O governo da Nicarágua concedeu a uma misteriosa empresa chinesa de propriedade de Jing Wang, um empresário de Hong Kong pouco conhecido, a construção de um canal interoceânico. Isso proporcionaria uma alternativa ao Canal do Panamá que, 99 anos após sua inauguração, luta para lidar com o grande volume de tráfego naval.
Apesar de ser uma das decisões mais importantes da história da Nicarágua, o projeto de lei em questão surgiu praticamente de um dia para o outro e foi aprovado como lei apenas três dias depois de ter sido enviado ao parlamento, sem consulta nacional ou oportunidade de ouvir a oposição ou a opinião de alguns dos principais cientistas do país.
A empresa é do Grupo de Desenvolvimento Hong Kong-Nicarágua (HKND), que não tem experiência com grandes projetos de construção. Com um custo estimado de US$ 40 bilhões, o canal foi programado para começar em junho de 2014, mas foi adiado para o final do ano.
O governo da Nicarágua afirma que o projeto tirará o país da pobreza, cuja população (45%) vive com menos de US$ 2 por dia. Mas até agora nenhum estudo de viabilidade foi revelado, e economistas sérios expressaram preocupação de que o canal seja apenas mais um enclave econômico como foi seu equivalente para o Panamá. Porque este canal privado não será de propriedade da Nicarágua por 100 anos, e como não estará relacionado ao resto da economia, ele não criará riqueza ou melhorará a economia da Nicarágua.
Cerca de 300 km de escavações serão necessárias para ligar o Oceano Pacífico ao Caribe – três vezes o comprimento do Canal do Panamá. Ao longo do percurso, ele atravessará o Lago Nicarágua, o maior reservatório de água potável na região, e cortará através de florestas e pântanos de grande valor ecológico.
Embora a trajetória final ainda não tenha sido anunciada, está claro que todas as rotas possíveis usarão o Lago Nicarágua (também conhecido por seu nome indígena ‘Cocibolca’). O lago e afluentes adjacentes, juntamente com a rica biodiversidade da região, são as principais preocupações ambientais.
Nenhum estudo de impacto ambiental foi realizado conforme exigido por lei antes da concessão do canal ser assinada, e o projeto de lei requer avaliações ambientais após o fato, ao critério da empresa – um evidente conflito de interesses.
Preocupações ambientais
O projeto ameaça alguns dos ecossistemas mais frágeis do país – em terra, no mar e no lago –, causando danos potencialmente irreversíveis.
Como o coautor Axel Meyer e eu escrevemos na revista Nature esta semana, nós tememos que, se os planos continuarem, possa haver impactos devastadores na ecologia da região, como consequências biológicas e químicas nos cursos de água, devido à grande escavação, dragagem e sedimentação provocadas pela construção, assim como a poluição inevitável e espécies invasivas que o transporte marítimo traz.
Isso poderia levar à extinção de muitas espécies de peixes importantes para as comunidades pesqueiras do entorno, e a fauna aquática característica – como tubarões-touro de água doce, peixe-serra e tarpon – também pode ser afetada.
Além da própria infraestrutura do canal, outros projetos relacionados incluem oleodutos, aeroportos e zonas industriais, que afetarão negativamente os padrões de migração e a dinâmica biológica de animais terrestres.
O dano direto e indireto para as reservas naturais, como a reserva Indio-Maiz e outras, prejudicará as espécies ameaçadas da Nicarágua. Mudanças drásticas no uso da terra e deslocamento de comunidades indígenas colocarão ainda mais pressão sobre áreas naturais protegidas quando aldeias forem realocadas e a floresta for abatida para comida e abrigo.
Preocupações socioeconômicas
Dezenas de aldeias e comunidades indígenas terão de ser removidas de seus lares ancestrais, uma séria preocupação para os grupos indígenas com conexão religiosa profunda a suas terras ancestrais.
Comunidades que enfrentam a perda de terras e a insegurança alimentar entraram com ações judiciais afirmando que não foram consultadas e que isso viola seus direitos territoriais legítimos.
A Academia de Ciências da Nicarágua junto com outras organizações da sociedade civil organizou uma série de fóruns para promover um debate mais bem informado sobre as possíveis ameaças representadas pelo canal, e alternativas. Um documento de todas as apresentações do fórum científico e técnico foi preparado e será publicado em breve (em espanhol).
A academia tem pedido uma avaliação externa e independente sobre o canal, especialmente uma avaliação ambiental, e busca ajuda da comunidade internacional. É surpreendente, considerando a magnitude do projeto, a pouca atenção que tem sido dada no exterior.
Do jeito que está o projeto, ele não é nem ambientalmente sustentável nem cientificamente razoável, mas prosseguirá de qualquer jeito. É necessária uma ação internacional de consultoria especializada para cientistas locais evitarem a trágica destruição de ecossistemas e biodiversidade preciosos na América Central.
Jorge Huete-Perez não trabalha, presta consultoria, tem ações ou recebe financiamento de qualquer empresa ou organização que poderia se beneficiar com este artigo, e não tem afiliações relevantes.
Este artigo foi publicado originalmente no The Conversation