Como Hugo Chávez deu um golpe de Estado com fachada jurídica

04/05/2015 23:29 Atualizado: 04/05/2015 23:29

A República Bolivariana da Venezuela vive na atualidade um verdadeiro caos: desabastecimento, perseguição a opositores, falta de medicamentos, insegurança, a inflação mais alta do planeta, o terceiro menor salário mínimo do planeta, corrupção e abuso de poder são alguns dos problemas que o país vive. A Venezuela está cada vez mais próxima de se tornar uma nova ditadura socialista. Mas esse processo que o país vive atualmente teve um princípio, e é o que desejo contar nesse artigo.

Tudo se inicia no ano de 1992. Hugo Chávez era tenente-coronel do exército da Venezuela e fundador do Movimento Bolivariano Revolucionário 200 (MBR-200). Chávez, influenciado por Douglas Bravo, líder do Partido de La Revolución Venezolana, liderou cerca de trezentos homens e depois conquistou apoio de 10% das forças armadas, com o objetivo de realizar uma intervenção militar na Venezuela, para depor o presidente Carlos Andrés Perez, argumentando como razão principal que a intervenção era uma reação à política econômica do presidente Pérez, que estava causando inflação e desemprego no país. Porém, essa intervenção militar foi totalmente malograda, por vários motivos: deserções, trapalhadas, como a não transmissão das fitas pré-gravadas por Chávez conclamando a população a aderir ao movimento, alguns erros de estratégia como, por exemplo, a falha no avanço das tropas interventoras na capital Caracas, com Chávez preferindo se manter no “bunker”, o Museu Militar de Caracas. Pérez convocou o restante das forças armadas e as tropas neutralizaram a insurreição de forma rápida, embora acontecessem algumas baixas: 14 soldados foram mortos, 50 soldados foram feridos, além de 80 civis.

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Após o controle da insurreição, Hugo Chávez teve espaço em rede de televisão para deixar um recado à população venezuelana e falou as seguintes palavras:

“Companheiros: infelizmente, neste momento, os objetivos que determinamos para nós mesmos não foram alcançados na capital. Isto é para dizer que nós em Caracas não fomos capazes de tomar o poder. Onde quer que vocês estejam, vocês desempenharam bem seus papéis, mas agora é tempo para repensar; novas possibilidades surgirão novamente e o país será capaz de ter definitivamente um futuro melhor.”

Após esse discurso em rede de TV, Chávez foi conduzido à prisão, mais precisamente no Centro Penitenciário de Yare. Esse episódio acabou catapultando a imagem do tenente-coronel, tornando-o uma espécie de herói nacional. Chávez, para a população venezuelana, passou a ser a figura que decidiu enfrentar a corrupção e a cleptocracia. E Perez, outro personagem da história, se tornou mais impopular, ainda com efeitos dos protestos de 1989, conhecidos como Caracazo, episódio acontecido quando a população foi às ruas contra aumentos abusivos no preço das passagens de veículos coletivos e do combustível, e também contra a política de austeridade feita por Perez e foram reprimidos por um verdadeiro massacre feito pelas forças fiéis ao palácio de Miraflores. E foram esses protestos de 1989 que acabaram por acelerar a ação do MBR-200 e do PRV.

E Perez sofreu o golpe de misericórdia: envolvido com casos de corrupção, somado a baixa popularidade, efeitos do Caracazo de 1989 e da intervenção militar mal-sucedida de 1992, veio por sofrer o impeachment em 1993. E em 1993 era ano eleitoral. Era o ano para a eleição presidencial, e o ex-presidente Rafael Caldera, utilizando a baixa popularidade de Perez, argumentando durante a sua campanha eleitoral que o presidente deposto deteriorou a democracia e fez explodir uma onda de pobreza e corrupção, veio por ganhar as eleições. Caldera era um liberal clássico, filiado ao principal partido liberal da Venezuela na época, o Comité de Organización Política Electoral Independiente (COPEI). E arrumou a casa no âmbito econômico, realizando várias reformas. E no ano de 1995, concedeu anistia a Hugo Chávez; e Chávez abandonou a vida militar, passando a militar no campo político.

