Ao longo da história, retratos de mulheres também têm sido usados para fins políticos, sociais e comerciais. No Renascimento, o rosto, o corpo e o vestido das mulheres foram cuidadosamente projetados, ou até mesmo inventados, para atender às narrativas históricas ou costumes sociais. Em alguns casos, os retratos foram feitos para expressar uma aliança entre uma nação ou um povo, ou, em uma escala menor, a riqueza e a posição familiar.
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Vamos analisar neste artigo seis exemplos de retratos de mulheres, e notar como as imagens foram ajustadas de acordo com os diferentes contextos políticos e sociais. Algumas dessas mulheres tiveram o poder de formular a sua própria imagem pública. Porém outras se viram presas entre forças opostas, onde a identidade, a étnica e as rivalidades religiosas ditaram a forma como elas seriam retratadas ao mundo e à posteridade.
1. Xiang Fei, também conhecida como a ‘Perfumada Concubina’
O Imperador Qianlong da dinastia Qing, da China, tinha muitas concubinas, mas a favorita dele era Xiang Fei. O nome dela se traduz como “Perfumada Concubina”, porque dizia-se que ela tinha um cativante aroma natural.
Como Xiang Fei tornou-se uma consorte real permanece uma controvérsia. Alguns dizem que ela nasceu em Xinjiang, e que foi capturada e levada à força para a capital durante as expansões de terra feitas pelo imperador nos territórios ocidentais. Outros dizem que ela foi por vontade própria por verdadeiramente amar o imperador, e que ele também era cego de amores por ela. Com a intenção de amenizar a falta que Xiang Fei sentia de seu lar nativo, o imperador costumava presenteá-la com joias e tudo o que tinha de melhor.
O mistério em torno de sua verdadeira relação com o imperador, assim como a causa de sua morte (suicídio ou homicídio) e seu sepultamento (não em sua terra natal) ganhou uma nova importância com a atual perseguição aos uigures pelo regime comunista de Pequim. A narrativa de sua vida tem sido, e continua a ser, tão impregnada de contradições, que diferentes grupos contam histórias completamente diferentes, dependendo de sua inclinação política.
Existem várias versões do retrato de Xiang Fei, e pensa-se que sejam fruto do trabalho de um pintor jesuíta da corte Qing, Giuseppe Castiglione, ou pelo menos de um de seus seguidores. Na maioria dos retratos em que está sentada, ela carrega uma corda delicada de oração muçulmana, usa vestido do palácio Manchurian, e seus traços estão provavelmente modificados para se ajustarem aos tradicionais padrões chineses de beleza.
2. Pocahontas
Esqueça a versão da Disney por um momento. Supondo que as características da gravura de 1616 da Pacahontas feita por Simon van de Passe estejam cem por cento precisas, as características faciais dela, as roupas e a postura não poderiam ser mais europeias.
Depois de ter sido capturada pelos colonos anglo-americanos durante os conflitos entre as tribos e os colonizadores, Pocahontas se converteu ao cristianismo e se casou com o plantador de tabaco John Rolfe.
A gravura foi provavelmente encomendada pela Companhia de Virgínia, que esperava atrair mais colonos brancos para sua colônia. Mais tarde, as representações foram tomando mais liberdade, e deixaram-na praticamente sem distinção de um aristocrata branco qualquer.
Como mulher e mito foram confundidos nos séculos seguintes, artistas e escritores passaram a representar Pocahontas se jogando para seu suposto amante, John Smith, que seu pai, o chefe Powhatan, tinha ordenado que fosse executado.
Vale a pena dar uma olhada na exploração feita pela PBS sobre as diferentes maneiras com que artistas americanos e europeus interpretaram Pocahontas.
3. Hatshepsut
Ao contrário da maioria das mulheres desta lista, a governante egípcia Hatshepsut tinha um monte de ordens para serem ditadas sobre como sua imagem deveria ser mostrada. Na verdade, como, indiscutivelmente, a mulher mais poderosa de toda a história do Antigo Egito, ela sabia que a auto-representação era uma parte extremamente significante para a preservação de seu legado.
Como faraó entre 1479-1458 a.C., as conquistas de Hatshepsut incluíram a criação de rotas de comércio e construção de projetos ambiciosos que ergueram a arquitetura egípcia a novas alturas. Algumas de suas conquistas são referências até hoje.
