A China acordou confusa numa manhã no final de 1971, quando descobriu que Lin Biao, o sucessor de confiança do presidente Mao, era na verdade o tempo todo um “vigarista político”, um “intrigante” e “um homem com ligações estrangeiras”.
A imprensa chinesa disse mais tarde que ele havia arquitetado um plano para assassinar o presidente, mas que foi frustrado, e então ele tentou fugir para a União Soviética. No caminho, seu avião teria caído. Fotos foram divulgadas, mas nunca puderam ser verificadas. Todos os slogans revolucionários de Lin foram rejeitados, comícios foram organizados, canções foram cantadas e jornais do Partido Comunista Chinês fizeram um grande esforço para explicar por que os planos do “renegado e traidor” não foram descobertos mais cedo.
Ninguém nunca saberá o que realmente ocorreu com Lin Biao – acredita-se que Mao julgou-o como uma ameaça e o liquidou – mas seu caso é um dos muitos numa história de acrobacias políticas motivada por um ambiente midiático controlado e propaganda implacável. A história de Lin é também uma importante lição sobre o mundo enigmático e frequentemente mortal das campanhas de propaganda comunista, uma forma de persuasão de massa que persiste até hoje.
Programa de TV “Focus”
Trinta anos depois, em 31 de janeiro de 2001, uma semana após o Ano Novo chinês, a maior comemoração no país, famílias estão reunidas, todos estão em casa celebrando e depois do jantar muitos sintonizam na emissora nacional, a China Central de Televisão (CCTV), para assistir o noticiário investigativo “Focus”. Neste dia, excepcionalmente, panfletos foram distribuídos nos edifícios e áreas residenciais exortando as pessoas a sintonizarem no programa.
Centenas de milhões de telespectadores ficaram perplexos ao serem informados de que o que eles pensavam que era uma prática pacífica de qigong – o Falun Gong, também conhecido como Falun Dafa – era na verdade uma “religião do mal” que se envolvia em atos de autoimolação. As autoridades foram ao ar com um documentário de 20 minutos, resultado de uma semana de produção, sobre os supostos praticantes do Falun Gong que teriam se colocado em chamas no dia 23 de janeiro.
Havia numerosos e evidentes buracos na história: Desde questões lógicas como: se autoimolação era parte dos ensinamentos do Falun Gong, por que isso foi visto primeira vez apenas agora? Até absurdos: como o número de autoimoladores saltou de cinco nos relatórios originais para sete uma semana depois? E dúvidas práticas: Philip Pan do Washington Post revelou que pelo menos dois participantes não eram praticantes do Falun Gong; os supostos autoimoladores estavam vestindo roupas de proteção contra incêndio; a polícia rapidamente chegou ao local com extintores de incêndio, quando normalmente as autoridades na Praça da Paz Celestial nunca carregam esses equipamentos, etc.
Massacre da mídia
Mas esses pequenos problemas não impediram as autoridades de avançar com seus planos.
E seus planos eram ambiciosos. A campanha de mídia que se seguiu envergonharia à feita contra Lin Biao. Nos dias seguintes ao incidente, havia três, quatro ou cinco artigos em cada edição do jornal porta-voz do regime de 24 páginas, o Diário do Povo. Nos primeiros 18 meses de perseguição ao Falun Gong, que começou em 20 de julho de 1999, 966 artigos “denunciando e criticando” o Falun Gong foram publicados no Diário do Povo. Em 2001, 530 mais se seguiram.
O Falun Gong, uma disciplina espiritual e tradicional chinesa, foi proibido em 1999 na China e tem sido perseguido pelo regime comunista chinês desde então, uma campanha iniciada e liderada pelo ex-líder chinês Jiang Zemin. Mas ao contrário de movimentos políticos de massa anteriores, este teve problemas para capturar corretamente a imaginação de um público cada vez mais desinteressado. A imolação mudou tudo isso.
E não se limitou ao Diário do Povo. Ao pesquisar esta campanha antes do 10º aniversário da maior encenação política na história da China moderna, o Epoch Times vasculhou bancos de dados eletrônicos e constatou que a propaganda sobre a imolação apareceu não apenas em jornais, revistas e periódicos acadêmicos, mas em anuários nacionais e provinciais, relatórios econômicos, revistas de negócios, relatórios de higiene, artigos de química, publicações de aposentados, livros didáticos do ensino fundamental, manuais de formação de professores e praticamente em todas as publicações chinesas em 2001 e nos anos seguintes.
