Desde maio de 2013, quando o norte-americano Edward Snowden divulgou, por meio do jornal britânico The Guardian, documentos que comprovam o esquema de vigilância internacional da Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos (National Security Agency, ou NSA), a imprensa brasileira e mundial tem dado destaque ao episódio, muitas vezes relacionando-o à distopia criada por George Orwell, em seu livro 1984 (publicado em 1949). O escritor inglês imaginou um mundo dividido entre três Estados totalitários (Oceania, Eurásia e Lestásia), que teriam controle total sobre a população, através de mecanismos de escuta e da teletela, uma espécie de “olho que tudo vê” instalada em quase todos os lugares. Em parte, a previsão de Orwell se tornou realidade, no entanto, o mundo em que vivemos no século 21 se parece mais com o de outra famosa distopia, escrita bem antes, pelo também inglês Aldous Huxley.
No totalitarismo de Admirável Mundo Novo (de 1932), a vigilância e o controle também existem, mas exercidos pelo condicionamento total dos seres humanos, do embrião ao adulto. Desde o tempo de bebê, são fixados preconceitos e crenças, através da hipnopedia (hipnose durante o sono), visando formar adultos fascinados pelas inovações tecnológicas, consumo e diversão. O Estado mantém as pessoas numa espécie de felicidade eterna, embalada pelo soma, a droga perfeita, que faz esquecer os problemas, evita tristeza e mau-humor e ainda ajuda a dormir bem, tudo isso sem efeitos colaterais aparentes. Para completar o caráter admirável desse mundo, a medicina consegue evitar doenças e até mesmo acabar com a aparência de velhice do rosto e do corpo; no entanto, a juventude e beleza eternas cobram o preço bem cedo: “A juventude quase intacta até os sessenta anos, e depois, zás! O fim.”
Orwell e a vigilância mundial
Assim como os cartazes do “Grande Irmão” espalhados pela Oceania de Orwell prometiam tranquilizar e proteger a nação, com a mensagem “O Grande Irmão zela por ti”, os Estados Unidos de hoje acreditam estar prestando um serviço ao país, por meio do seu sistema de vigilância. Em sua visita recente ao Brasil (13/08/2013), o secretário de Estado norte-americano John Kerry afirmou: “Achamos que nosso serviço de inteligência protege a nossa nação, assim como outros povos. Continuaremos a fazê-lo.” O próprio Obama disse em diversas ocasiões que a vigilância das telecomunicações é realizada legalmente, e que contribui para salvar vidas e impedir atentados terroristas. Além de seus próprios cidadãos, pessoas de outros países têm sido vigiadas. A matéria de capa da Carta Capital de 14/08/2013 revelou que os EUA mantinham 16 endereços em Brasília, onde instalaram bunkers de espionagem; atualmente, pelo menos seis desses locais permanecem em funcionamento.
É claro que não vivemos num mundo totalmente controlado como o inventado por Orwell, mas é difícil deixar de perceber paralelos entre eles, depois das revelações de Snowden. A ameaça da vigilância é comum a 1984 e ao momento atual. No livro, o indivíduo nunca sabia com certeza se estava sendo vigiado pela teletela, ele vivia “na suposição de que cada som era ouvido e cada movimento examinado, salvo quando feito no escuro”. Recentemente, o Google afirmou que “usuários do Gmail não têm ‘expectativa razoável’ de que suas mensagens sejam confidenciais”, segundo documento descoberto pelo grupo de defesa do consumidor Consumer Watchdog, como divulgado no site da Folha de S.Paulo. Para diretores do Google, o usuário do Gmail não deve se surpreender se sua correspondência for aberta, da mesma forma que, no passado, as cartas poderiam ser abertas por carteiros e secretárias. Além de estúpido (já que ninguém esperava a abertura de suas cartas por outra pessoa além do destinatário), o argumento revela a possibilidade – ou ameaça – da vigilância. Não devemos estar seguros de que nossas conversas ou e-mails não estão sendo monitorados, assim como o personagem Smith, de que a teletela não estava “zelando por ele”.
Um mundo novo?
Se em 1984 encontramos semelhança com o mundo contemporâneo na questão da vigilância, em Admirável Mundo Novo podemos traçar diversos paralelos. Huxley imaginou um futuro totalitário em que predominam o culto à ciência e tecnologia, relações descartáveis, consumo desenfreado, e fuga através das drogas. A busca interminável por diversão, beleza e preenchimento do vazio são o que movem os habitantes daquele mundo, nem tão novo assim para nós do século 21.
