China: Como o totalitarismo resultou na extração forçada de órgãos

05/11/2014 13:35 Atualizado: 05/11/2014 13:38

A dignidade humana é inviolável. Ela é inseparável do ser humano. Como a dignidade humana é incomparavelmente preciosa muitas vezes se torna claro apenas após perdê-la. Se alguém declara com intenção sublime que a dignidade humana é inviolável, é evidentemente chocante quando não apenas a dignidade humana mas também o corpo físico são violados.

Nós já estamos acostumados a ouvir sobre as violações dos direitos humanos. Mas o que está por trás dessa palavra de ordem é muito mais do que apenas um termo legal. Ela descreve a desumanização das pessoas perseguidas. Devido à violação dos direitos fundamentais do ser humano, não é o caso de que não só a dignidade do perseguido é violada mas também a do espectador? Como ainda podemos valorizar nossa própria dignidade humana se não fazemos nada e permitimos que esta dignidade – uma característica inerentemente humana – seja violada em outras pessoas?

Desumanização dos prisioneiros de consciência na China

Hoje, vemos as consequências da desumanização e condenação de dissidentes e a perda da dignidade inviolável do ser humano no exemplo dos praticantes do Falun Gong na China. O grau em que a dignidade humana é gravemente violada na China pode ser testemunhado no fato da enorme coragem que é necessária para escrever sobre um assunto tabu como a perseguição ao Falun Gong.

A censura imposta na China – e a censura autoimposta fora da China – tem abafado qualquer cobertura deste problema desde o início. Mas nós devemos isso a nossa dignidade humana, não aceitar a pressão dessa autocensura. A dignidade humana é universal e não pode ser limitada por fronteiras nacionais nem pela censura.

Hoje, a prática de meditação do Falun Gong oferece um estudo de caso dramático sobre o estado da dignidade humana na China. Nos últimos 22 anos, o Falun Gong tem experimentado uma montanha-russa de extremos, desde a maior popularidade em toda a China até uma brutal perseguição nacional sem precedentes. Como nenhum outro exemplo hoje, é, portanto, adequado descrever em que pode resultar a desumanização de dissidentes.

A história do Falun Gong pode ser resumida assim: Após sua introdução em 1992, a disciplina espiritual do Falun Gong ganhou vários prêmios por suas contribuições à sociedade e se popularizou rapidamente. O Ministério dos Esportes da China promoveu o Falun Gong na TV e elogiou seus efeitos positivos sobre a saúde. Em 1999, cerca de 70 a 100 milhões de chineses praticavam o Falun Gong.

Entre a população chinesa os praticantes do Falun Gong eram conhecidos por serem simpáticos e prestativos. Como o Falun Gong é uma prática de autocultivo em que todos prestam atenção em melhorar a si mesmo e cultivar seu eu interior, por natureza, os praticantes do Falun Gong não se envolvem em discussões políticas.

Em 20 de julho de 1999, uma perseguição sem precedentes começou

Em julho de 1999, a situação desta aclamada prática de autocultivo mudou do dia para a noite e o Falun Gong foi proibido e perseguido sem motivo, inclusive em violação à Constituição chinesa. Por 15 anos, os praticantes do Falun Gong têm sido perseguidos na China e, de uma maneira ou de outra maneira, também fora da China, por meio das embaixadas chinesas e associações de estudantes chineses em universidades estrangeiras.

Assim, de um lado, a perseguição ao Falun Gong é composta de lavagem cerebral, campos de trabalho forçado, prisão, tortura e extração forçada de órgãos e, por outro lado, de propaganda e censura da mídia, e mentiras que têm sido adotadas e repetidas pela mídia ocidental, em parte por ignorância e em parte por autocensura, a fim de não comprometer futuros vistos de jornalistas para a China. O tema do Falun Gong é declarado tabu e reportagens da mídia ocidental apenas escassamente mencionam o Falun Gong ou não dizem qualquer coisa. A perseguição ao Falun Gong não está apenas incorporada numa parte central da política interna e externa chinesa, mas também devora uma enorme porção do orçamento do Estado chinês.

O tema da violação dos direitos humanos é também evidente na área jurídica. Na China, advogados são presos se não seguirem as regras não escritas das audiências judiciais encenadas – quando o veredito já foi decidido antes de o tribunal ouvir o caso – ou defenderem aqueles que foram condenados ao ostracismo pelo sistema totalitário chinês. O estado de direito está fora de questão. O que importa é a política do Partido Comunista Chinês (PCC). Aqueles que não se alinham com o PCC são rotulados de “inimigos do Estado”. A desumanização ocorre no tribunal.

