Paul Krugman e outros defensores do aumento dos gastos governamentais alegaram recentemente que comparar a dívida do governo à dívida de um indivíduo ou de uma empresa é errado.
Ao contrário dos moralistas, que não querem aumentar as dívidas a serem pagas pelas gerações futuras, Krugman e seus aliados alegam que a dívida governamental per se não representa nenhum fardo para as gerações futuras como um todo. Afinal, nossos descendentes irão “dever para eles próprios” — ao menos se desconsiderarmos a dívida externa, é claro.
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Sendo assim, quaisquer impostos que forem aumentados ou criados para pagar o serviço desta dívida (juros e amortizações) irão simplesmente fluir para os bolsos daqueles cidadãos que estiverem de posse dos títulos da dívida. Com isso, Krugman argumenta que a “dívida nacional” não é apenas um passivo, mas também um ativo. Quanto maior a dívida, portanto, mais rico o país.
Um argumento que já seria o bastante para encerrar esta discussão é o fato de que, quanto maior a dívida, maiores os gastos do governo apenas com os juros desta dívida. E maiores ainda serão os gastos para amortizar os títulos vincendos. Isto faria com que uma enorme fatia dos impostos arrecadados fosse utilizada apenas para pagar encargos da dívida. Tal situação equivaleria a uma maciça transferência de renda de pagadores de impostos para portadores de títulos. Alguns iriam ganhar, outros iriam perder.
Como sempre disse Murray Rothbard, a frase “nós devemos a nós mesmos” possui profundas implicações: tudo depende de se você faz parte do “nós” ou do “nós mesmos”.
Mas há outros problemas também. Um deles é que tal ponto de vista krugmaniano ignora o fato de que déficits do governo retiram recursos do setor produtivo, desviando-os para ineficientes gastos estatais. Quando o governo incorre em déficits e emite títulos para financiar estes déficits, tais títulos, embora sejam comprados majoritariamente por bancos, também são comprados por empresas ou por indivíduos que, caso contrário, poderiam estar aplicando seu capital em investimentos produtivos.
Empresas e indivíduos, que poderiam direcionar seu dinheiro para atividades mais produtivas, preferem direcioná-lo para a compra de títulos do governo, desta maneira privando a economia de um capital que poderia ser investido em atividades que aumentariam a oferta de bens e serviços em toda a economia.
Ou seja, quando o governo vende títulos, ele faz com que aquele dinheiro que de outra maneira estaria indo para investimentos privados seja canalizado para o financiamento da máquina burocrática.
Desta forma, déficits governamentais retiram recursos de investimentos privados e os desviam para gastos escolhidos de acordo com politicagem.
Déficits, portanto, fazem com que as gerações futuras tenham à sua disposição uma menor oferta de tratores, escavadeiras, máquinas, ferramentas e outros equipamentos, reduzindo assim sua capacidade de produzir mais bens. Consequentemente, estas futuras gerações estarão potencialmente mais pobres.
Além deste efeito negativo sobre o investimento físico em bens de capital, o economista James Buchanan demonstrou que há outra maneira de mostrar como os atuais déficits orçamentários de um governo podem empobrecer as gerações futuras. Uma vez que entendemos que “a nação” é composta por diferentes indivíduos que surgem em vários pontos distintos do espaço e do tempo, que vivem durante períodos de tempo variáveis e não homogêneos, e então morrem, dizer que “nós devemos para nós mesmos” é uma completa falácia.
Repetindo, Buchanan aponta para um efeito que vai muito além do fato de que os déficits governamentais de hoje tendem a reduzir o investimento privado. Mesmo se supuséssemos que todo o déficit governamental atual fosse pago por meio de uma redução no consumo privado — de modo que estaríamos deixando para as futuras gerações o mesmo estoque de bens de capital —, ainda assim nossos descendentes (como um todo) estariam em pior situação (relativamente mais pobres, ou menos ricos do que poderiam) em decorrência desta política de déficits.
Para entender como isto funciona, imagine que o governo atual — isto é, no ano de 2015 — anuncie que irá gastar $100 bilhões dando uma festa de arromba. Tudo o mais constante, as pessoas vivas em 2015 irão adorar este surto maciço de consumo. No entanto, se o governo impusesse tributos sobre as pessoas em 2015 para pagar por esta festa, elas certamente iriam se revoltar. E nenhum governo quer isso. Muito mais confortável é apenas emitir títulos da dívida, que serão voluntariamente comprados por algumas pessoas no presente, e jogar o fardo do pagamento dos juros e do principal para as gerações futuras.
Mais especificamente, suponha que o governo, em vez de elevar impostos, emita títulos que irão vencer daqui a cem anos, e os quais serão vendidos agora àquelas pessoas que oferecerem os melhores preços de compra.
Supondo que os investidores confiem no governo e que a taxa de juros nominal de longo prazo seja acordada em 4,7%, o governo irá então emitir uma nota oficial com a seguinte declaração: “No ano de 2115, o governo irá fazer uma contagem de quantos pagadores de impostos existem no país. Ato contínuo, o governo irá tributar cada um destes x cidadãos com um imposto per capita de $10 trilhões/x. Esta receita tributária de $10 trilhões assim coletada será entregue a todas as pessoas que porventura estejam de posse deste pedaço de papel naquele momento.”
O valor de $10 trilhões nada mais é do que $100 bilhões com juros de 4,7% ao ano durante cem anos.
Neste exemplo, a dívida será quitada — juros e principal — de uma só vez em 2115. Ou seja, o governo em 2015 irá levantar, via emissão de dívida, $100 bilhões — o valor presente descontado do pagamento de $10 trilhões que só irá ocorrer daqui a cem anos — e com isso pagar por sua festança.