Enquanto em 1984 o sexo é considerado algo sujo e perigoso, necessário apenas à reprodução, em Admirável Mundo Novo o sexo é livre, servindo como uma das formas de diversão e alienação incentivadas desde a mais tenra infância. Em ambas as distopias, no entanto, o amor foi abolido (assim como a família), e redirecionado para os grandes líderes. Na Oceania de Orwell, todo o amor é dedicado ao Grande Irmão; já no livro de Huxley, a figura máxima é Nosso Ford – uma ironia que remete ao inventor da linha de montagem, símbolo maior do produtivismo capitalista.
Tanto em 1984 quanto em Admirável Mundo Novo ocorre o condicionamento total do indivíduo, mas de formas diferentes. Orwell criou um mundo em que o sujeito é condicionado através da ameaça da violência e da guerra, preparado desde a infância para ser espião, denunciando até mesmo seus pais, se necessário. Huxley deu muito mais relevância ao condicionamento, que ocorre através dos avanços tecnológicos do “mundo novo”: técnicas de fertilização e manipulação genética, hipnopedia, indução de comportamentos e de uma série de preconceitos, que variavam de acordo com a classe social dos indivíduos, designada sempre pelo Estado. Numa sociedade extremamente estratificada, os “administradores mundiais” escolhem quais serão os adultos mais ou menos inteligentes, fisicamente aleijados ou saudáveis, com rostos belos ou feios; de acordo com as características físicas e intelectuais, cada um pode aceitar melhor seu destino futuro. Dependendo da sorte do embrião, ele podia ser criado para tornar-se um Alfa ou um Beta, membro das classes superiores, ou um Ípsilon, que era ensinado para ser feliz por fazer parte do grupo menos favorecido da sociedade. Mais do que prejudicados em seu destino, os Ípsilones não eram nem mesmo indivíduos: através de técnicas de reprodução, seus embriões podiam ser divididos muitas vezes, e gerar dezenas de gêmeos; grupos de pessoas com rostos iguais e com pouquíssima inteligência humana, fabricados para servir o Estado nas tarefas mais árduas e repugnantes.
Ambos os mundos valorizam a juventude e beleza por toda a vida. Em 1984, o exercício físico é obrigatório, cobrado por professores que observavam através da teletela. Em Admirável Mundo Novo, o culto à juventude beira a obsessão. A beleza é necessária para atrair parceiros sexuais – no maior número possível – e a juventude é conseguida por meio de processos tecnológicos e dura toda a existência, que não passa, no entanto, dos sessenta anos.
O pensamento é controlado nas duas ficções, por diferentes meios. Em 1984 existe um órgão do Estado encarregado do controle, a Polícia do Pensamento, autorizada a prender os culpados por “crimideia” – qualquer pensamento contrário às ordens do Partido. O sujeito não deve nunca demonstrar emoções, sensações ou pensamentos, seu rosto deve ser impassível. Já no livro de Huxley, o pensamento é condicionado desde a infância. Os livros são suprimidos (lembrando Fahrenheit 451, outra distopia sobre o totalitarismo), porque estimulam ideias e pensamentos. Pelo mesmo motivo, em 1984, os livros que ainda existem – de péssima qualidade e “inofensivos” – são escritos por máquinas.
Controle do passado
Um dos pontos mais instigantes do livro de Orwell é o controle do passado. O Partido disseminava o ditado “Quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente, controla o passado”. Só poderiam existir os registros, provas e vestígios do passado permitidos pelo grupo dominante, que revelassem fatos positivos sobre o regime, de forma a legitimá-lo. O Grande Irmão precisava estar sempre certo. Por isso, a destruição e a deturpação permanente dos registros eram fundamentais. Em Admirável Mundo Novo, também foi destacado o caráter perigoso da história. “A história é uma farsa”, segundo o líder Ford. Ela deixou de ser ensinada e o Estado empreendeu uma campanha contra o passado, com o fechamento de museus, destruição dos monumentos históricos e supressão de livros.
Para um controle efetivo do passado, o regime totalitário de 1984 inventou o duplipensar, sistema de raciocínio que permite alterar continuamente o passado. É o controle da realidade pelo Partido; “a capacidade de guardar simultaneamente na cabeça duas crenças contraditórias e aceitá-las ambas”. Se o Partido quiser que você veja cinco dedos onde há quatro, você deverá acreditar que vê cinco dedos. Se pela manhã a Oceania estava em guerra com a Eurásia, mas à tarde o Partido disser que a guerra era e sempre foi com a Lestásia, você tem que acreditar que sempre foi assim. No livro de Huxley, permanece, ao menos, uma amostra do passado, na “reserva dos selvagens”. Nessas reservas, habitavam povos considerados primitivos, que ainda mantinham rituais e costumes antigos. Os selvagens ainda possuíam e preservavam sua história; do contrário, os civilizados a mataram.