Hugo Chávez se juntou com todos os intelectuais de esquerda do país, como a historiadora e amante Herma Marksman, e também mantendo a velha aliança com o seu mentor Douglas Bravo. E aquela frase dita no pronunciamento de 1992 começava a fazer sentido. Os dois perceberam que uma revolução pelas armas não teria êxito. Bravo e Marksman apresentaram a Chávez os livros do italiano Antonio Gramsci, mostrando que em vez de realizar uma revolução pelas armas, podia-se realizar uma revolução com aparência democrática. E Chávez e Bravo decidem entrar de vez no campo político: fundam em 1997 o Movimento V(quinta) República (MVR), juntando desde revolucionários de esquerda a nacionalistas e alguns membros da direita venezuelana, de conservadores radicais a membros do chamado puntifijismo, aliança da COPEI com o Partido de Acción Democratica, com o intuito de lançar um candidato à presidência do país no ano de 1998.

E chegamos ao ano de 1998. Hugo Chávez é escolhido pelo MVR para ser o candidato à presidência da república, formando a coligação “Polo Patriótico”, com vários partidos de esquerda e centro-esquerda, para enfrentar o candidato apoiado pelo palácio de Miraflores, o governador do estado de Carabobo, Henrique Salas Römmer, do partido Proyecto Venezuela, coligado com o COPEI e o Acción Democrática. E Chávez, usando de uma estratégia ímpar, dizendo em sua campanha que manteria a política econômica de Caldera, porém com mais políticas sociais de inclusão, de forma bem parecida com a campanha de Luís Inácio Lula da Silva no Brasil, quatro anos depois. Chávez prometia em sua campanha uma nova Venezuela. E com esse discurso, que em nada parecia com o de Hugo Chávez de 1992, ganhou a eleição com 56,2%, contra 39,97% de Sömmer. A revolução ganhava corpo e tinha conquistado o seu ponto máximo: o poder. Era o primeiro passo para se construir uma nova ordem no país.

Chávez tinha sido eleito sob a Constituição de 1961, que proibia a possibilidade de reeleição. E o primeiro passo para a perpetuação do poder foi tomado: um pouco depois da posse, ainda no dia dois de fevereiro de 1999, Chávez, por meio do decreto presidencial número três, convoca um referendo, segundo o próprio, “para que o povo se pronuncie sobre a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte”, propondo as perguntas:

“Convoca você uma Assembleia Nacional Constituinte com o propósito de transformar o Estado e criar um novo ordenamento jurídico que permita o funcionamento de uma democracia social e participativa?” e

“Autoriza você que o presidente da república, mediante a um ato de governo, fixe e ouça a opinião dos setores políticos, sociais e econômicos as bases do processo eleitoral no qual se elegeram os integrantes da Assembleia Nacional Constituinte?”

No dia 25 de abril de 1999, as perguntas foram levadas a votação no referendo: a primeira pergunta teve 87,75% dos votos favoráveis, e a segunda pergunta teve 81,74% dos votos favoráveis. Estava autorizada a formação da Assembleia.

Dia 25 de julho de 1999. Acontecem as eleições para a Assembleia Nacional Constituinte. Os aliados de Chávez, chamados de candidatos oficialistas tiveram 52% dos votos, enquanto a oposição, 48%. Porém, graças a uma manobra matemática chamada de “El Kino”, uma espécie de voto em lista para beneficiar candidatos do interior, com maioria ligada a Chávez, os oficialistas obtiveram 125 das 131 cadeiras da assembleia.

As reuniões da Assembleia Nacional Constituinte se iniciam no dia três de agosto de 1999, regulamentando e declarando que a constituição era “depositária da vontade popular e expressão de sua soberania com as atribuições do Poder Originário para reorganizar o Estado venezuelano”. E delimita que “poderá limitar ou decidir a cessão das atividades das autoridades que compõem o poder público” e “que todos os organismos do poder público estarão subordinados ao Poder Originário”. Neste momento, o congresso nacional autorizava a presidência a intervir na atividade legislativa, acabando com a independência dos poderes.

