China, um país, muitas vozes

02/10/2012 12:07 Atualizado: 08/11/2014 13:46

Quatro anos atrás, quando o slogan olímpico de Pequim era ‘Um Mundo, Um Sonho’, audiências globais ficaram maravilhadas com um espetáculo chinês, que começou com uma citação de Confúcio descrevendo o prazer de receber amigos de longe. Agora, os sons provenientes da China que prendem nossa atenção não são tambores espirituosos, mas gritos de raiva sobre acertos de contas.

Vale a pena comparar as ações de rua recentes na China, desencadeadas por uma disputa sobre o controle de manchas de terra conhecidas como ilhas Diaoyu em chinês, ou ilhas Senkaku em japonês, com a gala hipnotizante dos Jogos de Pequim. Os dois espetáculos oferecem um estudo impressionante sobre contrastes e paralelos intrigantes.

Contrastes

Comecemos pelos contrastes.

O espetáculo de 2008, coreografado pelo cineasta Zhang Yimou, foi realizado num único local e, embora cheio de alusões históricas, não incluía acenos às invasões japonesas ou referências diretas ao presidente Mao. Manifestantes de hoje, marchando pelas ruas em toda a China, carregam retratos de Mao e se referem continuamente às atrocidades do passado cometidas por soldados japoneses.

O Partido Comunista, perspicaz em lembrar a população que uma vez ele lutou contra o imperialismo e agora protege a China do assédio estrangeiro, tenta conduzir os protestos anti-Japão. Em alguns casos, especialmente na capital, segundo jornalistas como Louisa Lim do NPR, o governo tem feito mais do que isso: encenando manifestações diretamente e ordenando oficiais, incluindo policiais à paisana, a se juntarem às marchas.

Nem todos os protestos são coreografados. Em algumas cidades, os manifestantes se distanciaram do script oficial, deslizando para denúncias sobre a corrupção, apelos por reforma ou lamentos sobre a China não ter um líder forte como Mao.

O governo considera os protestos úteis, mas também se preocupa que eles escapem do controle.

A resposta internacional sobre os espetáculos de 2008 e 2012 divergiram. Comentadores estrangeiros criticaram elementos de falsificação no anterior, tal como a bela voz de uma menina apresentada que pertencia a outra e uma conformidade monótona típica da Coreia do Norte. Em geral, porém, os críticos encontraram mais aplausos do que reclamações, expressando apreciação pela China apresentada com respeito pela tradição, mas ansiosa por seguir em frente e fazer amigos. As manifestações de rua deste ano, pelo contrário, foram amplamente condenadas.

Comparações

As comparações podem ser mais intrigantes.

Um paralelo diz respeito ao desejo dos líderes chineses de convencer o público doméstico de que os conflitos na sociedade e entre as facções do Partido Comunista Chinês (PCC) são parte do passado. As cerimônias de abertura enfatizaram o tema da harmonia num país onde todos trabalham juntos por objetivos comuns. Os atuais protestos igualmente articulam-se numa postura nós-contra-eles em relação ao Japão, ajudando a desviar a atenção do escândalo de Bo Xilai e suas revelações sobre o lado escuro das rivalidades partidaristas do PCC.

Outra conexão é a tendência de muitos observadores estrangeiros a subestimarem a diversidade da população da China. Quando espetáculos fascinantes ou apelativos capturam a atenção mundial, os comentaristas muitas vezes caem na armadilha de esquecer o quão seletiva é a janela para esses eventos, que apresenta o pensamento de um grande e heterogêneo grupo de indivíduos. Os Jogos de 2008 inspiraram uma série de comentários que exageraram o grau de uniformidade da China. Os protestos anti-Japão estão fazendo o mesmo.

A produção de Zhang em 2008 inspirou muitas generalizações sobre “o chinês”, incluindo alegações de que todos compartilham uma intensa admiração por Confúcio e respeito pela história antiga de seu país. Essa linha de pensamento também ofereceu livros de grande destaque publicados no rastro dos jogos, como “Quando a China governa o mundo” e “Sobre a China” de Henry Kissinger. O sentido transmitido era que, deixando de lado grupos étnicos inquietos como os tibetanos e uigures e alguns dissidentes ousados, os chineses estão na mesma página quando se trata de crenças e do passado. Isto não é assim.

