Como fica a relação EUA-China após a acusação de ciberespionagem

23/05/2014 14:14 Atualizado: 23/05/2014 14:14

Numa série de declarações incisivas na segunda-feira, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos fez acusações contra cinco membros de um esquadrão de elite de ciberpirataria do exército chinês, que foi acusado de roubar grandes quantidades de informação comercial secreta de empresas norte-americanas durante anos.

O movimento foi considerado “sem precedentes”, especialmente porque se distingue da abordagem usual dos Estados Unidos em suas relações com a República Popular da China, que têm enfatizado a cooperação e slogans como “ganhar-ganhar” (win-win). Enquanto os Estados Unidos e a China gostam de enfatizar seus interesses comuns, a acusação atual mostra claramente que, sob essa fachada esperançosa, persiste uma acentuada rivalidade de poder.

Em muitos aspectos, a acusação é apenas uma pequena parte de um problema muito maior: os casos de espionagem discutidos são uma pequena fração da vasta infiltração do regime chinês, tanto cibernética como de outras formas, em empresas norte-americanas e internacionais a fim de roubar suas tecnologias. (Especialistas dizem que centenas de bilhões de dólares em tecnologia têm sido desviados.)

Isso é também uma manifestação, embora cuidadosamente controlada, de profundas divergências estratégicas e ideológicas entre os dois países, que têm posições fundamentalmente opostas sobre questões como o estado de direito e o papel da lei, e sobre os limites da coleta de inteligência e as relações entre corporações e Estado.

O que é permitido roubar?

Os Estados Unidos são um colecionador conhecido e bem-sucedido da inteligência e segredos militares de Estados estrangeiros – de fato, seria negligência se os líderes do país não se envolvessem nessas atividades.

Mas os líderes americanos estabeleceram como limite não usar operações militares para roubar empresas privadas de outros países para em seguida fornecer informações a empresas escolhidas nos Estados Unidos.

Mas os chineses parecem ter uma visão muito diferente da questão. Embora oficialmente representantes do regime digam que as acusações recentes são “forjadas” e “absurdas” e que a China é uma grande vítima de assédio virtual dos EUA – outras propagandas oficiais lamentam que a própria posição dos EUA sobre o assunto é hipócrita e conveniente.

Para o Partido Comunista Chinês (PCC) há pouca diferença significativa entre as atividades de hackers realizadas apenas para o benefício dos serviços de inteligência e de defesa do país e operações que visam a roubar tecnologia para benefício de empresas que existem em relação simbiótica com o Estado.

Os Estados Unidos têm uma posição muito mais clara entre os mundos empresarial e político, consagrados em centenas de anos de separação de poderes, instituições, leis e normas.

A República Popular da China, por outro lado, é um Estado de partido único, o que coloca o Partido Comunista Chinês e seus oficiais numa posição privilegiada no cenário comunista. O Partido mantém um rígido controle político e ideológico sobre grandes empresas privadas e exerce tanto controle político como institucional sobre suas gigantescas empresas estatais, que são concedidas monopólios em setores estratégicos.

“Eles se referem a isso como poder nacional abrangente”, disse Timothy Walton, pesquisador de questões de segurança chinesa na Delex Systems Inc., uma empresa que atende a comunidade de inteligência dos EUA, sediada na Virgínia. “Eles veem sua capacidade de competir economicamente e de ter empresas estatais e privadas bem-sucedidas que possam competir no cenário global como algo tão importante quanto sua capacidade militar”, disse ele.

Desta forma, o regime chinês “apoia suas indústrias nacionais por meios militares e de inteligência, por meio da ciberespionagem e do roubo, e eles consideram isso um jogo justo”.

Nepotismo e corrupção

Ciberpirataria para obter segredos na China não ocorre apenas para o objetivo abstrato de promover o desenvolvimento nacional, mas também para usar tecnologias roubadas para ganhar dinheiro e enriquecer. Isso adiciona uma nova camada de incentivo pessoal no sistema chinês para promover e incrementar a pirataria.

A acusação revelada pelo Departamento de Justiça dos EUA revela uma relação incestuosa e profunda entre a Unidade 61398 do Exército da Libertação Popular (ELP), que cometeu a ciberpirataria, e as empresas que forneceram as informações. Mesmo o calendário das ciberviolações foi cuidadosamente discutido e calibrado entre seus líderes.

Os conspiradores “roubaram segredos industriais que eram particularmente benéficos para as empresas chinesas no momento em que foram roubados”, diz a acusação. E dá o exemplo da SolarWorld, uma empresa de tecnologia solar baseada no Oregon, que teve suas informações de precificação roubadas enquanto perdia participação de mercado; ou a Westinghouse, sediada na Pensilvânia, que teve as especificações técnicas de tubos usados em usinas nucleares roubadas enquanto negociava com uma empresa chinesa – um dos clientes dos hackers do ELP.

Os hackers então teriam sido recompensados. “No período relevante neste processo, empresas chinesas contrataram a mesma Unidade do ELP onde os réus trabalhavam para fornecer serviços de tecnologia da informação”, disse a acusação.

Portanto, como na maioria das coisas que envolve o PCC e seus agentes, o roubo de segredos comerciais americanos toca tanto na longevidade como no poder do regime, mas também nas tendências de corrupção de determinados oficiais do Partido Comunista Chinês.

Interesses opostos

“Não é todo dia que o governo dos EUA acusa oficiais militares de comportamento criminoso que teria sido autorizado pelo próprio governo estrangeiro”, escreveu Duncan B. Hollis, um professor de direito na Universidade Temple, numa postagem de blog. A natureza extremamente incomum do passo dado pelos Estados Unidos neste caso mostra a seriedade com que a administração encara o problema.

“Nossa segurança econômica e nossa capacidade de competir de forma justa no mercado global estão diretamente relacionados à nossa segurança nacional”, disse o procurador-geral Eric Holder, ao anunciar a acusação. “Quando uma nação estrangeira usa recursos e ferramentas militares ou de inteligência contra uma corporação ou executivo dos EUA para obter segredos comerciais ou informações comerciais confidenciais para o benefício de suas empresas estatais, devemos dizer, ‘basta’.”

Assim, em certo sentido, as máscaras caem e podemos finalmente ver a frustração dos líderes dos EUA em face de um regime político que tem pouca consideração pelos ideais que os Estados Unidos têm como fundamentos de sua identidade. Mas não está claro como ou se a acusação teria muito impacto no comportamento chinês.

Recursos ilimitados dedicados ao controle da informação e às capacidades de guerra são um componente-chave do poder do Partido Comunista, dentro e fora do país. Violar corporações para roubar segredos e desenvolver sua própria indústria também é uma prioridade do Partido Comunista. Os desenvolvimentos recentes indicam que o regime está apenas se preparando para incrementar suas iniciativas.

Um editorial do final de março publicado pelo Diário do Exército da Libertação Popular, o jornal oficial dos militares chineses, que foi traduzido pelo website Chinascope.org, exorta as autoridades chinesas a “construir nossa Nova Grande Muralha” para fortalecer a ciberdefesa contra incursões externas.

“Devemos resolutamente resistir e lutar contra quaisquer ações que violem a soberania da internet de nossa nação”, diz o artigo. “Para aquelas potências estrangeiras que tentam controlar nosso poder de discurso na internet, devemos cortar suas mãos negras.”