Neste cenário, um leigo estaria correto em dizer que a atual geração fez a sua farra e jogou toda a conta para os infelizes cidadãos de 2115. Os pagadores de impostos em 2115 terão de entregar $10 trilhões para alguns de seus concidadãos. No entanto, esta observação ainda não encerra por completo a análise.
O motivo é que aquelas pessoas que em 2115 estiverem em posse dos títulos da dívida, e que portanto estarão recebendo os $10 trilhões, não irão receber este dinheiro de graça. Ao contrário, tais pessoas compraram estes títulos alguns anos atrás e pagaram por eles o valor presente descontado de $10 trilhões. Portanto, quando fazemos a contabilidade corretamente, entendemos que, além de os pagadores de impostos em 2115 serem claramente prejudicados (afinal, terão de pagar $10 trilhões em impostos), esta sua perda não se traduz em um ganho idêntico para os portadores dos títulos. É por isso que esta geração como um todo estará mais pobre em decorrência da festança que as pessoas de 2015 deram.
Esta conclusão crítica merece ser enfatizada.
Considere um indivíduo que está de posse de um dos títulos da dívida (cujo valor de face é de $1.000) em 2115. Talvez esta pessoa tenha comprado este título de outra pessoa no ano anterior (em 2114) por $955. Ao receber os $1.000, ela estará auferindo juros de 4,7%. Os $1.000 que ele receber em 2115 não irão constituir um ganho líquido para esta pessoa, pois a maior fatia destes $1.000 — isto é, os $955 — será apenas a devolução do principal que ele pagou no ano anterior.
O real benefício para esta pessoa em toda esta operação seria ela receber uma taxa de juros mais alta do que a que ele receberia caso emprestasse seus $955 para o setor privado. Portanto, esta pessoa poderia considerar que toda esta operação de tributar-e-distribuir em 2115 lhe valeu, por exemplo, apenas $5.
É a este benefício líquido de $5 (aproximadamente) para o portador do título que os $1.000 em impostos coletados deve ser contrastado. Em outras palavras, o pagador de impostos individual (responsável por um décimo-bilionésimo da fatura de $10 trilhões) ficará com $1.000 a menos, ao passo que o portador do título para quem o dinheiro é transferido irá ganhar apenas $5.
Agora, se nos concentrarmos em um outro portador de título — por exemplo, alguém que tenha comprado o título no ano de 2085 —, então seu ganho seria maior do que $5, pois ele auferiu taxas de juros acima das de mercado por um período mais longo. Ainda assim, a única maneira de uma perda de $1.000 para um pagador de impostos ser identicamente contrabalançada por um ganho de $1.000 para um portador de título seria se este portador houvesse adquirido o título gratuitamente. Isto poderia acontecer com crianças que herdam títulos de seus pais. Mas é só.
Qualquer outra pessoa que utilize dinheiro próprio para adquirir uma fatia daquele enorme título de $10 trilhões não irá obter ganhos idênticos às perdas dos pagadores de impostos. Seu ganho será muito menor. Logo, o grupo “pessoas vivas em 2115” estará coletivamente mais pobre em decorrência deste esquema.
Por outro lado, consideremos a geração original, aquele que deu a festança. Sim, houve investidores em 2015 que tiveram de reduzir seus gastos em um total de $100 bilhões em decorrência de terem comprado os títulos emitidos pelo governo. Porém, à medida que o tempo foi passando, eles poderiam ter vendido seus títulos (um ativo financeiro) para investidores mais jovens, e utilizar os fundos assim conseguidos para financiar suas aposentadorias. Assim, os investidores de 2015, se considerarmos sua renda vitalícia, de fato não perderam nada com este negócio, o qual foi totalmente voluntário para eles.
Para resumir: em 2015, várias pessoas vivas ganharam e ninguém perdeu, ao passo que, em 2115, as pessoas vivas sofreram perdas que sobrepujaram os ganhos totais. E isto é verdade mesmo se considerando que, em 2115, “as pessoas deviam $10 trilhões para elas mesmas”.
Déficits orçamentários nada mais são do que um enorme esquema de roubo que ocorre ao longo do tempo por meio do mercado financeiro e de títulos do governo. Déficits orçamentários permitem que os cidadãos de hoje financiem benesses governamentais jogando a conta para gerações futuras, as quais não têm nenhum poder de influência nas decisões políticas atuais.
Nota do autor
Um dos efeitos mais diretos e imediatos da recente alteração da Lei de Diretrizes Orçamentárias — que, na prática, se traduz em déficits maiores — poderá ser observado na inflação de preços.
Dado que os déficits no orçamento do governo (sejam eles primário ou nominal) são financiados pela emissão de títulos do Tesouro, e dado que esses títulos do Tesouro são majoritariamente comprados pelos bancos por meio da criação de dinheiro, temos que os déficits do governo são uma medida inerentemente inflacionária.
Será difícil reduzir a atual inflação de preços se o governo não equilibrar seu orçamento.
No entanto, os déficits possuem outro efeito pernicioso, de cunho ético, e que é pouco discutido. Uma vez que um déficit orçamentário gera um aumento da dívida pública, e dado que essa dívida pública terá de ser arcada pelas gerações futuras (via juros e amortizações), fica a pergunta: qual a moralidade de legar para as gerações futuras o fardo dessa dívida?
Um endividamento gera benefícios presentes, mas ônus futuros. O governo, ao se endividar hoje e legar a fatura para as gerações futuras, está simplesmente beneficiando a si próprio e a seus grupos favoritos (funcionários públicos e grandes empresários ligados ao regime) à custa do bem-estar de toda uma geração futura (você próprio quando estiver mais velho, seus filhos e seus netos).
Qual é a moralidade desse arranjo?