Possivelmente, a maior questão para os historiadores e cientistas sociais, como os economistas, é a questão do que é a modernidade, e como e por que ela surgiu da maneira como surgiu. Nos últimos anos temos visto uma nova abordagem desta questão, com o repentino ressurgimento da história mundial como um tema sério de pesquisa, e toda uma série de obras de economistas lidando com a mesma questão: como e por que o mundo em que vivemos é tão radicalmente diferente daquele em que viviam nossos antepassados, e como e por que essa interrupção, essa mudança radical na experiência histórica ocorreu. As repostas a essas perguntas, que são populares entre os liberais clássicos, estão cada vez mais debilitadas, assim como as teses correspondentes de muitas pessoas da esquerda. No entanto, um novo consenso está começando a surgir, com implicações interessantes. No presente, porém, algumas peças cruciais estão faltando no quebra-cabeça da narrativa histórica.
O ponto de partida é bastante simples. Pesquisas feitas por historiadores e outros estudiosos têm tornado cada vez mais claro que o mundo no qual vivemos (definido como mundo moderno ou modernidade) é diferente daquele dos nossos antecessores, de uma forma profunda e radical. Em outras palavras, existe uma dramática descontinuidade entre a experiência dos seres humanos de hoje e do passado recente e a vivida por nossos antepassados. De fato, as únicas descontinuidades comparáveis na história da humanidade são as relacionadas com o advento da agricultura e das cidades, e às invenções ainda mais antigas das ferramentas complexas, da linguagem, e do domínio do fogo.
Existe um consenso crescente sobre quais são as características distintivas que definem o mundo moderno. A mais estudada, e para muitos a central, é o fenômeno do crescimento intensivo sustentado e grande aceleração do ritmo de crescimento econômico. Isto está associado com uma libertação das restrições malthusianas que limitaram a vida humana a partir do advento da agricultura e que impuseram à civilização humana um padrão regular e cíclico de crescimento e declínio e periódicas crises malthusianas por toda a história. (Malthus foi tanto o pior profeta quanto um dos maiores sociólogos históricos que já existiram.) Outra característica distintiva da modernidade é um crescimento sem precedentes da população humana, muito além de qualquer nível observado antes, e combinado, graças ao crescimento econômico, com a constante melhoria do padrão de vida e a transformação das condições materiais de existência.
No entanto, o mundo moderno tem outras características sem precedentes. Uma delas é a urbanização maciça — antes de 1851 nunca houvera uma sociedade onde mais de 20% da população vivesse nas cidades, muito menos a maioria — associada com um movimento da força de trabalho para fora da agricultura. Outra são o crescimento do conhecimento e a inovação, ambos rápidos e sustentados. Também podemos apontar para uma diminuição do papel social e político da família, uma mudança no comportamento social e no senso de individualidade, marcada mudança no status social e político das mulheres, o advento de um novo senso de individualidade e consciência pessoal, e uma transformação da natureza de governo e das classes dominantes.
Costumava haver debates sobre quando datar o advento desse conjunto de fenômenos, isto é, da modernidade. As datas oferecidas variavam entre o século XIV e o século XIX. Recentemente, entretanto, o trabalho empírico de historiadores da economia (mas também de historiadores da cultura e da administração) tem conduzido a uma crescente concordância de que o começo da descontinuidade pode ser definitivamente localizado no final do século XVIII, com os anos 1770 e 1830 sendo os mais críticos. Foi por volta de 1800 que as taxas de crescimento econômico em partes da Europa melhoraram subitamente e permaneceram num alto nível, e o mesmo período também viu o começo das outras mudanças mencionadas anteriormente. A mudança abrupta é uma das suas características mais importantes; isso não foi um caso de transformação gradual, mas uma metamorfose relativamente súbita em não mais que duas gerações. Após 1850 surge a modernidade plena, com maior aceleração do crescimento econômico, aumento da população e intensificação de outras formas de mudanças.
