Apesar de meus melhores esforços, nossos legisladores proibiram toda publicidade voltada às crianças. Mães e pais comemoraram a novidade. E agora que as propagandas infantis sumirão da TV e dos supermercados, o que podemos esperar desse admirável mundo novo? Seguem cinco humildes previsões deste pai que vos escreve.
1. Marcas estabelecidas aumentam a vantagem sobre alternativas
A principal função da publicidade é fazer com que um produto seja conhecido e lembrado.
Mesmo esfregando-os na nossa cara todos os dias, as marcas têm muita dificuldade em conquistar nosso imaginário e nosso inconsciente. As estabelecidas, que já são reconhecidas, têm uma vantagem de largada contra marcas e produtos novos, ainda desconhecidos. Para esses, uma campanha intensa de marketing é um dos únicos meios de ser notado, de garantir um pequeno lugar ao sol em meio à selva densa.
Com a nova lei, quem está entrando tem um desafio muito maior para vencer o anonimato. A lei não abole todo e qualquer marketing: a caixa na loja de brinquedo, o boca-a-boca, a propaganda para jovens que atinge também as aspirações da criança (que quer ascender para aquele universo) — esses e outros continuam existindo. Ela não abole, mas dificulta. Um canal importante de acesso ao consumidor será cortado definitivamente.
2. Aumento de brinquedos licenciados, bonequinhos de filme etc.
Um filme dos Vingadores, mesmo sem qualquer merchandising interno, é ele próprio uma propaganda longa-metragem dos brinquedos dos Vingadores. Idem para um episódio de Bob Esponja ou da Peppa Pig. Se a propaganda tradicional foi banida, essa propaganda indireta continua a existir. Assim, o uso licenciado de personagens famosos deve crescer, em oposição ao de produtos não-relacionados a filmes, com personagens sem existência fora daquele brinquedo. Ao mesmo tempo, agora que a propaganda foi proibida, aumenta o incentivo para se criar filmes e programas baseados em brinquedos preexistentes: mais filmes da Lego, dos Comandos em Ação, da Barbie etc.
Isso reforça uma tendência existente: cada vez mais produtos licenciados. Se na minha infância a Lego vendia navios piratas e bases espaciais genéricas, agora é Lego Piratas do Caribe e Lego Star Wars. E os próprios homenzinhos do Lego viraram personagens de filmes.
Só fiquei sabendo do gracioso Robo Fish por causa da publicidade. Nunca o compramos, mas é um produto simpático e que apostou pesado na publicidade televisiva. Sem nenhum vínculo com personagens famosos, e por não ser muito escandaloso ou chamativo em si mesmo, dificilmente seria visto não fosse a publicidade voltada à criança. Peixinhos de um eventual Nemo 2 terão melhores chances.
3. Gordura, açúcar e sal continuarão campeões da garotada
Ano passado, no lançamento do documentário Muito Além do Peso, assisti a um bate-papo do qual participava o Frei Betto. Lembro de ele dizer que as crianças desejavam junk food por causa da propaganda intensiva. Quem dera! Se assim fosse, a solução da obesidade infantil era trivial: bastava lançar propaganda de brócolis e espinafre que o problema estava resolvido. Por acaso os agricultores do Brasil não querem vender?
No mundo real, o paladar infantil (e, de maneira geral, humano) tem forte preferência por comidas gordurosas e com muito sal ou açúcar, independentemente de qualquer propaganda. Somos o resultado da evolução: no meio ancestral, cada caloria era preciosa e a fome uma ameaça constante. Hoje em dia enfrentamos o desafio contrário: a abundância de calorias fáceis e a escassez de atividade física. É, em comparação com a fome, um bom problema, mas nossos instintos não foram moldados para lidar com ele.
A luta das grandes empresas não é para convencer seu filho a comer gordura, sal ou açúcar. Isso a natureza já faz. A luta é fazer com que ele escolha o produto A e não o B. Se brócolis fosse igualmente desejável, nossos personagens favoritos fariam fila para estampar sua embalagem. Coisa que, aliás, existe, fruto da demanda de pais por comidas mais saudáveis para seus filhos.
Tendo em vista essa demanda (e querendo melhorar a própria imagem), empresas de entretenimento licenciam seus personagens para produtos saudáveis: cenourinhas do Bob Esponja e a tradicional espinafre do Popeye.
Aqui no Brasil, a grande produtora comercial de conteúdo infantil — a Maurício de Souza Produções — faz o mesmo, por exemplo, com as maçãs. Ou fazia. Mesmo com muito esforço, não é fácil. A cenoura do Bob Esponja, por exemplo, saiu do mercado.