No caso do Falun Gong, isso significa que os campos de trabalho forçado, centros de lavagem cerebral e a tortura generalizada se tornaram a norma desde 1999. Assim, desde que a perseguição ao Falun Gong fez suas primeiras vítimas de tortura, sob as ordens do então líder chinês Jiang Zemin, elas foram declaradas “suicídios”. As demandas do sistema de partido único distorcem e pervertem a realidade. A realidade na China de hoje está desconectada da verdadeira realidade. A realidade na China é aquela que o Partido Comunista define, e esta se estende desde o guarda-livros numa pequena empresa, passando pela mídia, até os tribunais.

Mas, neste caso, a realidade fora da China é diferente da realidade dentro da China, e isso também se aplica ao conceito de dignidade humana. Na China de hoje, a dignidade humana é um conceito vazio e para muitos chineses nem sempre está claro o que o Ocidente entende como ética, moralidade e dignidade humana. Mas se o respeito pela dignidade humana não faz parte da realidade na China, então temos de perguntar: Onde isso acabará?

Um olhar na área médica revela o seguinte: tradicionalmente os chineses são relutantes em doar órgãos para transplante. Isso está profundamente enraizado na população. Portanto, há uma grande deficiência de dadores de órgãos para transplante na China. A fim de providenciar órgãos para transplantes, uma lei em 1984 permitiu que os órgãos pudessem ser adquiridos de prisioneiros executados. Tendo em mente essa lei, foi apenas um pequeno passo avançar da extração de órgãos de prisioneiros executados para a extração de órgãos de prisioneiros de consciência, como uigures, tibetanos e praticantes do Falun Gong.

Um banco de órgão secreto

Após a perseguição ao Falun Gong começar em 1999, a prática da extração forçada de órgãos de prisioneiros executados foi estendida para incluir os praticantes do Falun Gong. Milhões de praticantes do Falun Gong perseguidos foram expostos ao risco de serem catalogados e incluídos num banco de órgãos secreto. Órgãos foram removidos sob demanda e em curto prazo, sem o consentimento dos detidos.

Enquanto estavam encarcerados em campos de trabalho forçado e campos de reeducação, eles eram sistematicamente submetidos a exames físicos. Exames caros de sangue e urina, ultrassonografias e radiografias foram rotineiramente realizados em praticantes do Falun Gong detidos. Se alguém investe milhões de dólares em diagnósticos médicos não solicitados para examinar trabalhadores de campo de trabalho forçado e prisioneiros de consciência durante 15 anos, então emerge a questão de como esses custos serão amortizados.

Em vez de serem torturados até a morte e ter seus corpos desperdiçados, os praticantes do Falun Gong se tornaram uma fonte lucrativa para o transplante de órgãos. A partir de 1999, os hospitais chineses começaram a anunciar transplantes de órgãos na internet. Isso ocorreu num momento em que a China não tinha sequer um programa público de doação de órgãos. O comércio floresceu. Os produtos: órgãos; o tempo de entrega: 1-4 semanas; o preço: um rim por US$ 60 mil, um fígado por US$ 100 mil…

No outono de 2013, repórteres da revista alemã “Der Spiegel” fingiram querer comprar um rim por meio de um intermediário de órgãos na internet chinesa. O preço foi de cerca de US$ 350 mil por um rim da China.

De 1999 a 2006, o número de centros de transplante na China aumentou de 150 para 600 e alguém poderia se perguntar em que se funda a confiança da China no fornecimento contínuo de órgãos no longo prazo quando não há sequer um programa público de doação de órgão.

Estranhamente, ao mesmo tempo em que o número de execuções de prisioneiros no corredor da morte diminuiu, os números de transplantes na China aumentaram drasticamente a partir de 1999: de menos de 3 mil transplantes anuais antes de 1999 até declaradamente 20 mil em 2005. Alguém poderia perguntar: De onde vêm os órgãos transplantados?