A maneira como Hatshepsut gostava de ser retratada mudava de acordo com a circunstância. Depois de pegar o poder de seu enteado, para o qual ela estava atuando como orientadora, Hatshepsut sabia que ela tinha que legitimar seu reinado através de uma campanha de relações públicas. Essa força fez com que ela fosse representada em estátuas como homem, dispondo de uma falsa barba real. Em outras estátuas, ela apareceu com seios e em vestidos de mulher.
Elementos masculinos e femininos, por vezes, estão misturados. O site do Museu Met descreve uma estátua dela sentada assim:
“Esta estátua em tamanho real mostra Hatshepsut com traje cerimonial de um faraó egípcio, tradicionalmente em um papel de um homem. Apesar do vestido masculino, a estátua tem um ar distintamente feminino, ao contrário da maioria das outras representações de Hatshepsut como governante”.
4. Charlotte Corday
Charlotte Corday é lembrada por seu papel significante na Revolução Francesa. Corday era uma simpatizante da facção Gironde, que defendia o fim da monarquia, mas que se opunha à violência da Comuna de Paris. O maior inimigo dos Girondinos era o jornalista radical Jean-Paul Marat. Corday ficou famosa por ter esfaqueado-o até a morte, enquanto ele tomava banho de banheira (uma necessidade frequente por causa de uma doença de pele).
Ela foi executada na guilhotina devido ao seu ato. Hoje, Corday é conhecida como o “Anjo do homicídio”.
A pintura “Charlotte Corday” de Paul Baudry de 1860, mostra-a contra a parede do banheiro de Marat, com a mão ainda em forma de punho por segurar vigorosamente a arma que há pouco havia penetrado no peito de Marat. A expressão dela mostra tanto determinação como consternação.
Antes da pintura de Baudry, o retrato mais famoso era “A Morte de Marat”, por Jacques-Louis David em 1793. Esta representação deixou completamente a desejar pela figura da heroína, pois mostrou apenas o envelhecido e lamentável cadáver do jornalista, escrevendo à mão, enquanto jaz morto na banheira.
Ao contrário de David, Baudry mostrou a ação de Corday, e compaixão por ter agido de acordo com a consciência dela.
5. Anna Short Harrington
O nome Anna Short Harrington é muito menos conhecido do que o nome Tia Jemima. Mas Anna foi a modelo que inspirou a figura da mulher negra sorrindo cujo rosto está nos potes de syrup, biscoitos, e mistura para panquecas.
Harrington trabalhou para a Quaker Oats, onde serviu como modelo para o rosto da Tia Jemima, começando em 1935.
Em 1989, sua imagem foi modernizada. Mudou o lenço, as roupas de escrava, o sorriso exagerado, mas não conseguiu escapar das suas origens que expressam o estereótipo de uma dócil negra doméstica.
Segundo a revista Fortune, a Quaker Oats está sendo pressionada para reformular sua marca de produtos sem a imagem da Tia Jemima. A empresa disse à Fortune que a Tia Jemima “invoca um sentido de cuidado, carinho e conforto – qualidades reverenciadas por famílias no mundo todo. Nós vamos manter este patrimônio, bem como as maneiras pelas quais fazemos negócios.”
Os bisnetos de Harrington estão processando a PepsiCo Inc. e sua subsidiária Quaker Oats Co. por danos morais, e pede quota de royalties, totalizando em US $ 2 bilhões.
Veja a evolução da imagem Tia Jemima aqui.
6. Wallis Simpson
Nos anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial, a socialite americana duas vezes divorciada, Wallis Simpson, conquistou o coração de Edward VIII, rei da Inglaterra. Forçado a escolher entre o trono e a mulher que amava, Edward fugiu contra a vontade da família real e se casou com Wallis, fazendo dela a duquesa de Windsor. O casal viveu sua vida com estilo e conforto, viajando e fazendo festas chiques. A duquesa, com sua aparência andrógina, pouco convencional, se tornaria um ícone da moda.
O único retrato pintado conhecido de Simpson é um retrato de 1939, feito pelo artista britânico Gerald Brockhurst Leslie. Ela está sentada de frente para o espectador com uma expressão franca e com olhos claros. Seus traços foram pintados com um ar mais femininos do que expressavam nas fotos. Nas fotos, a duquesa parecia sempre glamourosa e confiante, e principalmente feliz.
Talvez o retrato de Brockhurst tenha sido feito para comunicar a dignidade e contentamento que ela encontrou em seu casamento com Edward. O botão superior de seu vestido modesto está aberto, porém, talvez como um reconhecimento ao escândalo de seu passado.
Wallis Simpson foi recentemente retratada pela premiada atriz Eve Best no filme “O Discurso do Rei”.