Como o Kremlin mata

25/11/2013 11:34 Atualizado: 25/11/2013 12:45

“Dez”, Ceausescu me disse. “Dez líderes internacionais que o Kremlin matou ou tentou matar”, ele explicou, enumerando-os nos dedos. Laszlo Rajk e Imre Nagy, na Hungria; Lucretiu Patrascanu e Gheorghiu-Dej, na Romênia; Rudolf Slansky, líder da Checoslováquia, e Jan Masaryk, diplomata chefe do país; o xá do Irã; Palmiro Togliatti da Itália; o presidente americano John F. Kennedy e Mao Tsé-tung.

Não tenho dúvidas de que o oficial aposentado da KGB/FSB, Alexander Litvinenko, foi assassinado por ordem de Putin. Foi morto, acredito, por ter revelado os crimes de Putin e o treinamento secreto, pela FSB, de Ayman al-Zahawiri, o número dois da Al-Qaeda. É fato que o Kremlin tem usado repetidamente armas radioativas para matar os seus inimigos políticos no exterior. No fim da década de 1970, Leonid Brezhnev deu a Ceausescu, via KGB e sua irmã romena, a Securitate, tálio radioativo solúvel em pó, para ser colocado na comida; o veneno servia para matar inimigos políticos no exterior. De acordo com a KGB, o tálio radioativo se desintegraria dentro do corpo da vítima, gerando uma forma de câncer fatal e galopante, e não deixando nenhum traço detectável na autópsia. A substância foi descrita para Ceausescu como uma nova geração da arma de tálio radioativo usada, sem sucesso, contra o desertor da KGB Nikolay Khokhlov na Alemanha Ocidental em 1957. (Khokhlov perdeu todos os cabelos, mas não morreu.) O codinome romeno era “Radu” (de radioativo) e eu a descrevi no meu primeiro livro, Red Horizons, publicado em 1987. O Polônio 210 usado para matar Litvinenko parecer ser uma nova versão de “Radu”.

O assassinato como política externa

Os esforços sistemáticos do Kremlin para assassinar inimigos políticos no exterior (não só com veneno, é claro) começou poucos meses depois do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, realizado em fevereiro de 1956, no qual Khrushchev expôs os crimes de Stalin. Em abril daquele ano, o general Ivan Anisimovich Fadeyev, chefe do novo 13° Departamento da KGB, responsável por assassinatos no exterior, chegou a Bucareste para uma “troca de experiências” com o DIE, o serviço de inteligência estrangeira romeno, ao qual eu pertencia. Antes disso, Fadeyev havia chefiado o enorme posto de inteligência da KGB em Karlhorst, Berlim Oriental, e era conhecido em toda a nossa comunidade de inteligência como um sanguinário, responsável pelo sequestro de centenas de ocidentais e cujas tropas haviam suprimido brutalmente as demonstrações antissoviéticas de 13 de junho de 1953 em Berlim Oriental.

Fadeyev começou a sua “troca de experiências” em Bucarest nos dizendo que Stalin havia cometido um erro indesculpável: havia apontado a lâmina do aparato de segurança do Estado contra o “seu próprio povo”. Quando Khrushchev fez o seu “discurso secreto”, a sua única intenção era corrigir aquela aberração. “Os nossos inimigos” não estão na União Soviética, Fadeyev explicou. As burguesias da América e da Europa Ocidental queriam liquidar o comunismo. Elas eram os “nossos inimigos mortais”. Eram os “cachorros loucos” do imperialismo. Devíamos apontar a lâmina da nossa espada contra elas, e apenas contra elas. Era isto o que Nikita Sergeyevich realmente queria dizer com o seu “discurso secreto”.

De fato, Fadeyev disse, uma das primeiríssimas decisões de política externa de Khrushchev foi a sua ordem de 1953 para assassinar secretamente um destes “cachorros loucos”: Georgy Okolovich, o líder da National Labor Alliance (Natsionalnyy Trudovoy Soyuz, ou NTS), uma das organizações de russos exilados mais agressivamente anticomunista da Europa Ocidental. Infelizmente, Fadeyev nos disse, o líder da equipe de assassinos, Nikolay Khokhlov, chegando ao destino, havia desertado para a CIA e denunciado publicamente a mais recente arma secreta criada pela KGB: um revólver operado eletricamente escondido dentro de um maço de cigarros que disparava balas com ponta carregadas de cianeto. E, como um problema nunca vem sozinho, Fadeyev acrescentou, dois outros oficiais da KGB familiarizados com a estratégia de assassinatos haviam desertado logo após Khokhlov: Yury Rastvorov em janeiro de 1954 e Petr Deryabin em fevereiro de 1954.

