China em cinquenta segundos

25/11/2013 09:49 Atualizado: 20/04/2014 21:06

A vez da China surgiu novamente em 22 de outubro de 2013 no Grupo de Trabalho da Revisão Periódica Universal das Nações Unidas, em Genebra. Desde 2006, uma vez a cada quatro anos, cada país é examinado minuciosamente. A China foi analisada pela primeira vez em fevereiro de 2009. Outubro de 2013 foi a vez da China novamente.

A revisão para cada Estado é limitada a três horas. O Estado em análise inicia; outros Estados comentam; o Estado sendo revisto responde; oralmente durante as três horas e por escrito três dias depois. As organizações não-governamentais podem apresentar observações escritas, mas não apresentações orais.

Durante as três horas, o Estado em análise tem uma hora para uma declaração de abertura e responde a questionamentos o resto do tempo, tempo este alocado para os Estados que desejam fazer comentários.

Originalmente, Estados comentadores tinham reservados dois minutos cada. Isso significava que apenas sessenta Estados, no máximo, poderiam caber nas duas horas restantes.

Diplomatas em Genebra de Estados com grosseiras violações, para isolar seus governos de crítica, tornaram-se mestres em jogar com o sistema de direitos humanos da ONU, de modo que eles falam sobre qualquer coisa exceto direitos humanos. Eles descobriram que o caminho para bloquear a Revisão Periódica Universal é congestionar as duas horas com seus amigos.

Este jogo leva a uma corrida pelo microfone. Diplomatas de países sérios sobre os direitos humanos têm de entrar na fila nas primeiras horas da manhã para entrarem na lista de oradores que abordarão os Estados com grosseiras violações.

Este congestionamento matinal se tornou demais para todos e as regras foram alteradas para alocar tempo para todos os Estados que quisessem questionar qualquer país, dividiu-se então as duas horas disponíveis entre eles. Quando se trata de frustrar os direitos humanos, os engenhosos Estados grosseiros violadores dos direitos descobriram uma maneira de minar este sistema também. Seus representantes alinham para falar tantos Estados mancomunados quanto possível, reduzindo assim o tempo disponível para cada Estado seriamente preocupado com o respeito aos direitos humanos.

Para a revisão cubana mais recente em maio de 2013, a delegação cubana conseguiu alinhar tantos oradores que o tempo disponível para cada um foi de 38 segundos. A China, embora deixe Cuba muito atrás na violação dos direitos humanos, não tem sido tão focada como Cuba em minar o sistema de direitos humanos das Nações Unidas. Assim, para a China, o número de Estados que quis falar, 137, significou que o tempo disponível para cada um foi de 50 segundos.

Causas fundamentais

A China é um país vasto, com uma enorme variedade de problemas de direitos humanos. O que se poderia dizer de útil em 50 segundos? Em teoria, na era dos 40 caracteres do Twitter e dos noticiários de TV de 10 segundos, poderia se pensar que os Estados estariam acostumados a dizer bastante coisa com restrições estreitas. No entanto, este não foi o caso.

Quando os Estados falaram sobre o registro chinês de direitos humanos na manhã do dia 22 de outubro, representantes dos Estados com pobres históricos de direitos humanos, bem como Estados satisfatórios, por vezes depois de uma boa dose de torcer de braço e com uma profusão de ducha fria do Estado chinês sobre eles, propositalmente se distanciaram da realidade. Estes representantes elogiaram a China por suas “notáveis” conquistas de direitos humanos e instaram a China a prosseguir seus esforços “exemplares”.

Os Estados baseados na realidade, durante o planejamento de suas declarações, debateram se deveriam levantar algumas questões preocupantes ou se deviam percorrer o máximo possível a longa lista de problemas de direitos humanos apresentada pela China. A questão, no entanto, era uma árvore ou muitas. Falar sobre a floresta parecia estar além de todos eles. A coerência ou a unidade temática esteve ausente de todas as declarações feitas pelos Estados defensores dos direitos humanos.

