Cisma sunita-xiita ameaça sequestrar primavera árabe

06/06/2012 03:00 Atualizado: 06/06/2012 03:00

Estudantes egípcios protestam fora do sindicato dos jornalistas no Cairo em 14 de maio, pedindo a libertação de seus colegas que foram presos no início de maio durante confrontos com tropas do exército fora do ministério da defesa no distrito de Abbassiya. (Khaled Desouki/AFP/Getty Images)Em abril deste ano, eu escrevi que a revolta na Síria (a revolta da maioria sunita contra o regime de dominação Alawite) se transformou num campo de batalha entre o eixo sunita liderado pela Turquia e pela Arábia Saudita e o eixo xiita liderado pelo Irã.

Como os eventos continuam a se desdobrar na região, particularmente a monopolização sunita islamista dos processos políticos no novo Egito, Líbia e Tunísia, mais as trocas beligerantes árabe-iranianas na Síria e no Bahrein, o que é cada vez mais visível é que a busca pela democracia liberal da Primavera Árabe está sendo invadida por radicais islâmicos em ambos os lados, arriscando uma grande conflagração entre os dois pilares do Islã.

A disputa entre sunitas (que compõem a grande maioria dos muçulmanos do mundo) e os xiitas não é relacionada à fé, mas é essencialmente política; como o califa pode ser nomeado e a natureza do poder político que os estudiosos da religião devem ter.

Muito parecido com a Europa nos anos de 1500 e 1600, com a teologia entrelaçada com a geopolítica, o conflito foi sustentado por um milênio desde o 7º ao 17º século e presenciou o conflito entre a dinastia xiita safávida na Pérsia e a dinastia sunita otomana na Turquia.

Não foi até a Revolução Islâmica no Irã em 1979 e a guerra Irã-Iraque (1980-1988), culminando com a guerra do Iraque em 2003, que a relação entre o mundo árabe e o Irã foi novamente reformulada no contexto do cisma sunita-xiita.

A emergência de um governo xiita no Iraque pós-Saddam, discriminando seus cidadãos sunitas, e a insurgência sunita que se seguiu aterrorizando a maioria xiita só adicionou combustível ao fogo.

Irmandade Muçulmana

As grandes esperanças que acompanharam o advento da Primavera Árabe de que a revolta da juventude faria uma transição suave para uma democracia liberal estão gradualmente desaparecendo. “A parte jovem do mundo árabe sunita está para recuperar as bases fundamentais de sua revolução.”

Após a Irmandade Muçulmana (IM) no Egito obter uma vitória decisiva na realização das primeiras eleições livres, ela colocou um candidato presidencial e o Legislativo que dominou para elaborar uma lei que está reestruturando o Supremo Tribunal Constitucional de uma forma que dá maior controle ao Parlamento sobre seus assuntos. Sendo o grupo melhor financiado e organizado, as chances prováveis são de que a IM satisfatoriamente monopolize o processo político.

Alguém poderia argumentar, uma IM racional poderia fazer algumas concessões e empregar uma abordagem cautelosa, mas mesmo isso restringe a IM na introdução de reais liberdades políticas por causa de dois fatores principais: 1) a relutância da velha guarda da IM pela democratização para não perderem uma oportunidade histórica de transformar o Egito no Estado islâmico modelo, e 2) a competição com os ultraconservadores salafistas, inesperadamente posicionados em segundo lugar no Parlamento, cujo desafio às credenciais religiosas da IM forçam a IM a falar sobre como e quando implementarão a lei sharia.

Minorias xiitas

Por outro lado, a Primavera Árabe deu às minorias árabes xiitas a oportunidade de se levantarem e exigirem liberdades políticas e direitos civis, que geralmente lhes têm sido negados nas monarquias árabes sunitas dominantes do Golfo.

Por sua parte, o Irã não perde qualquer oportunidade de fomentar a agitação xiita onde ele falhou por três décadas em exportar sua revolução islâmica. Ironicamente, o Irã está fazendo isso num momento em que ele dá suporte total e incondicional à opressão praticada pelos regimes de membros xiitas em crescimento, Síria, Líbano e Iraque à custa dos direitos, e vidas, dos sunitas nestes países.

Desconfiada das implicações, o bastião sunita do Islã, a Arábia Saudita, está construindo alianças com países que compartilham sua visão num eixo sunita para combater o arco xiita, incluindo os Estados do Golfo (na medida em que consideram uma união com o Bahrein), e está ampliando a cooperação plena com o Egito, Jordânia e Turquia.