Tudo isso, Fadeyev disse, havia levado a mudanças drásticas. Em primeiro lugar, Khrushchev havia ordenado à sua máquina de propaganda para espalhar por todo o mundo o boato de que ele tinha abolido a estratégia de assassinatos da KGB. Em seguida, ele denominou os assassinatos no exterior com o eufemismo “neutralizações”, renomeando a 9ª Seção da KGB – como a divisão de assassinatos era chamado na época – como 13° Departamento, sepultando-a sob um segredo ainda mais profundo do que antes, e a colocando sob a sua supervisão direta. (Mais tarde, após o 13° Departamento ter sido comprometido, o nome foi alterado de novo.)

Em seguida, Khrushchev introduziu uma nova “metodologia” para a execução de operações de neutralização. A despeito da inclinação da KGB pela papelada burocrática, estes casos deviam ser tratados rigorosamente sem anotações e mantidos em segredo para sempre. Também deviam ser mantidos completamente em segredo do Politburo e de todos os demais órgãos governamentais. “O Camarada, e somente o Camarada”, Fadeyev enfatizou, podia agora aprovar neutralizações no exterior. (Nos altos círculos do bloco soviético, o termo “o Camarada” designava coloquialmente o líder de cada país.) Independentemente de quaisquer evidências produzidas pelas investigações policiais estrangeiras, a KGB – bem como as suas irmãs dos serviços secretos – jamais, sob quaisquer circunstâncias, podia admitir o envolvimento em assassinatos no exterior; todas as evidências produzidas deviam ser completamente rejeitadas como acusações ridículas. E, finalmente, após cada operação, a KGB devia secretamente espalhar “provas” no exterior acusando a CIA ou qualquer outro “inimigo” conveniente de ter cometido o ato, e assim matando, se possível, dois coelhos com uma cajadada só. Em seguida, Khrushchev mandou a KGB desenvolver uma nova geração de armas para matar sem deixar traços no corpo da vítima.

Antes de Fadeyev deixar Bucareste, o DIE havia instituído a sua própria divisão de operações de neutralização, denominada de Grupo Z, pois a letra Z era a última letra do alfabeto, significando a “solução final”. Esta nova unidade agiu, então, para conduzir a sua primeira operação de neutralização no bloco soviético sob as novas regras de Khrushchev. Em setembro de 1958, o Grupo Z, ajudado por uma equipe especial da alemã oriental Stasi, sequestrou da Alemanha Ocidental o líder anticomunista romeno Oliviu Beldeanu. Os governos da Alemanha Oriental e da Romênia jogaram a responsabilidade pelo crime nas costas da CIA, publicando comunicados oficiais alegando que Beldeanu havia sido preso na Alemanha Oriental após ter sido secretamente infiltrado naquele país pela CIA para realizar operações de sabotagem e manobras diversionistas.

A exportação de uma tradição

Vladimir Putin parece ser apenas o mais recente de uma longa linha de czares russos mantenedor da tradição de assassinar qualquer um que atravesse o seu caminho. A prática remonta, pelo menos, ao século XIV de Ivan, o Terrível, assassino de milhares de aristocratas e de outras pessoas, incluindo o Metropolitano Philip e o príncipe Alexander Gorbatyl-Shuisky, mortos por terem se recusado a prestar o juramento de obediência ao filho mais velho do czar, criança na época. Pedro, o Grande, lançou a sua polícia política contra todos os que falassem contra ele, desde a sua própria esposa a bêbados que contavam piadas sobre o seu governo; ele até mesmo fez a polícia política enganar e levar de volta à Rússia o próprio filho e herdeiro, o tsarevich Aleksey, a quem torturou até a morte.

Sob o comunismo, os assassinatos arbitrários se tornaram uma política de Estado. Em 11 de agosto de 1918, numa ordem escrita à mão ordenando o enforcamento de pelo menos 100 kulaks na torre de Penza para servir de exemplo, Lênin escreveu:

“Enforquem (enforquem sem falta, para o povo ver) não menos do que cem kulaks conhecidos, homens ricos, agiotas… Façam de tal forma que o povo num raio de centenas de quilômetros veja, estremeça, saiba e grite: eles estão amarrando e estrangulando até a morte estes kulaks agiotas”. (Esta carta fez parte de uma exposição intitulada “Revelations from the Russian Archives” exibida na Biblioteca do Congresso, Washington, D.C., em 1992.)