Um foco sobre o abuso dos direitos humanos deve ser teleológico. Ele não deve se concentrar apenas em fenômenos específicos. Ele deve ir atrás das causas. Abusos específicos decorrem de problemas muito maiores. Arranque o abuso em suas raízes e seus ramos murcharão. Quebre um galho e ele simplesmente voltará a crescer.

Na China, a causa das violações de direitos humanos é o regime do Partido Comunista. Mesmo que se ponha de lado a ideologia desumana do comunismo chinês, o próprio fato de um Estado de partido único viola os direitos humanos básicos. O respeito pelos direitos humanos significa eleições livres e democráticas.

A declaração oficial do governo chinês ao Grupo de Trabalho da Revisão Periódica Universal teve o descaramento de afirmar que houve eleições livres e democráticas em toda a China em nível de aldeia. Isso levanta a questão óbvia, o que acontece no nível municipal, provincial ou nacional. Nenhum país, nem um, levantou essa questão.

Falun Gong

A estratégia de direitos humanos deve ser centrada nas vítimas e não no agressor. Essa estratégia se concentrará primeiramente na pior vitimização. Embora todas as vítimas de tortura sofram igualmente e todos aqueles arbitrariamente mortos estejam igualmente mortos, números importam. Em termos de números, o maior conjunto de vítimas, sem sombra de dúvida, é o Falun Gong.

O Partido Comunista decidiu em 1999 exterminar o Falun Gong, porque sua popularidade fez os líderes do Partido temerosos sobre sua supremacia ideológica. O Falun Gong é um conjunto de exercícios com uma base espiritual. Ele é uma combinação e atualização de exercícios de meditação e espiritualidade tradicionais chineses – qigong, budismo e taoísmo.

O Falun Gong não tem interesses políticos. Não é uma organização que requer adesão. Ele não tem liderança que não seja espiritual e não tem escritórios ou finanças. Seus textos espirituais não têm conteúdo político ou agenda.

O ataque do Partido Comunista ao Falun Gong não diz nada sobre o Falun Gong, mas muito sobre o Partido Comunista Chinês – seu domínio instável sobre os corações e mentes do povo chinês, sua necessidade de inventar inimigos imaginários para justificar sua própria permanência no poder, seu medo de movimentos populares, seu repúdio a espiritualidade e sua rejeição as tradições chinesas.

A vitimização do Falun Gong supera em muito outras vitimizações. Em termos de tortura, que é representativo de outras formas de vitimização, o múltiplo, segundo Manfred Nowak, o ex-relator da ONU sobre a Tortura, é de seis para um. Há seis vezes mais vítimas de tortura do Falun Gong do que vítimas de qualquer outro grupo específico. Em termos de volume da tragédia infligida, nada na China chega perto da tragédia do Falun Gong.

É uma simples questão identificar essa diferença de vitimização observando a forma como o Partido Comunista Chinês fala sobre o Falun Gong. Enquanto o Partido Comunista tem todo o tipo de vocabulário ridículo para uma ampla variedade de inocentes, o pior é dedicado ao Falun Gong. Os budistas tibetanos e uigures muçulmanos, por exemplo, são chamados de separatistas. Só o Falun Gong é chamado de “culto maligno”.

Mortos por órgãos

Escolher o grupo com o maior número de vítimas na China é fácil, assim como identificar a pior vitimização. Torturas, desaparecimentos e detenções arbitrárias são todos horríveis. No entanto, o pior de tudo certamente é matar inocentes pelos seus órgãos e vendê-los a turistas de transplante ou chineses ricos, um abuso infligido ao Falun Gong desde 2001 e que já soma dezenas de milhares.

A vitimização do Falun Gong paira sobre o cenário dos direitos humanos na China. No entanto, na Revisão Periódica Universal, apenas um Estado mencionou o Falun Gong – o Canadá. Mesmo o Canadá se referiu ao Falun Gong apenas como parte da lista de vítimas da repressão religiosa.