Por trás destes números abstratos esconde-se uma realidade cruel: na China, os prisioneiros de consciência são mortos sob demanda para abastecer o comércio de transplante de órgãos – sem ter recebido uma sentença de morte, sem ter cometido qualquer crime, sem ter dado consentimento voluntário e livre para a doação de órgãos. A triste verdade é que os médicos que participam deste esquema na China transformaram a medicina de transplantes num absurdo: não se pode curar pacientes que requerem transplante sem se matar outras pessoas saudáveis por seus órgãos.

A dignidade humana é inviolável e indivisível: Por não devemos ficar parados e assistir quando outras pessoas estão sendo privadas de seus direitos humanos?

Um olhar mais atento no Falun Gong nos diz o quanto a perseguição ao Falun Gong também se relaciona diretamente com todos nós. Se nos perguntarmos o que tudo isso tem a ver conosco, descobriremos: muito.

O Falun Gong é uma prática de autocultivo que ensina princípios fundamentais. No caso do Falun Gong esses princípios são: verdade, compaixão e tolerância. Provavelmente uma pessoa concordará que estes três princípios são louváveis e desejáveis em todo o mundo. E que são mais ou menos universais.

No entanto, inexplicavelmente, o Falun Gong é agora perseguido na China justamente por causa desses bons valores. A perseguição ao Falun Gong não é dirigida apenas contra o Falun Gong, a perseguição ao Falun Gong também é dirigida contra a bondade na humanidade.

A verdade é certamente o inimigo público número 1 na China, especialmente quando um país é fortemente governado pela corrupção, quando o roubo intelectual e a pirataria são comuns, quando a liberdade de comunicação e mídia se degenerou em medo, autocensura e subjugação.

A compaixão é certamente também inimigo público número 1 na China, se a ideia da luta de classes ainda está presente na sociedade e, se por trás de palavras diplomáticas harmoniosas, a população está em sintonia com uma política externa e interna de punho de ferro.

A tolerância é certamente também inimigo público número 1 na China, se as vozes de dissidentes não são toleradas e se qualquer desvio das diretivas do Partido Comunista é respondido com violência brutal e intransigência.

Em outras palavras, a perseguição infundada e irracional ao Falun Gong e a seus três princípios guias é também uma cruzada contra a bondade da humanidade, contra o fundamento da dignidade humana e contra os valores que são os pilares fundamentais da humanidade.

Se o livre exercício da verdade, da compaixão e da tolerância é respondido com tortura e em casos extremos com a extração forçada de órgãos de prisioneiros vivos, não estão também em risco as pessoas que não praticam o Falun Gong mas que admiram a honestidade, a bondade e a tolerância? Se o sistema de partido único da China está em constante luta contra os três inimigos No. 1 do Estado, quando nossa dignidade humana fora da China será violada da mesma forma como é atualmente o caso dos praticantes do Falun Gong? A resposta é chocante: isso já está ocorrendo.

De uma perspectiva humanitária não se pode limitar a dignidade humana com fronteiras nacionais. A dignidade humana é universal. A extração forçada de órgãos de prisioneiros vivos na China cruzou as linhas da humanidade. O regime de Pequim dá aos prisioneiros de consciência a escolha de morrer física ou espiritualmente. Esta escolha é desumana. Todos devem refletir por um momento e se perguntar como responderiam a esta escolha se tivessem de enfrentá-la. Observar passivamente como outras pessoas foram submetidas a esta escolha desumana não é outra coisa senão ignorar e abandonar a própria dignidade humana.

Nós criamos nossa realidade a cada dia. Se prezamos nossa dignidade e direitos humanos básicos, então temos que cuidar deles todos os dias, caso contrário, pode perdê-los silenciosamente como uma planta sem água perde sua vida.

Os praticantes do Falun Gong têm sido cuidadosos todos os dias por 15 anos. Nos últimos 15 anos, os praticantes do Falun Gong têm feito mais pela dignidade do ser humano, pela humanidade do que o regime de partido único em Pequim jamais fez. Talvez caiba a nós agora nos tornarmos ativos e nos envolvermos na bondade da humanidade. Devemos isso a nós mesmos.

Com a extração forçada de órgãos de prisioneiros de consciência vivos a linha foi cruzada. Agora é o momento de defendermos a dignidade inviolável do ser humano.

Dr. Torsten Trey é fundador e diretor-executivo dos ‘Médicos Contra a Extração Forçada de Órgãos’ (DAFOH), um grupo comprometido em acabar com a extração forçada de órgãos e em promover padrões éticos na medicina.

*Imagem de um “transplante” via Shutterstock