Durante o expurgo de Stalin, cerca de nove milhões de pessoas perderam a vida. Dos sete membros do Politburo de Lênin da época da Revolução de Outubro, somente Stalin estava vivo quando o massacre terminou.

O que eu sempre achei até mais perturbador do que a brutalidade destes crimes era o profundo envolvimento dos líderes soviéticos neles. Stalin ordenou pessoalmente que Leon Trotsky, o cofundador da União Soviética, fosse assassinado no México. E Stalin entregou em mãos a Ordem de Lênin para a comunista espanhola Caridad Mercader del Rio, cujo filho, o oficial da inteligência soviética, Ramón Mercader, havia assassinado Trotsky em agosto de 1940 esmagando-lhe a cabeça com uma picareta. Da mesma forma, Khrushchev colocou, com as próprias mãos, a mais alta medalha soviética no peito de Bogdan Stashinsky, oficial da KGB responsável pelo assassinato de dois líderes anticomunistas exilados na Alemanha Ocidental em 1962.

O meu primeiro contato com as operações de “neutralização” do Kremlin ocorreram em 5 de novembro de 1956, quando eu estava em treinamento no ministério das relações exteriores para assumir o meu falso cargo de representante chefe da Missão Romena na Alemanha Ocidental. Mihai Petri, um oficial do DIE atuando como ministro representante, disse-me que o “big boss” precisava de mim imediatamente. O “big boss” era o general disfarçado da KGB Mikhail Gavrilyuk, romenizado como Mihai Gavriliuc e chefe do meu DIE.

“É khorosho ver um velho amigo, Ivan Mikhaylovich”, ouvi do homem descansando numa cadeira confortável na mesa de Gavriliuc. Era o general Aleksandr Sakharovsky, que se levantou da cadeira e estendeu a mão. Ele havia criado o DIE e, como conselheiro de inteligência soviético do órgão, havia sido o meu chefe de fato até alguns meses antes, quando foi escolhido por Khrushchev para chefiar a toda-poderosa PGU (Pervoye Glavnoye Upravleniye, ou Primeira Diretoria Geral da KGB, o serviço de inteligência estrangeira da União Soviética). “Deixe-me apresentar você a Ivan Aleksandrovich”, disse ele, apontando um rústico e desgastado par de óculos esporte com aros dourados. Era o general Ivan Serov, o novo chefe da KGB. Os dois visitantes estavam usando camisas típicas ucranianas floridas folgadas e calças esporte, em total contraste com os trajes acinzentados e cheio de botões estilo Stalin, até recentemente o uniforme virtual da KGB. (Até hoje para mim ainda é um mistério o motivo pelo qual a maior parte dos altos oficiais da KGB que eu conheci se esforçavam para imitar o líder soviético no poder. Seria simplesmente uma herança oriental dos tempos dos czares, quando os burocratas russos faziam qualquer coisa para adular os seus superiores?)

Os visitantes disseram que na noite anterior o premiê húngaro Imre Nagy, responsável pela cisão com o Pacto de Varsóvia e pelo pedido de ajuda às Nações Unidas, havia procurado refúgio na embaixada iugoslava. O ditador romeno Gheorghe Gheorghiu-Dej e o membro do Politburo Walter Roman (colega de Nagy dos anos de guerra quando ambos haviam trabalhado para o Comintern em Moscou) concordaram em voar para Budapeste para ajudar a KGB a sequestrar Nagy e levá-lo à Romênia. O major Emanuel Zeides, o chefe do setor alemão, fluente em húngaro, iria com eles como intérprete. “Quando Zeides Vienna você chefia nemetskogo otdeleniya”, Gavriliuc me disse, finalmente deixando claro o motivo pelo qual eu havia sido convocado. Ou seja, eu seria o responsável pelo braço alemão do DIE.

Em 23 de novembro de 1956, os três membros do Politburo soviético que haviam coordenado de Budapeste a intervenção militar na Hungria enviaram um telegrama cifrado para Khrushchev:

Camarada Walter Roman, que chegou em Budapeste junto com o Camarada Dej ontem, dia 22 de novembro, teve longas discussões com Nagy… Imre Nagy e o seu grupo deixaram a embaixada iugoslava e estão agora em nossas mãos. Hoje o grupo partirá para a Romênia. O Camarada Kadar e os camaradas romenos estão preparando um adequado comunicado à imprensa. Malenkov, Suslov, Aristov.