Entretanto, há ainda um intenso debate sobre o motivo de isso ter ocorrido e, em particular, o motivo de ter claramente começado no Noroeste da Europa em vez de em alguma outra parte do planeta, como a China. O debate tem tido uma natureza ideológica clara e tem sido impulsionado, até certo ponto, por diferenças fundamentais de filosofia e ideologia. Por muito tempo, o que podemos chamar de abordagem liberal clássica dessas questões vem defendendo um tipo particular de explicação ou conjunto de explicações e uma visão específica da história da Europa com relação a outras partes do mundo. O elemento central é o argumento de que a sociedade europeia tinha certas qualidades ou instituições que a colocaram à parte de outras civilizações do velho mundo, em particular instituições que promoviam a liberdade individual e o empreendimento comercial e intelectual. Essas instituições, argumenta-se, deram uma característica de dinamismo e inovação que faltava às outras civilizações e, por isso, foram responsáveis pela erupção da modernidade ter ocorrido primeiro numa parte da Europa em vez de no delta do rio Yangtzé, por exemplo.
Para colocar de outra forma, há uma série de explicações dadas para as características distintivas da modernidade, cada uma identificando um fator como crítico e, então, afirmando que esse fator ou apareceu primeiramente na Europa ou estava presente lá num grau maior do que em outros lugares. Uma lista não exaustiva desses modelos e dos estudiosos associados a elas incluiria o aumento da acumulação de capital (Robert Solow); o pluralismo legal e uma distintiva noção de direito (Harold Berman); as instituições econômicas, especialmente a de direitos de propriedade (Douglass North, Nathan Rozenberg); a geografia (Eric Jones, Jared Diamond); os combustíveis fósseis acessíveis (Kenneth Pomeranz); uma maneira diferente de pensar sobre o conhecimento e a inovação técnica (Lynn White, Joel Mokyr); uma maior abertura intelectual (Jack Goldstone); um tipo específico de consciência, associado com certas religiões (Max Weber, Werner Sombart); um poder político dividido e reprimido (Eric Jones e vários outros); um sistema familiar distinto (Deepak Lal e vários demógrafos); o crescimento populacional acima de um nível crítico (Julian Simon); um status social maior e uma valorização cultural do comércio e do empreendimento (Deirdre McCloskey); o comércio e os benefícios da especialização (Adam Smith e vários outros); o papel dos empreendedores (Joseph Schumpeter, William Baumol); alguma combinação de todos esses (David Landes).
Todos esses estudiosos olharam favoravelmente para o mundo moderno e sua variante capitalista em particular. Além disso, também houve pensadores que viam isso em cores negras e olharam o advento da modernidade na Europa como devido a uma exceção condenável, como a exploração colonial, particularmente das Américas (James Blaut); a posição da Europa num sistema mundial marcado por relações econômicas exploratórias (Immanuel Wallerstein, Samir Amin e, anteriormente, Andre Gunder Frank); uma forma dinâmica de conflito de classes e de desenvolvimento econômico não encontrada em outros lugares (Marx). Entretanto, esses autores ainda veem a Europa como excepcional de alguma forma.
O problema é muito simples: nenhuma dessas teorias funciona, pelo menos não por si próprias. Um dos problemas é que muitas foram apresentadas pelos próprios economistas. Um dos problemas é que muitas foram apresentadas por economistas cuja metodologia os conduz sempre a olhar para uma única variável independente que explica todo o resto. A abordagem do historiador, pelo contrário, é fazer-se ciente de como muitos fatores são simultaneamente causa e efeito, por causa dos múltiplos ciclos de resposta. Das teorias mencionadas, algumas são simplesmente falsas; os fatos as contradizem. Esse é o caso da “teoria dos sistemas mundiais”, por exemplo. (Qualquer um tentado a levar isso a sério deveria ler a devastadora crítica de Theda Skocpol a Wallerstein no American Journal of Sociology de 1977.) Outros identificam coisas que são importantes, mas transformam as consequências em causas (por exemplo, Solow).
Muitos estão no caminho certo, no sentido de identificar fatores que são importantes, mas estão errados em vê-las como distintamente europeias. (Por exemplo, não é o caso de que sociedades europeias fossem mais voltadas para os mercados, mais inovadoras, ou tivessem desenvolvido melhor as instituições econômicas; aliás, se eram excepcionais, era pelo contrário.) Assim, esses fatores não podem explicar o motivo de a modernidade ter começado primeiro na Europa, em vez de em qualquer outro lugar, ou têm que recorrer a uma série de explicações ad hoc. Outras teorias são ainda mais fortes, mas têm um problema de cronologia. Isto é, embora identifiquem fatores que claramente exercem um grande papel no advento da modernidade, todos os fatores em questão entram em jogo mais de cem anos antes que a decolagem ocorra. Então, por que eles levaram tanto tempo para causar impacto?