É uma luta constante ensinar as crianças a comerem legumes, mesmo quando associados a seus personagens favoritos. Para baixo todo santo ajuda. A Coca-Cola nem faz propaganda para crianças com menos de 12 anos, e me diga: por acaso a molecada não pede refri?
No mais, a guloseima pouco saudável também faz parte da vida. Pobres das nossas crianças, não conhecerão o Kinder Ovo, o brinquedo do McLanche Feliz e — será que a sanha dos legisladores chegará a tanto? — o brinquedo no ovo de Páscoa.
4. Menos revistas, horários, canais e produções para as crianças
Sem publicidade voltada às crianças, publicações, canais de TV e horários de programação dedicados a elas perdem uma importante fonte de financiamento. Com isso, teremos uma diminuição no leque de opções, e aquelas que perdurarem terão menos recursos para investir (comprando novos conteúdos, se atualizando, financiando iniciativas).
Com menor demanda, a produção de conteúdo voltado às crianças também sofrerá. Provavelmente, ela ficará cada vez mais atrelada a investimentos estatais, seguindo critérios de pedagogos, culturólogos e outros profissionais que, por louváveis que sejam, não são experts do gosto infantil.
Por isso que as melhores e mais populares produções infantis vêm justamente do país onde elas são mais comercializadas: os EUA. Disney, Pixar, Warner Bros., Hanna-Barbera, Cartoon Network Studios, Nickelodeon. Todas elas produzem e se desenvolvem num meio bastante livre de produtos licenciados (inclusive alimentícios) e propaganda.
Não me levem a mal. Volta e meia vemos produções europeias adoráveis. No Brasil também, as leis de incentivo e as boas intenções dão origem a produtos plenamente aceitáveis, como Peixonauta. Mas os desenhos que cativam a imaginação infantil e marcam história têm vindo quase sempre de pessoas e empresas que trabalham sob as leis impiedosas do mercado. Em geral são americanos, e quando um europeu entra na jogada é porque adota posturas de marketing e licenciamento tão agressivas quanto as de qualquer corporação dos EUA (como a finlandesa Rovio, criadora do Angry Birds, ou a dinamarquesa Lego).
5. O consumismo infantil seguirá intacto
Os meninos voltam da escola e vão direto brincar com os amigos da vizinhança. Entre seus brinquedos favoritos, pião, carrinho de rolemã e fantoches de pano. Na hora do lanche, todos ansiosos para descobrir novas frutas do cerrado. Nas histórias, personagens do nosso folclore como caipora, curupira e saci. Sem videogame, sem gordura trans, sem armas, sem violência, sem competitividade.
Nenhum de nós criará seus filhos num mundo assim. Sorry.
Com ou sem propaganda, o consumismo infantil permanecerá. A criança tem pouco controle sobre seus desejos. Por isso gasta-se tanto com publicidade para elas. Comidas gordurosas e com muito sal ou muito açúcar atraem muito mais do que legumes. Caubóis e super-heróis atraem mais do que ambientalistas e filósofos. Brinquedos novos, modernos e cheios de apetrechos — e jogos eletrônicos — atraem mais do que os artefatos nostálgicos de gerações passadas.
Ser pai e mãe continuará igual. O efeito da propaganda na vida infantil é quase inócuo. Quem tem filho sabe. O filho vê o produto, às vezes se interessa, às vezes não. Às vezes pede, às vezes faz manha. No geral, espera a propaganda passar se distraindo com algum brinquedo. Às vezes decora a musiquinha sem nem dar bola pro produto. Os pais escolhem o que dar ou não. A influência dos amigos, essa sim é sentida com mais força; ninguém quer ser o único da turma totalmente fora da moda. Crianças continuarão fazendo birra, manha e choro.
As crianças aprendem a lidar com a publicidade. Não dá para abolir tendências biológicas e culturais fortes com uma canetada. O que dá para fazer é ver que tipos de educação e formação ajudam a lidar com os muitos apelos e tentações do mundo — e que também têm seu lado bom: para muitos, algumas doses de prazer mais do que compensam decisões sub-ótimas do ponto de vista da saúde.
Quem cresceu nos anos 1990, como eu, viveu essa realidade de forma muito mais agressiva. A nova lei, mais do que proteger as crianças, protege a consciência de pais ansiosos. E já prevejo: ela não será o bastante.
Joel Pinheiro da Fonseca é mestre em filosofia, editor da revista Dicta&Contradicta e escreve no blog Ad Hominem
Instituto Ludwig von Mises Brasil
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