Um ano mais tarde, Nagy e os principais membros do seu gabinete foram enforcados, após um julgamento encenado organizado pela KGB em Budapeste.

Em fevereiro de 1962, a KGB quase conseguiu assassinar o xá do Irã, que havia cometido o imperdoável “crime” de remover um governo comunista instalado no noroeste do Irã. O conselheiro-chefe da razvedka (inteligência estrangeira, em russo) do DIE jamais nos falou muito sobre a fracassada tentativa da KGB de matar o xá, mas deu ordens ao posto do DIE em Teerã para destruir todos os documentos comprometedores, suspender todas as operações dos agentes e relatar tudo, incluindo boatos, a respeito do atentado contra o xá. Poucos dias depois, ele cancelou o plano do DIE para matar o seu próprio desertor Constantin Mandache na Alemanha Ocidental com uma bomba colocada num carro porque, o conselheiro nos disse, o controle remoto, fornecido pela KGB para esta operação, poderia apresentar problemas de funcionamento. Em 1990, Vladimir Kuzichkin, oficial da KGB diretamente envolvido no atentado fracassado para matar o xá e que depois desertou para o Ocidente, publicou um livro (Inside the KGB: My Life in Soviet Espionage, Pantheon Books, 1990) no qual descreve a operação. De acordo com Kuzichkin, o xá escapou porque o controle remoto, usado para detonar uma grande quantidade de explosivos em um automóvel Volkswagen, falhou.

Dissidentes silenciados

Em um domingo, 20 de março de 1965, fiz a minha última visita à residência de inverno de Gheorghiu-Dej em Predeal. Como de costume, encontrei-o com o seu melhor amigo, Chivu Stoica, chefe honorário da Romênia. Dej reclamou que se sentia fraco, tonto e com náuseas. “Acho que a KGB me pegou”, disse ele, meio sério, meio brincando. “Eles pegaram Togliatti. É certeza”, sussurrou Stoica com raiva.

Palmiro Togliatti, chefe do partido comunista italiano, havia morrido em 21 de agosto de 1964, durante uma visita à União Soviética. Nos altos círculos da comunidade de inteligência estrangeira do bloco acreditava-se que havia morrido de uma rápida forma de câncer após ter sido contaminado pela KGB a mando de Khrushchev durante férias em Yalta. O seu assassinato havia sido provocado porque, enquanto estava na União Soviética, havia escrito um “testamento” no qual expressara profundo descontentamento com os erros de Khrushchev. As frustrações de Togliatti expressavam não apenas a sua opinião, mas também a de Leonid Brezhnev. De acordo com Dej, estas suspeitas foram confirmadas pelo fato de que Brezhnev foi ao funeral de Togliatti em Roma; em setembro de 1964, o Pravda publicou trechos do “testamento” de Togliatti e cinco semanas mais tarde Khrushchev foi destronado após ser acusado de conspiração impulsiva, decisões precipitadas, ações divorciadas da realidade, arrogância e governo por decreto.

Eu vi Dej amedrontado. Ele também havia criticado a política externa de Khrushchev. Mais ainda, um ano antes ele havia expulsado todos os conselheiros da KGB da Romênia e no mês de setembro anterior havia expressado a Khrushchev a sua preocupação sobre a “estranha morte” de Togliatti. Durante as eleições de 12 de março de 1965 para a Grande Assembleia Nacional da Romênia, Gheorghiu-Dej ainda parecia robusto. Uma semana depois, entretanto, morreu de uma forma galopante de câncer. “Assassinado por Moscou”, sussurrou para mim o novo líder romeno, Nicolae Ceausescu, poucos meses depois. “Contaminado pela KGB”, murmurou num tom de voz mais baixo ainda afirmando: “Isto ficou bem provado na autópsia.” O assunto havia vindo à tona porque Ceausescu havia me mandado comprar dispositivos ocidentais de detecção de radiação (contadores Geiger-Müller) e mandado instalá-los secretamente em seus escritórios e residências.

