Como a mídia do Partido Comunista funciona na China, segundo ex-repórter do Diário do Povo

29/03/2014 09:40 Atualizado: 29/03/2014 09:40

Uma exposição franca sobre o Diário do Povo, um jornal oficial propagandístico do Partido Comunista Chinês (PCC), feita por um ex-funcionário, afirma que a missão do jornal é promover e salvaguardar os interesses e a imagem do Partido e que eles frequentemente manipulam as notícias.

O artigo foi publicado na edição de março da revista Cheng Ming, escrito por Cheng Kai, que se identificou como um ex-repórter do Diário do Povo.

Abaixo segue uma tradução ligeiramente editada do artigo original chinês:

Embora o Diário do Povo seja categorizado como um jornal, ele não contém notícias. Ele é conhecido como uma ferramenta de propaganda do PCC. Ele manipula as notícias e não reporta os verdadeiros eventos.

O PCC frequentemente emite documentos com títulos vermelhos, ou documentos de “cabeçalho vermelho”, para líderes de todos os níveis inferiores do Partido e do governo, instruindo-os sobre o que fazer e o que não. O Diário do Povo é uma versão ampliada do “cabeçalho vermelho” porque atinge os níveis mais baixos do Partido.

Eu fazia parte da equipe de reportagem do Diário do Povo do PCC, e lá me orientaram que a missão do jornal do Partido é a de promover os princípios e políticas do Partido e salvaguardar os interesses e a imagem do Partido. Nunca fui orientado para reportar notícias ou divulgar informações.

Enganar o público

O Diário do Povo tem uma função que o “cabeçalho vermelho” não tem, e esta é enganar o público. O ex-presidente do Diário do Povo, Hu Jiwei, descreveu o Diário do Povo desta forma: “A única verdade nele é a data de publicação do jornal, o resto é falso.”

O sagaz povo chinês que lê o Diário do Povo tem de inverter a notícia: Se o jornal diz que é excelente, deve ser terrível, se ele diz que o futuro é brilhante, então é sombrio.

Todos os dias, ou a cada poucos dias, editores e repórteres de jornais do Partido Comunista são atualizados sobre o que os líderes querem. Em seguida, eles procuram tópicos para reportar, a fim de transmitir as mensagens dos líderes.

Editores são também convidados a estar em sintonia com a vontade dos altos dirigentes do Partido. O chamado consenso é consistente com os principais líderes do Partido. O Diário do Povo em especial é obrigado a ter maior consistência.

Eu li recentemente o Diário do Povo e vi muitas atividades de Xi Jinping na primeira página, o que não é absolutamente interessante. Para o Diário do Povo, nada no mundo é mais importante do que o líder do PCC apertando a mão de algum líder estrangeiro.

Máquina de propaganda

O regime comunista chinês usa a propaganda para governar a China e o Diário do Povo é sua máquina de propaganda mais marcante. Entre os diversos meios de comunicação na China, apenas o presidente do Diário do Povo tem o direito de participar da reunião do Comitê Permanente do Politburo do PCC.

Qualquer comentário publicado no Diário do Povo representa os pensamentos das autoridades centrais do Partido. Todos os editoriais e comentários devem ser pré-aprovados pelos membros do Comitê Permanente ou mesmo pelo secretário-geral do Partido para que possam ser publicados oficialmente.

O Diário do Povo opera com fundos diretamente apropriados pelas autoridades centrais do PCC. Tendo uma circulação diária de 2,5 a 3 milhões de cópias, é impossível alcançar isso sem a regulação do Partido e decretos administrativos.

Unidades do governo também reconhecem a importância de subscrever ao Diário do Povo – lê-lo é a única maneira de saber os pensamentos e a vontade das autoridades centrais do Partido e evitar cometer erros no trabalho.

Documentos de referência interna

Metade dos jornalistas no Diário do Povo compartilha uma missão comum: escrever os chamados documentos de “referência interna” em nome dos executivos centrais do Partido. Isto dá aos repórteres do Diário do Povo o privilégio de oferecer informações diretamente aos executivos centrais do Partido.

O Diário do Povo publica sua ‘Referência Interna’ duas vezes por dia, e isso vai diretamente para as mesas dos membros do Politburo. Informações classificadas como “ultrassecretas” são despachadas diretamente para os membros do Comitê Permanente do Politburo.

A ‘Referência Interna’ tem o poder de afetar a carreira de um funcionário ou a administração de uma região. Portanto, todos os níveis de funcionários do governo tratam repórteres do Diário do Povo com respeito. Quando eu trabalhava para o Diário do Povo como correspondente da Zona Econômica Especial de Shenzhen, eu escrevi uma referência interna e mencionei que a posição geográfica do aeroporto de Shenzhen tinha sido inadequadamente selecionada. Essa Referência eventualmente resultou no deslocamento do aeroporto, de Baishizhou, um santuário de pássaros no bairro de Universidade de Shenzhen, para Huangtian, onde o aeroporto está localizado atualmente.

Hoje em dia, a maioria dos repórteres do Diário do Povo aceitam subornos de funcionários do governo e empresários. Os repórteres são recompensados com centenas de milhares de yuanes sempre que publicam uma reportagem elogiando funcionários e empresas. Os ganhos são ainda maiores se uma referência interna for escrita em seu nome.

Promoções

Editores de jornais de propriedade do PCC são alistados como quadros do Partido.

Presidentes e editores-chefes do Diário do Povo são frequentemente escolhidos entre secretários provinciais do Partido, ministros do governo central ou altos generais militares. Pessoas com formação em jornalismo raramente são promovidas para cargos executivos, a menos que não se importem de deixar que o PCC destrua suas consciências. Esse foi o caso de Deng Tuo, que cometeu suicídio por não ver outra saída de sua situação.

O editor-chefe interino do Diário do Povo costumava ser meu colega no departamento de reportagem. Naquela época, ele era o correspondente da província de Hebei, e dava a impressão de ser prestativo e bem-educado. Agora que ele é o editor-chefe, no entanto, ele diz que preto é branco e se tornou um promotor de valores antiuniversais e antidemocracia para o PCC.