Grandes grifes hasteiam a bandeira da responsabilidade social, do respeito, do comportamento ético e do compromisso com a verdade. Mascara-se, no entanto, uma realidade cruel e pungente: uma produção barata e degradante, acobertando o trabalho escravo.
Se o assunto é a transformação da realidade social, a dissimulação é a tônica dentre os detentores do poder econômico. O discurso é o mesmo e já não comove: prega-se o respeito ao meio ambiente, à concorrência leal e às leis trabalhistas. A sustentabilidade do desenvolvimento sob os aspectos ambiental, econômico e humano tornou-se lugar-comum de uso proveitoso, sem o qual não se atinge a desejável respeitabilidade da opinião pública. São palavras ao vento com interesses econômicos acaçapados.
É assim na indústria da moda. Grandes grifes hasteiam a bandeira da responsabilidade social, do respeito, do comportamento ético e do compromisso com a verdade. Criam códigos de conduta que contemplam missões, valores e princípios dignos de um Estado Democrático de Direito e, com isso, vinculam sua imagem à probidade, ao decoro e aos direitos humanos. Contam com público fiel à marca e ao estilo de vida que lhe corresponde.
Mascara-se, no entanto, uma realidade cruel e pungente: uma produção barata e degradante. Pulveriza-se intensamente a cadeia produtiva: contrata-se e subcontrata-se, dissipando-se os riscos da atividade. Negocia-se a prestação dos serviços sob o rótulo de relações estritamente comerciais. Paga-se pouco, muito pouco: o limite necessário para garantir o lucro máximo.
A consequência não é outra, senão uma tragédia social. Milhares de costureiros, brasileiros e imigrantes, homens e mulheres, socialmente vulneráveis, submetidos a condições de trabalho ofensivas à dignidade. Espremidas em um pequeno imóvel localizado na zona central da cidade de São Paulo, as famílias residem em habitações coletivas e trabalham diuturnamente em manifesta degradação, expostas a riscos iminentes de incêndio e eletrocussão.
À geração de riquezas econômicas não corresponde correlata inserção social da pessoa trabalhadora, função primária da labuta humana. Trata-se de trabalho escravo na cadeia das grifes de grande renome e indubitável solidez econômica. Uma escravidão estrutural, pautada na degradação humana. Uma escravidão perspicaz, cuja vítima desconhece seu algoz. Uma escravidão social pós-moderna, onde os grilhões não estão visíveis aos olhos da sociedade. Uma escravidão impune.
Trabalho escravo contemporâneo
Não raro, os escravagistas pós-modernos, que ditam as regras de um mercado nefasto, saem ilesos nas ações judiciais que lhes são movidas. Mais das vezes, o Judiciário afasta a responsabilidade jurídica daqueles que contribuem diretamente para o ilícito, seja por desconhecer o conceito contemporâneo de trabalho escravo, seja por aceitar as escusas defensivas das grandes grifes, que possuem notória capacidade de mobilização político-jurídica em prol dos seus interesses e invariavelmente alegam desconhecimento do fato. Seja, ainda, por pura ideologia.
Foi o que ocorreu em recente decisão do TRT da 2ª Região (São Paulo/SP) que, em sede de mandado de segurança, utilizado como via de recorribilidade interlocutória, já prejulgou o caso posto e afastou a responsabilidade da grande grife. Os fundamentos não são novos: os trabalhadores resgatados possuíam “empresa regularmente constituída”; inexistência “de qualquer forma de intimidação visando restringir a liberdade de locomoção”; e, mais grave, nas condições a que estavam submetidas as vítimas, “vive grande parte da população brasileira”. Como se vê, a decisão mostra-se conservadora sob os aspectos jurídico e social.
A primazia da realidade cedeu à roupagem do formalismo e ao tecnicismo da teoria geral dos contratos mercantis. Desconsiderou-se a robustez das provas colhidas na diligência promovida pelos órgãos públicos fiscalizadores, que não deixava margem a dúvidas quanto ao comando e logística traçados pela grife, beneficiária direta da mão de obra das vítimas que produziam exclusivamente para a marca.
Dignidade humana
Olvidou-se o emérito julgador que o bem jurídico tutelado pelo trabalho escravo se transmudou na sua acepção contemporânea. Atualmente, não mais se exige a presença de instrumentos restritivos da liberdade, como práticas usuais de outrora, mas condições aviltantes à dignidade da pessoa trabalhadora provenientes da disparidade socioeconômica entre vítima e escravocrata moderno. A dignidade humana passou a ser, portanto, o bem jurídico protegido pelo crime de redução à condição análoga à de escravo, podendo ser atingida – inclusive, e não apenas – pela restrição da liberdade de ir e vir.
O último fundamento da decisão talvez seja o mais preocupante, pois traz consigo um preconceito ínsito. Um preconceito de classe. Afastar a característica degradante pelo simples fato de que grande parte da população brasileira também vive em condições precárias, inseguras e compartilhando cômodos revela o pensamento excludente que pauta grande parte da elite brasileira. Trocando em miúdos, é dar aos pobres a pobreza; aos miseráveis, a miséria.
É mais aceitável absolver do que condenar. É mais fácil não enxergar o elo existente entre as regras impostas de cima para baixo e as condições precárias de trabalho. É mais confortável virar as costas para o necessário processo de aprimoramento contínuo de uma cadeia marcada pela escravidão pós-moderna.
É inegável que a tomadora final dos serviços prestados lá embaixo, em condições subumanas, se omitiu no seu dever social, jurídico e cívico de conhecer os métodos materiais e humanos utilizados para a confecção dos produtos que encomenda. Não se preocupou em aferir a real capacidade produtiva daqueles que lhe prestam serviços e não teve interesse, sequer, em verificar como seu produto foi fabricado. Beneficiou-se diretamente da força de trabalho de toda a cadeia produtiva, mas deliberadamente fechou os olhos para as condições da produção, pondo-se em condição de ignorância. Trata-se de uma cegueira absolutamente proposital em face daquilo que ocorre ao seu redor.
A situação exige reflexão. Demanda colaboração da sociedade civil organizada, dos órgãos públicos responsáveis pela luta contra a escravidão e, especialmente, do Judiciário. Impõe-se que os magistrados assumam um papel político proativo, tomando para si o dever de contribuir para a transformação da realidade social. É mister, em arremate, desvelar a omissão culposa da elite da moda e arrebentar os grilhões camuflados que acorrentam milhares de trabalhadores brasileiros.
Tiago Muniz Cavalcanti é procurador do Trabalho em São Paulo e membro da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conaet) do Ministério Público do Trabalho
Esse artigo foi originalmente publicado pelo Repórter Brasil