Logo após a invasão de Praga pelos soviéticos, Ceausescu passou do stalinismo para o maoísmo, e em junho de 1971 visitou a China Vermelha. Lá, soube do complô da KGB para matar Mao Tsé-tung com a ajuda de Lin Biao, comandante do exército chinês, educado em Moscou. O plano falhou, e Lin Biao tentou, sem sucesso, fugir da China em um avião militar. A sua execução só foi anunciada em 1972. Durante o mesmo ano, eu soube de detalhes do plano soviético por meio de Hua Guofeng, ministro de segurança pública – que em 1977 viria a ser o líder supremo da China.

“Dez”, Ceausescu me disse. “Dez líderes internacionais que o Kremlin matou ou tentou matar”, ele explicou, enumerando-os nos dedos. Laszlo Rajk e Imre Nagy, na Hungria; Lucretiu Patrascanu e Gheorghiu-Dej, na Romênia; Rudolf Slansky, líder da Checoslováquia, e Jan Masaryk, diplomata chefe do país; o xá do Irã; Palmiro Togliatti da Itália; o presidente americano John F. Kennedy e Mao Tsé-Tung. (Entre os líderes dos serviços de inteligência satélites de Moscou era consenso que a KGB estava envolvida no assassinato do presidente Kennedy.)

Imediatamente, Ceausescu ordenou que eu criasse uma unidade supersecreta de contrainteligência para operações em países socialistas (isto é, no bloco soviético). “Você tem mil pessoas para isto.” Advertiu também que a nova unidade devia ser “não existente”. Nenhum nome, nenhum título, nenhuma placa na porta. A nova unidade recebeu somente a designação genérica U.M. 0920/A, e o seu comandante recebeu a categoria de chefe de diretoria do DIE.

Ordem para matar

No inesquecível dia de 22 de julho de 1978, Ceausescu e eu estávamos escondidos, de tocaia para caçar pelicanos em um canto remoto do Delta do Danúbio, onde nem mesmo um pássaro poderia nos ouvir. Como homem disciplinado e general aposentado, ele era fascinado pela sociedade estruturada dos pelicanos brancos. Os pássaros mais velhos – os avós – sempre ficavam na parte frontal da praia, perto da água e da fonte de alimentação. Os seus filhos respeitadores se alinhavam atrás deles em filas ordenadas, enquanto os netos passavam o tempo se movimentando na parte de trás. Eu frequentemente ouvia o meu chefe expressar o seu desejo de que a Romênia tivesse a mesma rígida estrutura social.

“Quero que você dê ‘Radu’ para Noel Bernard”, Ceausescu sussurrou em meu ouvido. Noel Bernard era na época o diretor do programa romeno da Radio Free Europe (RFE), e por anos vinha enfurecendo Ceausescu com os seus comentários. “Você não precisa me relatar os resultados”, acrescentou. “Vou saber pelos jornais ocidentais e…” O fim da frase de Ceausescu foi apagada pelo rá-tá-tá metódico da submetralhadora. Ele atirou com cerimoniosa precisão, primeiramente na linha frontal dos pelicanos, depois na distância média e por fim nos netinhos atrás.

Durante 27 anos eu vivi com o pesadelo de que, mais cedo ou mais tarde, eu receberia uma ordem para matar alguém. Até aquela ordem de Ceausescu, eu tinha estado em segurança, pois as operações de neutralização estavam a cargo do chefe do DIE. Mas em março de 1978 eu fui designado chefe interino do DIE e não havia mais como eu escapar de me envolver nos assassinatos políticos, convertidos no principal instrumento de política externa de todo o bloco soviético.

Dois dias depois Ceausescu me enviou para Bonn para entregar uma mensagem secreta para o chanceler Helmut Schmidt, e lá eu pedi asilo político nos Estados Unidos.

Os assassinatos continuam

Noel Bernard continuou a informar os romenos sobre os crimes de Ceausescu, e no dia 21 de dezembro de 1981 ele faleceu devido a uma forma galopante de câncer. Em 1° de janeiro de 1988, o seu sucessor, Vlad Georgescu, iniciou uma série de programas sobre o meu livro Red Horizons na RFE. Meses depois, quando a série acabou, Georgescu informou aos seus ouvintes que a Securitate havia repetidamente avisado que ele poderia ser morto se transmitisse Red Horizons. “Se eles me matarem por ter feito a série sobre o livro de Pacepa, morrerei com a clara consciência de que cumpri o meu dever como jornalista”, Georgescu afirmou publicamente. Poucos meses depois, ele morreu de uma forma galopante de câncer.