Desilusão com o mundo novo
Não podemos nos esquecer do contexto social de produção das duas obras. Enquanto Admirável Mundo Novo foi escrito no início dos anos 1930, num período entre guerras, em que se percebia cada vez mais a relação entre o avanço da mecanização dos processos de produção capitalista e o aumento da frieza e brutalidade das relações sociais, 1984 foi concebido no recente pós Segunda Guerra Mundial e em meio a graves problemas pessoais de Orwell.
Ambos os livros mostram uma enorme desilusão com o mundo em que vivem, a partir do olhar crítico de seus autores. Quando Huxley escreveu, ainda não havia acontecido o horror da Segunda Guerra, mas era o contexto de ascensão dos estados totalitários, com Mussolini e Stalin já no poder. O horror da grande guerra influenciou no tom extremamente pesado de 1984. Além disso, Orwell começou a escrever o livro meses após a morte de sua esposa, quando também estava sofrendo muito com a doença que lhe tiraria a vida, a tuberculose. Ele resolveu isolar-se numa ilha inóspita e hostil para escrever, invertendo no título o ano em que finalizou o trabalho (1948 se tornou 1984).
São dois livros de impactante leitura, especialmente 1984, que tem passagens difíceis, por causa da extrema habilidade com que Orwell descreve cenas de tortura. Não se é o mesmo depois de ler essas obras. Elas foram brados de alerta de seus autores, a partir de seus contextos de escrita, sobre o que poderia acontecer se as sociedades ocidentais rumassem para o totalitarismo. Mais do que nunca, elas têm algo a dizer sobre o mundo contemporâneo.
O novo grande irmão
A recente notícia de que o jornal The Guardian fechou uma parceriacom o The New York Times para tornar públicos parte dos documentos vazados por Snowden expõe o controle da comunicação pelas autoridades britânicas. O governo inglês ordenou que o The Guardian entregasse os documentos em seu poder. Como os jornalistas dos Estados Unidos são protegidos pela Primeira Emenda, que garante a liberdade de expressão, o que impede que o estado entre com liminares de “pré-publicação” ou “censura prévia”, o acordo de cooperação vai tornar possível a divulgação de novos desdobramentos do esquema de vigilância mundial arquitetado pelos norte-americanos.
As revelações do ex-analista da CIA levam a crer, guardadas as devidas proporções, que a vigilância orwelliana parece estar se instalando definitivamente no admirável mundo novo. A tecnologia que tanto tem seduzido os cidadãos desse novo mundo é também usada como mecanismo de controle e vigilância. Através das inovações tecnológicas, relações descartáveis e consumo desenfreado, o sistema têm tido mais sucesso em alienar e controlar, do que a imposição pela ameaça do uso da força. Em entrevista de 1958 ao jornalista Mike Wallace (YouTube), Huxley afirmou: “se você quiser preservar seu poder indefinidamente, você tem que obter o consentimento dos governados”.
Se o país que se acredita a mais avançada democracia do mundo empreende um esquema de vigilância gigantesco e vive sempre em guerra contra o terrorismo, o que poderia acontecer num regime verdadeiramente totalitário? A sedução pelo consumo, especialmente de tecnologia, está cobrando seu preço. Num mundo em que a exposição máxima é incentivada, com o culto às celebridades, aos games e aos equipamentos eletrônicos, poucos parecem estar muito preocupados com a vigilância de seus e-mails ou de suas postagens nas redes sociais. Sociedades que dão pouco valor à privacidade podem se tornar iscas fáceis de dominação, e acreditar mesmo – numa espécie de duplipensar – que a vigilância é “para o seu bem”.
A cooperação entre os jornais britânico e norte-americano vai produzir uma série de matérias sobre a vigilância mundial. Esperamos que esses e outros artigos venham a abrir cada vez mais a “caixa preta” do grande irmão. É uma big ironia, pois com a revelação dos detalhes do esquema, seremos nós que adentraremos nos segredos do irmão do norte. Mas nesse caso podemos alegar que será mesmo para o “bem de todos” – para o bem da liberdade de expressão de todos; quem sabe assim, nosso mundo poderá vir a ser, em parte, realmente admirável.
Elenita Malta Pereira é historiadora e doutoranda em História
Esta matéria foi originalmente publicada pelo Observatório da Imprensa