A mensagem mais eficaz, no entanto, foi comunicada por meio da televisão. Especificamente, o Partido usou as imagens do corpo de uma menina de 12 anos aparentemente queimado como peça central da campanha para desacreditar o Falun Gong. Muitos foram convencidos. A autenticidade das imagens foi posta em causa, no entanto, quando poucos dias após a suposta queimadura e uma traqueotomia, a menina foi filmada cantando, o que seria impossível. Mas o público chinês não foi exposto a essas contradições.
Peter Zheng, um praticante do Falun Gong que agora vive em Illinois, EUA, estava na cidade de Wuhu, na província de Anhui, na época. “Eles [as autoridades chinesas] transmitiam basicamente todos os dias, em todos os canais, por uma semana, tentando impor um tom conservador”, disse Zheng. “Outros programas terminaram, diziam eles como desculpa. Além da imolação, eles apresentavam outras notícias anti-Falun Gong, testemunhos e reportagens arranjados, investigações dúbias, casos de assassinato sem relação e elaborações de todos os tipos e ângulos dos relatórios [do Partido Comunista Chinês], etc.”
Após a saturação inicial dos meios de comunicação, o volume das reportagens diminuiu, mas a CCTV continuou o martelar constante da reportagem sobre as imolações e a atacar o Falun Gong.
Em março de 2002, a emissora NTDTV transmitiu o documentário premiado “Fogo Falso“, uma análise das inconsistências na história das imolações de praticantes do Falun Gong na Praça da Paz Celestial, e depois disso a mídia estatal chinesa “acalmou”, segundo a Sun Yanjun, que era um professor associado de psicologia na Universidade Normal da Capital na ocasião.
Na China, a propaganda vigorosa que segue a linha do Partido Comunista sempre acompanha à repressão de vozes alternativas. No caso da imolação, nenhuma investigação independente foi permitida, nem o acesso independente ou o exame das supostas vítimas e nenhuma análise crítica na mídia nacional. As reportagens da mídia ocidental muitas vezes simplesmente repetiam o que a mídia oficial chinesa dizia.
A tentativa dos praticantes do Falun Gong de apresentar uma narrativa diferente do incidente, penetrando no sinal de televisão via satélite para transmitir um documentário esclarecedor, terminou na captura e no assassinato de seis pessoas, incluindo o jovem radialista Liu Haibo, que teve um bastão elétrico enfiado à força em seu reto e foi eletrocutado até a morte, conforme relatado por Ethan Gutmann num artigo no Weekly Standard.
A perseguição se torna aceita
Entrevistas com as pessoas na China e notícias da imprensa estrangeira na época indicam o impacto do bombardeio unilateral da mídia. Martin Regg Cohn escreveu no Toronto Star: “O fervor da campanha sugere que o Partido Comunista permanece paranoico sobre o desafio a sua autoridade… Apesar de sua encenação – um retrocesso às táticas estridentes da Revolução Cultural de 1966-1976 –, a nova cruzada do regime parece ter atingido um acorde no chinês comum.”
Isso teve um impacto poderoso. O Epoch Times entrevistou uma série de pessoas que estavam na China em 2001: um professor da Universidade Tsinghua, um capitão de barco da província de Liaoning, um trabalhador de mineração do Nordeste e uma educadora infantil da província de Anhui. Eles tinham mais ou menos a mesma história para contar. As pessoas mudaram de simpatizar-se com o Falun Gong antes da campanha de propaganda até desprezá-lo; de ficarem perplexas com a perseguição até aceitá-la ou mesmo auxiliá-la voluntariamente.
“Se você observar de fora, você pode ver todos os problemas na história”, diz Helen Nie, de 41 anos, agora em Illinois, EUA. “Mas nesse meio, você está preso, você é arrastado pelo enredo. É muito convincente: as pessoas envolvidas eram idosos, jovens, crianças, estudantes universitários, eu não pensava nos pontos suspeitos. Eu acreditei e fiquei extremamente indignada.” Naquela época, ela praticava o Falun Gong há vários anos, e diz que pode imaginar o sentimento das pessoas que não tinham esse histórico.