Por exemplo, enquanto muitos chineses admiram Confúcio, muitos preferem sábios taoistas, frequentam templos budistas ou sempre foram ou recentemente se tornaram cristãos. Sim, alguns chineses têm uma atitude reverencial pelo passado distante, mas muitos não se importam com eventos que aconteceram antes de eles nascerem, muito menos há milênios.

Os chineses não estavam na mesma página mesmo sobre as cerimônias de abertura. Muitos gostaram, mas, como Geremie Barmé observou na época em “The China Beat”, alguns intelectuais rotularam seu tratamento do passado da China como decepcionante: Um deles lamentou esperar um “banquete” de deliciosas porções históricas, apenas para obter uma “tigela-quente” misturada e confusa. Escrevendo no The Diplomat, Susan Brownell salienta que na China, como no Ocidente, a semelhança de um show rígido com um espetáculo estatal norte-coreano se tornou um problema.

Generalizações sobre “o povo chinês” tendem a gerar mais ibope do que merecem. Digno de preocupação, logo que a recente explosão anti-Japão começou, foi um comentário passageiro num artigo de opinião num outrora admirável New York Times do cientista político Peter Gries, que se referiu a “maioria dos chineses” julgando que “os japoneses são ‘demônios’”.

Sim, o caractere de “demônio” está incorporado num termo para os japoneses por vezes usado na China e a educação patriótica não mede esforços para manter viva a memória da violação de Nanjing e outros atos históricos da agressão japonesa. No entanto, é um grande salto concluir que a maioria dos chineses vê todos os japoneses como menos que humanos. Muitos chineses são capazes de ficarem horrorizados com o que os soldados japoneses fizeram uma vez na China sem assumir que todos os japoneses são diabólicos.

Os protestos recentes envolveram apenas uma fração da população de qualquer cidade chinesa e as pessoas se juntaram as marchas para razões variadas, ódio visceral, apenas fazendo seu trabalho, raiva específica sobre as ações de Tóquio a respeito das ilhas em disputa ou ânsia de participar num protesto de qualquer tipo.

Alguns chineses são críticos dos protestos anti-Japão. O romancista, piloto de corrida e blogueiro Han Han claramente é. Ele publicou um ensaio poderoso em 2010 sobre o vazio dos orquestrados protestos anti-Japão daquele ano e acabou de escrever uma sequência zombando da noção de que esmagar Toyotas prova o patriotismo de uma pessoa. Cada uma de suas mensagens é lida por cerca de um milhão de pessoas e ele não é o único escritor popular satirizando os protestos.

Um artigo recente de Helen Gao no Atlantic.com descreve uma pesquisa online esclarecedora. Leitores chineses foram perguntados neste verão que cidadania prefeririam para uma criança nascida nas ilhas disputadas. Os comentários sobre a pesquisa sugerem que os entrevistados pesaram o patriotismo contra o desejo de que seus filhos desfrutassem a liberdade de expressão, ar limpo e alimentos seguros. Enquanto muitos responderam que gostariam que essa criança imaginária fosse um cidadão da República Popular da China, mais prefeririam que sua prole crescesse em Taiwan ou no Japão.

Podemos aprender sobre a China usando óculos. Sejam encenados ou simplesmente sancionados pelo governo, eles oferecem insights sobre o pensamento dos líderes. Se participantes optarem por aderir, temos pistas sobre suas crenças e paixões. Igualmente revelador, no entanto, são os debates que ocorrem nos dormitórios e casas de chá, nas esquinas e online, que são de grande alcance e minam a noção, promulgada pelo Partido Comunista e por alguns comentaristas estrangeiros, que quase todos na China compartilham uma visão de mundo unificada.

Jeffrey Wasserstrom é o autor de “China in the 21st Century: What Everyone Needs to Know” e coeditor de “Chinese Characters: Profiles of Fast-Changing Lives in a Fast-Changing Land”. Com a permissão de YaleGlobal Online. Copyright © 2012, Centro Yale para o Estudo da Globalização da Universidade de Yale.