Classes sociais: problema cada vez maior na China

17/06/2015 07:00 Atualizado: 15/06/2015 21:41

Na virada do século 19 para o 20, a China ainda era um império. De um lado, uma pequena elite detinha quase toda riqueza e poder, e do outro, uma imensa massa de camponeses vivia à beira da subsistência. Recentemente, o erudito chinês Zi Zhongyun observou: “Passaram-se 100 anos, mas não houve nenhuma melhora…”.

A observação é pertinente: apesar das promessas do Partido Comunista Chinês, não ocorreu genuína transformação da estrutura social na China. A elite ainda detém e controla quase toda riqueza, enquanto a classe média é relativamente nanica.

Uma real transformação social passa por mudanças políticas e econômicas, e isso é acompanhado de mudanças nas classes sociais. As economias desenvolvidas são baseadas numa ampla classe média, precisamente o que não ocorreu na China.

Quando a reforma e a abertura da China começaram, Deng Xiaoping prometeu ao povo chinês uma sociedade moderadamente próspera. Até 10 anos antes deste século, o objetivo do regime era construir uma sociedade em forma de azeitona, com uma classe média no centro. Muitos projetos nacionais foram financiados com essa perspectiva, mas todas essas propostas lentamente desapareceram da propaganda oficial do regime chinês em menos de uma década.

De acordo com relatório de 2013 do Banco Mundial, cerca de 300 milhões de chineses consomem diariamente US$ 1 ou menos. Quando adicionado a eles uma classe média baixa estimada pelo Banco Asiático de Desenvolvimento em 303 milhões de chineses, isso significa que metade da população chinesa é pobre (se incluídos 200 milhões de chineses desempregados, de acordo com o ex-primeiro-ministro Wen Jiabao). E essa situação está piorando. Com a saída de capital estrangeiro e o aprofundamento da recessão na economia chinesa, provavelmente, mais 124 milhões de pessoas perderão seus empregos, fazendo com que os pobres e a “classe média baixa” da China representem 60% da população.

Quando pessoas mencionam quantos bilionários a China tem, é importante ter os números acima em mente, uma demonstração gritante do fracasso do projeto chinês de reestruturação das classes sociais.

A razão por trás disso é simples: o total fracasso na distribuição de forma justa do extraordinário crescimento econômico da China. Isso se relaciona com questões profundas ligadas ao sistema legal, à estrutura regulatória e sobre como os custos e lucros são compartilhadas na sociedade. Nas modernas economias de mercado, basicamente, a distribuição da renda ocorre de modo equilibrado entre trabalhadores, empregadores e Estado.

Os principais problemas da China

Em primeiro lugar, a participação dos trabalhadores na distribuição da riqueza chinesa vem diminuindo. Isso é conhecido há anos.

Zhang Jianguo, dirigente da Confederação dos Sindicatos da China, disse que a remuneração do trabalho está diminuindo desde que atingiu o pico de 56,5% do PIB em 1983. Foi de 36,7% do PIB em 2005, queda de quase 20% em duas décadas. O Ministério das Finanças contesta esses dados e a Academia Chinesa de Ciências Sociais disse, em 2013, que os números eram próximos de 50% em 2004 e 45% em 2011 (nos Estados Unidos, para efeito de comparação, na última década, a relação tem sido 58-60%). Essa proporção é determinante direto da riqueza relativa dos trabalhadores.

Em segundo lugar, os retornos sobre o capital têm sido grandes. Na mesma entrevista, Zhang Jianguo disse que o retorno sobre o capital de 1978 a 2005 foi de cerca de 20%. O Centro de Pesquisas Econômicas da Universidade de Pequim estima que, de 1998 a 2005, o retorno sobre o capital aumentou de 6,8% para 17,8%.

Os pesquisadores, em geral, acreditam que o grande retorno médio foi causado por gastos do governo direcionados para melhorar retornos de capital e alocação do capital fortemente influenciado por fatores políticos.

No entanto, prevalece um capitalismo de compadres entre pessoas de negócio e o governo, o que permite a pessoas próximas ao poder acumularem enormes ganhos, enquanto as margens de lucro das pequenas e médias empresas são fortemente apertadas.

Todos na China sabem como esse capitalismo de compadres funciona: o número de funcionários corruptos aumenta a cada ano, os subornos tornaram-se enormes e são usados pelas empresas para comprarem funcionários com poder de influência. Esses funcionários, então, usam de poder e influência política para proteger os lucros excessivos dos negócios dos quais recebem dinheiro ou suborno. Enquanto isso, as empresas comuns, cumpridoras da lei e sujeitas a leis de mercado, operam com dificuldades. Isso faz com que a eficiência da sociedade decaia e, assim, piore ainda mais a distribuição de riqueza.

Os dados do “Relatório de Renda do Povo Chinês – 2014”, publicados pela Centro de Pesquisa de Ciências Sociais da Universidade de Pequim, são reveladores. Em 2012, o coeficiente Gini – medida da distribuição da riqueza líquida das famílias – da China foi 0,73. Isto significa que 1% das famílias no topo controlam um terço da riqueza de todo o país, enquanto as 25% na base controlam apenas cerca de 1%.

Claramente, a classe média foi suprimida. Duas condições são necessárias para mudar isso: empregos de nível mais elevado devem ser criados (a flutuação dos trabalhadores migrantes, de baixa renda, tem pouco impacto sobre a classe média) e os salários precisam crescer. Nenhuma dessas coisas aconteceu. Em vez disso, carreiras promissoras são cada vez mais escassas e difíceis de se encontrar: são destinadas à elite. Essa falta de dinamismo, inevitavelmente, cria injustiça social.

Essas tensões sociais recentemente explodiram publicamente na forma do que foi apelidado de “incidente Xu Chune”, ou seja, quando um policial matou a tiros um homem de nome Xu Chune numa estação de trem da cidade de Qing’an. Antes que os fatos sobre o que aconteceu fossem esclarecidos, a maioria do público instintivamente se posicionou a favor de Xu, expondo uma raiva contra a privação generalizada de direitos civis na China, e mais ainda, o abismo escancarado entre as classes sociais.

He Qinglian é conceituada autora e economista chinesa. Atualmente, Qinglian vive nos Estados Unidos. É autora do livro “China’s Pitfalls [Armadilhas da China]”, que trata da corrupção na reforma econômica da China da década de 1990, e também do livro “The Fog of Censorship: Media Control in China [O Nevoeiro da Censura: Controle da Mídia na China”, que trata da manipulação e controle geral de imprensa. Ela escreve regularmente sobre questões sociais e econômicas da China contemporânea.