As mentiras que a imprensa estatal disparou contra o Falun Gong a partir de 20 de julho de 1999, quando começou a perseguição, eram “extremamente infantis”, diz a sra. Nie. Muitas pessoas do público repudiavam notícias que diziam, por exemplo, que praticantes do Falun Gong cortariam suas barrigas ou ficariam insanos subitamente, mas eles foram envolvidos numa narrativa mais complexa em 2001 e compelidos por imagens comoventes.
“Foi insidioso por aproveitar-se da simpatia das pessoas”, disse a sra. Nie. “À medida que as pessoas simpatizavam com as vítimas de queimaduras, o corolário é que elas começavam a odiar o Falun Gong.”
Liu Hongchang, um mineiro e praticante do Falun Gong, que estava em Pequim na época e agora vive na Holanda, foi preso em 9 de fevereiro, uma semana após a exibição do documentário. A propaganda também era transmitida nas prisões. Os presos e os guardas ficaram possuídos, disse ele: “Veja, você acha que praticar o Falun Gong é bom? Olhe para eles!” Um capitão de barco chinês que estava no Japão na época disse que a notícia se espalhou lá também.
Sun Yanjun acredita que há várias razões porque a propaganda foi acreditada: “As imagens foram terríveis e tiveram um grande impacto nas pessoas. Elas tinham o hábito de assistir às notícias da CCTV e não analisaram ou entenderam como o Partido Comunista controlava tudo o que viam.”
“Além disso, durante todo o ano anterior, a propaganda do Partido dizia que os praticantes do Falun Gong não eram normais e não valorizam a vida humana. Isto teve um impacto e preparou o caminho para a falsa imolação.”
Brutalidade crescente
Além da mudança no ânimo social, houve o aumento exponencial da brutalidade. O Washington Post relatou em agosto de 2001 que a imolação foi um “ponto de virada” na campanha do Partido Comunista e “liberou a mão do Partido” para usar violência extrema contra os adeptos firmes.
“As imolações tiveram um efeito enorme”, disse uma fonte a jornalistas do Washington Post. “Antes, a maioria dos chineses pensava que a repressão era estúpida, como um cão caçando um rato. Após essas pessoas se queimarem e o Partido transmitir o rosto da menina na TV por quase um mês consecutivo, a opinião das pessoas aqui mudou.”
James Ouyang foi vítima da violência na esteira da propaganda, informou o Washington Post. Capturado pela polícia, ele foi “metodicamente reduzido… a uma ‘coisa obediente’ ao longo de 10 dias de tortura”. Nesse tempo, ele foi posto contra uma parede e recebia choques elétricos de alta tensão sempre que se movia.
Mortes por tortura também dispararam após a imolação encenada e sua propaganda. De acordo com o Centro de Informação do Falun Dafa: em 1999, houve 67 mortes por tortura; em 2000, houve 245; mas, em 2001, esses casos pularam para 419. Os números, que representam àqueles que puderam ser confirmados por nome, data da morte e circunstâncias, seriam apenas uma ínfima fração do total, mas a média confirmável prosseguiu em torno de 400-500 por ano desde então.
Uma singularidade frequentemente ignorada nas reportagens de propaganda em torno do incidente é a divergência entre mensagens domésticas e internacionais: para jornalistas ocidentais, o evento foi vendido como uma ação de protesto de praticantes do Falun Gong desesperados. Mas para o público chinês, o evento foi formulado como uma questão doutrinária do Falun Gong, em que a imolação seria uma forma de “entrar no céu”.
Talvez procurando mais uma vez reviver a perseguição ao Falun Gong, a mídia oficial chinesa Xinhua publicou uma atualização das supostas vítimas da imolação em 21 de janeiro de 2011, antecipando o aniversário de 10 anos em 23 de janeiro. Isso foi republicado em mais de uma dúzia de jornais e também traduzido para o inglês. Nenhuma foto acompanhou o artigo desta vez, mas os propagandistas do Partido Comunista Chinês mudaram um fato significativo de sua versão anterior da história: em 2001, apenas uma pessoa “queimou até a morte no local” em 23 de janeiro; em 2011, de repente, havia duas.