentes”, escreveu o Dr. Francis L. Delmonico, presidente da Sociedade de Transplante e signatário da carta, num e-mail. “A carta aberta é escrita por vários líderes internacionais intencionalmente, de modo a apresentar uma resolução de consenso.”

“A carta fala por si só”, acrescentou ele. Enquanto a letra representa uma abordagem nova e mais firme de organizações como a Sociedade de Transplantes, os pesquisadores do abusivo sistema de transplante de órgãos da China dizem o texto deixa de fora partes importantes da história: ou seja, a extração de órgãos de prisioneiros que não foram condenados à morte, mas que são prisioneiros de consciência que não cometeram qualquer crime reconhecido internacionalmente.

Omissões problemáticas

“A carta aberta sugere que a reforma do sistema de transplante de órgãos sob a liderança de Huang Jiefu está se movendo na direção certa e apenas uma corrupção generalizada está dificultando o processo. Esta visão é tendenciosa”, escreveu Arne Schwarz, um pesquisador independente das práticas abusivas de transplante, num e-mail.

“É uma pena que todos os tipos de instituições políticas – a União Europeia, o Congresso dos Estados Unidos, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas – abordem a questão da extração de órgãos de prisioneiros de consciência, mas a Sociedade de Transplantes permaneça em silêncio sobre isso”, disse Schwarz.

Isso se refere principalmente à extração forçada de órgãos de praticantes do Falun Gong, uma disciplina espiritual que tem sido brutalmente perseguida na China desde 1999. Pesquisadores, incluindo Gutmann, apontam para um acúmulo de evidências indicando que dezenas de milhares de órgãos foram extraídos de praticantes do Falun Gong que foram presos devido a suas convicções pacíficas.

A pesquisa de Gutmann mostrou que uigures muçulmanos, uma minoria de língua turca na Região Autônoma de Xinjiang da China, foram usados para obtenção de órgãos na década de 1990. Com o afluxo de adeptos do Falun Gong em campos de trabalho forçado a partir de 1999, o complexo militar-médico começou a extrair seus órgãos por lucro.

Na década de 2000, os websites na China anunciavam abertamente os tempos de espera de uma ou duas semanas para obtenção de órgãos e prometiam agendar transplantes – ambas práticas inéditas em países ocidentais, onde as listas de espera podem ser de mais de um ano, e os destinatários devem esperar pelo falecimento dos doadores. Em 2006, médicos e funcionários hospitalares em toda a China admitiram em ligações telefônicas gravadas secretamente que eles tinham “órgãos frescos e de muito boa qualidade… provenientes de praticantes do Falun Gong”. Dois pesquisadores canadenses compilaram estas evidências num relatório posteriormente.

“A vida não tem preço”

A natureza escandalosa dessas revelações e a pressão da opinião pública subsequente forçaram algumas mudanças na abordagem da China sobre o fornecimento de órgãos, embora as autoridades nunca tenham admitido o uso de prisioneiros de consciência para obtenção de órgãos, e não há garantia de que a prática tenha sido interrompida.

Segundo Schwarz, a cooperação da China com o Ocidente nos últimos 30 anos tem apenas “ajudado a melhorar os resultados médicos de transplantes chineses, mas não promoveram práticas mais éticas”.

A carta recente da Sociedade de Transplantes retrata esta desconexão. “O website Tianjin continua a recrutar pacientes internacionais que buscam transplantes de órgãos… O abuso subjacente desses profissionais médicos e a conivência generalizada pelo lucro são inaceitáveis.”

Eles se referem ao caso de uma menina de 14 anos nacional da Arábia Saudita que recebeu o órgão de um prisioneiro executado (de que tipo não se sabe) pela soma de US$ 200 mil. Mas a criança contraiu uma doença viral devido ao procedimento e morreu em poucas semanas. “Não houve qualquer reparação ou responsabilização, ou mesmo qualquer avaliação de desempenho associada a este procedimento ilegal e antiético”, diz a carta.

Enquanto isso, o website www.cntransplant.com continua a funcionar. Ele anuncia “o melhor hospital para transplante simultâneo de rim-pâncreas” e “o hospital mais famoso de transplante renal na China”. “Esses hospitais mencionados acima, autorizados pelo governo da República Popular da China, são de fato o local onde pacientes moribundos renascem”, diz o site. “A vida não tem preço, a qualidade deve ser garantida.”