A China rejeita a evidência de que prisioneiros do Falun Gong sejam mortos por seus órgãos, mas reconhece que quase todos os seus órgãos para transplantes vêm de prisioneiros. A China promete eventualmente parar o uso de órgãos de prisioneiros.

A disputa com a China não é se os órgãos para transplantes são provenientes de prisioneiros, mas somente de quais prisioneiros. A posição do governo chinês é que suas fontes de órgãos de prisioneiros são todos prisioneiros condenados à morte.

O Falun Gong não está condenado à morte. Frequentemente, eles são condenados por até três anos pelo delito de perturbar a ordem social. Na maioria das vezes, eles são condenados sem qualquer razão e arbitrariamente detidos até que renunciem a sua fé.

Usar órgãos de prisioneiros condenados à morte viola os padrões éticos da profissão de transplante, as políticas oficiais da Sociedade de Transplantes e da Associação Médica Mundial. O governo da China afirma que os prisioneiros condenados à morte consentem na utilização de seus órgãos para transplante.

Profissionais de transplante afirmam o óbvio, que o consentimento autônomo é impossível num ambiente prisional, que é inerentemente coercitivo. O uso de órgãos de prisioneiros, não importa que tipo de prisioneiros, ocorre invariavelmente sem consentimento.

Onde quer que alguém se posicione na disputa sobre se prisioneiros chineses são as fontes de órgãos, as normas internacionais determinam que a China é responsável pela fonte dos órgãos. Não é necessária muita elucubração para perceber que este abastecimento de órgãos para transplante é abusivo. Os Princípios Orientadores sobre Transplante de Órgãos Humanos da Organização Mundial de Saúde (OMS) asseveram os princípios de transparência, responsabilidade e rastreabilidade.

A China não respeita estes princípios orientadores. Pelo contrário, quando evidências do assassinato do Falun Gong por seus órgãos se acumulavam, a China se empenhou em aumentar o encobrimento, removendo o acesso aos dados que websites do governo já haviam disponibilizado e negando declarações feitas anteriormente por seus próprios funcionários.

Tendo em vista o fato de que o uso de órgãos de prisioneiros viola as normas internacionais e a China se comprometeu a acabar com isso, pode-se pensar que os Estados na Revisão Periódica Universal sobre a China, não importa o quão tímidos, mencionariam o problema. No entanto, nenhum Estado fez isso.

O Comitê contra a Tortura, estabelecido sob a Convenção contra a Tortura em dezembro de 2008, havia pedido à China que cooperasse com uma investigação independente sobre o fornecimento de órgãos para transplantes e que julgasse os envolvidos no abuso de transplante de órgãos. Quatro anos atrás, na Revisão Periódica Universal de 2009 sobre a China, o Canadá exortou a China a respeitar essas recomendações. Desta vez, nenhum país fez isso.

Diálogo

Estados que respeitam os direitos e que omitiram menção à perseguição ao Falun Gong e ao abuso de transplante de órgãos certamente conhecem e se preocupam com estas violações, seja qual for sua posição sobre elas. O problema é a audiência visada por estes Estados.

Para os Estados aduladores, a audiência é o criminoso, o regime chinês. Para os Estados que promovem os direitos, a audiência principal deve ser em primeiro lugar as vítimas, segundo o público e apenas em último lugar o autor do crime. No entanto, muitos Estados que promovem os direitos consideraram estrategicamente que era melhor defender uma reforma que a China estaria propensa a aceitar do que uma que ela rejeitaria.

Sessões de Grupo de Trabalho são chamadas de diálogo interativo. No entanto, a reação dos representantes da China a uma sequência de sérias recomendações de direitos humanos foi a rejeição, o contra-ataque e a ofuscação.