Há três explicações que caem nessa categoria final. A primeira, associada a Mokyr e Goldstone, vê o fator crítico como sendo uma mudança no entendimento do que era o conhecimento, junto com suas ligações à prática da ciência empírica — isso acontece durante o século XVII. A segunda é o argumento elaborado por McCloskey para o papel da mudança na maneira como a inovação comercial era moralmente vista e avaliada. Isso aconteceu primeiro na Era de Ouro da República Holandesa, novamente no século XVII, e aproximadamente cem anos mais tarde em Tokugawa, no Japão (com o fenômeno do chonindo). A terceira, feita por vários estudiosos, tem a ver com a forma como a Europa moderna em suas raízes via a emergência de um tipo diferente de sistema de Estado, nunca visto em qualquer outro lugar, reconhecido em Vestfália, 1648.
O primeiro elemento que falta nessas considerações é o papel ativo das classes dominantes na história. Na teoria social liberal clássica, a distinção é feita entre grupos sociais que auferem renda da produção e da troca (as “classes industriosas”) e aqueles que a obtêm pelo uso da força (as classes dominantes, compostas na maioria das sociedades agrícolas tradicionais de aristocratas guerreiros e padres). Obviamente, essa divisão não é feita de forma clara, mas podemos mesmo assim fazer uma distinção geral. As classes dominantes não são puramente exploratórias, pois também fornecem “bens públicos”, especialmente proteção.
Historicamente, as classes dominantes têm uma atitude profundamente ambivalente quanto ao crescimento econômico e às mudanças sociais. Elas acolhem o aumento na riqueza, do qual podem se beneficiar, mas também temem a ruptura social que o comércio, a livre iniciativa e as inovações de todos os tipos trazem em sua esteira. Além disso, na maioria das vezes e dos lugares, as relações de troca estão entrelaçadas num pacote de regulamentos e práticas que as constrangem e limitam (elas são “incorporadas”, na expressão de Karl Polanyi). Algumas delas são impostas por leis articuladas explícitas e por um sistema legal (e, consequentemente, pelas classes dominantes), outras são informais e impostas pelos tipos de instituições sociais costumeiras analisadas na obra de James Scott. Em geral, os governantes serão dirigidos pelo seu próprio interesse em defendê-los e mantê-los e buscarão minimizar as mudanças significativas, se necessário pela força. Isso significa que episódios de dinamismo intelectual e econômico, como a China sob os Song (“eflorescências”, conforme Jack Goldstone os chama), são tipicamente efêmeros.
A crise mundial do século XIV conduziu a uma intensificação da competição entre classes dominantes em todo o velho mundo, que por sua vez conduziu a uma transformação das guerras (a “revolução militar”). Na maioria dos lugares, a dinâmica que isso criou conduziu ao aparecimento de grandes impérios hegemônicos como o russo, o otomano, o mogol e o chinês. Na Europa, entretanto, isso teve um resultado diferente. O evento crítico foi a tentativa fracassada dos Habsburgos de esmagar seus súditos rebeldes na Holanda, os anos cruciais tendo sido a década entre 1580 e 1590. Isso impediu a emergência de um poder hegemônico na Europa (que parecia provável quando uma série de acidentes dinásticos deixou o jovem Carlos V como o mais poderoso governante europeu desde Carlos Magno). A outra provável hegemonia, Valois/Bourbon, na França, foi também contida e o resultado foi o surgimento do sistema de Vestfália em 1648.
Isso mudou os incentivos com que se defrontavam as elites dominantes na Europa, em comparação com as de outros lugares. Por causa da competição que elas enfrentavam e da natureza do sistema competitivo em que se inseriam (diferente da competição enfrentada pelos impérios de outras regiões como, por exemplo, no caso do Império Turco-Otomano e do Irã dos safávidas), elas eram levadas a favorecer e a encorajar a inovação em vez de sistematicamente desencorajá-la. Inicialmente, isso não teve resultados dramáticos, exceto na área da organização militar, na qual, por volta de 1730, a Europa (e a Rússia) tinham superado cada uma das outras grandes civilizações, com exceção da China. O que se mostrou crítico foi quando esses incentivos alterados, junto com as mudanças intelectuais e culturais identificadas por Goldstone, McCloskey e Mokyr, tiveram que operar num conjunto específico de circunstâncias, os de mais uma crise sistêmica.