O dilema, porém, é que esta mesma Arábia Saudita seja vista, em virtude de sua posição como a guardiã do islã sunita, como alguém cuja resposta à Primavera Árabe limitou-se a introdução de reformas apenas modestas.

É relatado que a Arábia Saudita tem se empenhado para dissuadir o monarca do Bahrein de introduzir reformas políticas substanciais. Além disso, e mais importante, isso poderia fornecer a IM no Egito com a ajuda econômica que o país precisa desesperadamente em troca de um compromisso total com o eixo sunita.

Isso pode desencorajar a IM, como muitos estudiosos egípcios atestam, de introduzir verdadeiras reformas democráticas, especialmente num momento em que a Arábia Saudita é suspeita de ser a principal fonte de financiamento dos salafistas, que adotam uma ideologia tipo Wahabi e cujo ódio dos xiitas está atrás apenas de sua repugnância pelos infiéis.

Infelizmente, o resultado líquido é que a Primavera Árabe, que deu origem ao forte campo de islamitas sunitas, está sendo invadida pelo cisma entre sunitas e xiitas, cujo foco é perpetuar sua própria marca de autoridade religiosa sobre os negócios do Estado independente dos desejos das pessoas.

Evitando uma catástrofe

Para evitar um cenário catastrófico em que os dois pilares do Islã se choquem num conflito longo, debilitante e sangrento para realizarem suas ambições políticas, ou seja, aspirações autoritárias de seus governantes, a missão do mundo árabe sunita é dupla.

Primeiro, os governos da Arábia Saudita e Egito, em particular, devem fazer todos os esforços para apresentarem um tipo de governo islâmico que não aliene outras forças políticas em sua respectiva sociedade. Um sistema inclusivo, combinado com projetos de desenvolvimento sustentável consistentes com os ensinamentos islâmicos para reduzir a pobreza, não só evitaria uma eventual explosão contrarrevolucionária, mas também daria um exemplo ao povo iraniano para combater os mulás em Teerã.

Em segundo lugar, a parte jovem no mundo árabe sunita deve recuperar as bases fundamentais de sua revolução. No Egito, o que pode fornecer o microcosmo do que poderia acontecer no resto do mundo árabe, muitos egípcios já começaram a expressar arrependimento por votarem na IM e em outros partidos islâmicos nas últimas eleições parlamentares, e por boas razões.

Os islâmicos não entregaram o que prometeram: uma vida decente para o egípcio médio, enquanto a corrupção e a criminalidade são galopantes. Os jovens devem aprender com seus erros nas últimas eleições, reforçar suas fileiras, promover eleitorados unidos, e embarcar numa campanha maciça para proteger a natureza civil e democrática do novo Egito, envolvendo a grande maioria do povo egípcio.

Somente a pressão constante por parte do público obrigará a IM e seu candidato presidencial, Mohamed Morsi, caso ele vença o segundo turno, a responder às demandas do público por reformas reais e trilhar um caminho do meio combinando o Islã com a democracia.

Não menos importante é o papel da juventude árabe xiita. No Bahrain, Arábia Saudita, e em outras partes dos Estados do Golfo, a juventude não deve se permitir ser explorada pela liderança iraniana desonesta. Em vez disso, devem exigir seus direitos civis e políticos dentro do sistema e não permitir que instigadores de fora minem a segurança nacional e a integridade de seus países natais.

Consistente com os interesses nacionais de Israel está prevenir a emergência de um Irã hegemônico. O primeiro-ministro Netanyahu deve usar o mandato sem precedentes que tem atualmente no Parlamento para assumir uma posição séria pela paz com os palestinos, especialmente agora que o conflito sunita-xiita está se intensificando, ao invés de sua abordagem inútil de esperar para ver.

A paz baseada numa solução de dois Estados não só fortaleceria o eixo sunita (e permitiria alargar a cooperação com os Estados árabes do Golfo e do Norte da África), mas também manteria a identidade nacional de Israel como um Estado judeu e democrático, que está seriamente ameaçado por uma prorrogação ainda maior do conflito israelense-palestino.

É dentro desta plataforma dupla que o mundo árabe sunita pode manter sua coerência e apresentar uma alternativa para suas sociedades através da partilha dos valores do Islã de liberdade, justiça e direitos humanos, que até agora têm sido esmagados pela cega ortodoxia islâmica sunita e xiita, cujo tempo está certamente se esgotando.

Alon Ben-Meir é um professor de relações internacionais do Centro para Assuntos Globais na NYU. Ele leciona cursos de negociação internacional e estudos do Oriente Médio. alon@alonben-meir.com