O Kremlin também continuou matando secretamente os seus oponentes políticos. Em 1979, a KGB de Brezhnev infiltrou Makhail Talebov na corte do premiê afegão pró-americano Hafizullah Amin como cozinheiro. A missão de Talebov era envenenar o primeiro-ministro. Após diversas tentativas, Brezhnev ordenou à KGB o uso de força armada. Em 27 de dezembro de 1979, cinquenta oficiais da KGB da unidade de elite “Alfa”, liderada pelo coronel Grigory Boyarnov, ocuparam o palácio de Amin e mataram todas as pessoas para eliminar testemunhas. No dia seguinte, a KGB de Brezhnev levou para Cabul Bebrak Kemal, um comunista afegão refugiado em Moscou e o instalou como primeiro-ministro. A operação de “neutralização” da KGB teve o seu papel na geração do terrorismo internacional de hoje.

Em 13 de maio de 1981, a mesma KGB organizou, com a ajuda da Bulgária, um atentado para matar o Papa João Paulo II, que havia iniciado uma cruzada contra o comunismo. Mehmet Ali Aqca, o atirador, admitiu ter sido recrutado pelos búlgaros, e identificou os seus oficiais de contato na Itália: Sergey Antonov, representante chefe do escritório dos Bálcãs em Roma, que foi preso; e o major Zhelvu Vasilief, do escritório do adido militar, que não pôde ser preso devido ao seu status de diplomata e foi chamado de volta a Sofia. Aqca também admitiu que, após o assassinato, ele devia ser secretamente retirado da Itália em um caminhão TIR [N.T.: abreviatura de Transports Internationaux Routiers] (no bloco soviético, os caminhões TIR eram usados pelos serviços de inteligência para atividades operacionais). Em maio de 1991 o governo italiano reabriu as investigações sobre a tentativa de assassinato e em 2 de março de 2006 concluiu que o Kremlin estava realmente por trás dela.

No Natal de 1989, Ceausescu foi executado após um julgamento no qual as acusações eram provenientes, quase palavra por palavra, do meu livro Red Horizons. Recentemente soube que Nestor Ratesh, diretor aposentado do programa romeno da RFE, após dois anos de pesquisa nos arquivos da Securitate, havia obtido evidências suficientes para provar que tanto Noel Bernard quanto Vlad Georgescu haviam sido mortos pela Securitate por ordem de Ceausescu. O resultado da sua pesquisa será objeto de um livro a ser publicado pela RFE.

Armas fortes e estabilidade

Quando a União Soviética entrou em colapso, os russos tiveram uma oportunidade única para acabar com a sua velha forma bizantina de Estado policial, responsável por isolar o país durante séculos e deixá-lo mal equipado para lidar com as complexidades da sociedade moderna. Infelizmente, os russos não cumpriram o seu dever. Desde a queda do comunismo, eles têm encarado uma nativa forma de capitalismo tocada pelos velhos burocratas comunistas, especuladores e cruéis mafiosos que ampliaram as injustiças sociais. Assim, após um período de crescimento, os russos gradualmente – e talvez agradecidamente – retornaram para a sua histórica forma de governo, a tradicional samoderzhaviye russa, uma forma de autocracia que remonta ao século XIV de Ivan, o Terrível, no qual um senhor feudal governava o país com a ajuda da sua polícia política pessoal. Bem ou mal, a velha polícia política pode parecer para a maioria dos russos como uma defesa contra a ganância dos novos capitalistas domésticos.

Não será fácil romper uma tradição de cinco séculos. Isto não significa que a Rússia não pode mudar. Mas para isto acontecer, os Estados Unidos precisam ajudar. Devemos parar de fingir que o governo russo é democrático e devemos chamá-lo pelo verdadeiro nome: um bando de seis mil oficiais aposentados da KGB – uma das mais criminosas organizações da história – ocupando os mais importantes cargos do governo federal e dos governos locais, e que está perpetuando a prática de Stalin, Khrushchev e Brezhnev de assassinar secretamente as pessoas que atravessam o seu caminho. O assassinato sempre cobra um preço, e o Kremlin devia ser obrigado a pagá-lo até que pare com os assassinatos.

Nota do tradutor Ricardo Hashimoto: Aproveitando a data dos 50 anos do assassinato de JFK, traduzi este artigo do general Ion Mihai Pacepa, um oficial da mais alta patente que desertou do bloco comunista, publicado no National Review Online em 28 de novembro de 2006