O outro elemento que falta na história é o que ocorre no fim do século XVIII. Contrariamente à sua popular imagem, os anos após 1770 foram de crise. Havia nessa época, de fato, uma “crise geral” global, da mesma forma como havia ocorrido em meados do século XVII. As características da crise eram as mesmas da ocasião anterior: uma crise malthusiana cada vez mais intensa marcada pela fome, pela escassez e pelo desejo pela terra; grandes guerras que contribuíram para outro elemento, a crise do estado financeiro; grandes revoltas populares e uma difusão da turbulência política e das agitações. Estamos todos familiarizados com eventos como as Revoluções Americana e Francesa (frequentemente colocadas, com outras insurreições, como as dos Países Baixos austríacos e as grandes revoltas de escravos e rebeliões na América Latina, numa categoria mais abrangente, chamada “Revolução Atlântica)”. Havia, também, entretanto, grandes perturbações políticas na Índia, com o colapso do Império Mogol; na China, com a rebelião do Lótus Branco e uma série de levantes em Yunnan e Sichuan; na Rússia, com a maior revolta camponesa já vista; e no Império Otomano, com uma série de rebeliões movidas pelos janízaros e crises internas.
Confrontadas com isso, a resposta de várias elites (por exemplo, na China) foi a mesma que tinha sido na crise do século XVII, buscar defender a ordem estabelecida. Na Europa, entretanto, a resposta ia cada vez mais na direção de encorajar e habilitar a mudança e a inovação em vez de tentar resistir a elas. Nesse contexto particular, os três elementos mencionados anteriormente e, particularmente, as políticas ativas dos governantes, se reuniram para produzir o avanço repentino mencionado acima. É nesse ponto que podemos ver o real começo do que tem se tornado uma característica central do mundo moderno, a maneira pela qual os governos e as classes dominantes buscam sistematicamente encorajar e estimular o crescimento econômico, removendo, entre outras coisas, todos os tipos de barreiras ao comércio e às trocas, pelo menos dentro dos territórios que eles controlam diretamente. Isso é melhorado enormemente pela mudança cultural e ideológica que McCloskey identifica e pelo movimento em favor da ciência experimental e da inovação tecnológica enfatizadas por Mokyr e Goldstone.
Essa explicação tem várias consequências em nosso entendimento do debate contemporâneo. O argumento amplamente associado com muitos estudiosos liberais clássicos para a exceção da Europa foi completamente destruído, assim como os argumentos marxistas e a teoria do sistema mundial. O que está emergindo, porém, é uma imagem amplamente compatível com o pensamento liberal clássico e que incorpora muitas de suas ideias – apenas não caracteriza mais a Europa como excepcional. Outra consequência é que nós precisamos repensar radicalmente nossa periodização histórica. A divisão tradicional em Antiga, Medieval e Moderna (ela própria uma criação do século XIX), com um período moderno inicial começando por volta de 1490 e durando até o final do século XVIII, não faz mais sentido, conforme alguns, como Jerry Bentley, já argumentaram. Em vez disso, podemos ver um período entre o século III e o século IX (geralmente chamado de Antiguidade Tardia) seguido por outro que vai daí até por volta de 1780, com uma pausa no final do século XV. Nessa maneira de pensar, o que nós agora chamamos “Idade Moderna Inicial” deveria ser renomeado para “Ocidental Tardia”, pelo menos no que tange a Europa.
Isso leva ao ponto final. Devemos considerar se faz qualquer sentido nos vermos como ainda vivendo na civilização ocidental, dada a descontinuidade radical entre o mundo após aproximadamente 1800 e o anterior a essa data. Faz mais sentido pensar que a civilização ocidental morreu e foi transformada numa civilização nova e diferente, da mesma forma que as civilizações da antiguidade clássica foram transformadas e substituídas pelas civilizações ocidental, bizantina e islâmica. O que é claramente o caso é que a repentina revolução na vida humana que começou na Europa Ocidental por volta de 1800, produzida pela operação das circunstâncias e da crise estrutural nos resultados locais e distintivos de um anterior episódio de crise, continua num ritmo acelerado e se espalhou para o resto do mundo. As civilizações ou já morreram ou estão morrendo e nós, agora, enfrentamos algo fundamentalmente novo e sem precedentes.
Esta matéria foi originalmente publicada pelo Instituto Ordem Livre