No dia oito de agosto de 1999, a Assembleia autoriza um decreto para a reorganização do poder judicial, para também submeter o judiciário ao Poder Originário, que era o executivo. E no dia seguinte, Chávez, colocando seu cargo a ordem, se auto-declarou como Poder Originário, e os membros da constituinte o ratificam no cargo.

Em doze de agosto de 1999, os deputados lançam decreto mediante o qual se declara a reorganização de todos os órgãos do poder público, dando de vez plenos poderes ao Poder Originário, autorizando-lhe “a intervenção, modificação, ou suspensão dos órgãos do poder público que assim se considere”. Era de vez a centralização do poder nas mãos de um só homem. E esse homem era Hugo Chávez.

Alguns dias depois, no dia vinte e três de agosto de 1999, a Corte Suprema de Justiça e seus magistrados decidem, em votação oito a sete, a aprovação do decreto da reorganização do poder judiciário, ditado pela Assembleia Nacional Constituinte, que subordina o judiciário ao executivo. A presidente da Corte, Dra. Cecília Sosa, oposicionista declarada de Chávez, se pronunciou contra a subordinação durante seu voto com o seguinte discurso:

“É evidente que a Assembleia Nacional Constituinte se autorizou para escrever um novo ordenamento constitucional, que sustentará o novo esquema do Estado Democrático eleito pelo país, e não para intervir ou substituir as esferas constituídas, originando um “superpoder”, onde se concentram as autoridades públicas (…). Sinceramente, a Corte Suprema de Justiça da Venezuela se suicidou para evitar ser assassinada. O resultado é o mesmo: Está morta.”

Dois dias depois, a Assembleia promulga o decreto para reorganização do poder judicial e cria a Comissão de Emergência Judicial, subordinado ao Poder Originário, com poderes de dissolver a Corte Suprema de Justiça e o Conselho Nacional Judicial. E também aprova o decreto que regula as ações do próprio Poder Legislativo, suspendendo as sessões do Congresso Nacional, criando a Comissão Nacional Legislativa Provisória da Assembleia Nacional Constituinte, e cria a Comissão de atuação parlamentar, removendo a imunidade legislativa.

No dia 15 de dezembro de 1999, é aprovada a nova Constituição venezuelana. E no dia 22 de dezembro de 1999, a Assembleia lança o decreto do regime de transição do poder público, dissolvendo definitivamente o Congresso Nacional, criando a Comissão Nacional Legislativa e um novo Tribunal Supremo de Justiça, nomeando um novo Procurador-geral da república, um novo Delegado nacional da Receita Federal, e se auto-atribuindo competência para designar os integrantes do Conselho Nacional Eleitoral.

Dia 30 de dezembro de 1999, se promulga a nova constituição. No curso de seu funcionamento, a Assembleia Nacional Constituinte passou o controle das instituições e das esferas de poder para o executivo, por meio do Poder Originário. Depois da promulgação, Chávez passou a ter plenos poderes sobre o legislativo, sobre o judiciário, sobre a Controladoria Geral da República, sobre a Receita Federal, chamada na Venezuela de Fiscalia General de La República e sobre o Conselho Nacional Eleitoral. Com isso, se consumou o golpe de Estado moderno. A tomada do Conselho Nacional Eleitoral foi a cereja no bolo de Chávez, Bravo, Marksman, Diosdado Cabello, Nicolás Maduro e de toda a cúpula do MVR. Assim, podiam se perpetuar no poder, dando prosseguimento à Revolução, e poder exibir origem democrática de poder, dando legalidade e legitimação ao MVR.

O que, no ano de 1992, Chávez e seu grupo não puderam fazer pelas armas, por meio de uma intervenção militar, fizeram entre 1997 e 1999 com aparência jurídica. Conquistar o poder, enfraquecer a oposição, utilizar-se do artifício da Democracia direta como embuste, utilizando a popularidade de início de mandato, aparelhar todas as estruturas de governo, subordinar todos os poderes à presidência da república e centralizar todas as ações de poder foram cruciais para termos, nos dias atuais, o caos instaurado na Venezuela.

Editado pelo Epoch Times