Pode-se ter uma noção da atitude oficial chinesa sobre os direitos humanos por esta declaração feita por um porta-voz do governo chinês durante o diálogo interativo:

“A situação de direitos humanos de um país não pode ser dissociada de sua realidade. Outros não devem procurar desorientar o público. Alguns países em seus comentários equipararam ações de segurança para proteger os civis com limpeza étnica e chamaram certos criminosos na China de defensores dos direitos humanos. Procedimentos judiciais normais foram chamados de perseguição política. Este é um caso típico de politização dos direitos humanos. Nós nos sentimos muito tristes com isso. As chamadas sugestões são inaceitáveis para nós. Devo salientar que a única pessoa que sabe se os sapatos podem servir os pés da pessoa é a pessoa que usa os sapatos. A melhor pessoa para saber a situação de direitos humanos na China é uma pessoa chinesa.”

No entanto, qualquer pessoa chinesa na China que se atreve a dizer algo sobre os direitos humanos é espancada, torturada, detida arbitrariamente e desaparecida. Seria de se esperar que a Revisão Periódica Universal desse as boas-vindas a oportunidade de ter os chineses na China fazendo observações sobre direitos humanos. Mas o regime chinês, lamentavelmente, não permite isso.

Na sessão de 22 de outubro, vários Estados dançaram em torno da questão do assassinato do Falun Gong por seus órgãos. Muitos Estados pediram a publicação de estatísticas de pena de morte.

A ligação entre as estatísticas de pena de morte e o abuso de transplante de órgãos foi explicitada pelo relator da ONU sobre a Tortura, pelo relator da ONU sobre a Intolerância Religiosa e pelo Comitê das Nações Unidas sobre a Tortura. Todos pediram a China que explicasse a discrepância entre o seu volume de transplantes e o seu número de fontes de órgãos. Embora a China não publique estatísticas de pena de morte, as estimativas não oficiais fornecem números de pena de morte que não chegam nem perto de explicar o volume de transplantes que a China diz ser proveniente de prisioneiros de pena de morte.

Muitos Estados também pediram um fim à detenção arbitrária em geral. Mesmo que nenhum Estado tenha dito isto, as prisões, os centros de lavagem cerebral e o sistema de campos de concentração para reeducação pelo trabalho forçado são grandes bancos de órgãos para extração forçada e povoados principalmente por adeptos do Falun Gong.

Houve também um apelo de muitos Estados pelo respeito à liberdade de religião e pelo fim da perseguição aos defensores dos direitos humanos. Mas isto foram generalidades. O nome de Gao Zhisheng, um advogado de direitos humanos chinês perseguido por ser ousado o suficiente a se opor à morte do Falun Gong por seus órgãos, não foi mencionado.

Cinquenta segundos

Assim, os 50 segundos que cada Estado teve foram mal utilizados. Realisticamente, 50 segundos são cerca de 170 palavras. Como alguém pode combinar a maior sequência de golpes num contexto deste? Isto é o que eu sugiro.

“Sr. Presidente:

Queremos destacar um assunto: a evidência convincente de que o Falun Gong está sendo morto por seus órgãos. O governo da China nega que isso esteja ocorrendo, mas admite que a maioria dos órgãos para transplantes venha de prisioneiros e diz que estes prisioneiros são todos condenados à morte. No entanto, a China não apresenta estatísticas de pena de morte; embora deva fazê-lo.

A China deve respeitar os princípios da Organização Mundial de Saúde de transparência, responsabilidade e rastreabilidade. O governo deve cooperar com uma investigação independente sobre a fonte de seus órgãos para transplantes.

O assassinato do Falun Gong por seus órgãos não poderia ocorrer sem a existência da detenção arbitrária, que respalda principalmente a perseguição ao Falun Gong; a intolerância religiosa; o regime de partido único e a repressão dos defensores dos direitos humanos, como Gao Zhisheng, que afirmam princípios diversos. Apelamos a China que acabe com as detenções arbitrárias, respeite a liberdade de crença, realize eleições democráticas, livres e justas em todos os níveis de governo e que pare com a repressão dos defensores dos direitos humanos.

Obrigado, Sr. Presidente.”

David Matas é advogado internacional de direitos humanos e vive em Winnipeg, Manitoba, Canadá. Ele assistiu em pessoa todos os 137 discursos