Buscando justiça em uma China sem lei

03/12/2015 18:13 Atualizado: 03/12/2015 18:13

No meio da tarde do dia 28 de janeiro de 2009, a família de Jiang Xiqing recebeu um telefonema do Campo de Trabalho Xishanping, informando-os que seu pai havia morrido repentinamente.

“Ataque cardíaco agudo” foi a explicação oficial para a morte de um homem de 66 anos de idade. Eles tinham acabado de ver seu pai no dia anterior, e ele estava bem de saúde.

Os quatro filhos e mais três outros membros da família se apertaram em um carro e foram apressadamente para o campo. Assim que chegaram, foram enfiados em um hotel próximo ao local por guardas que exalavam cheiro de álcool.

Eles tiveram que esperar por várias horas. Quando foram finalmente levados ao necrotério, viram o corpo de seu pai ser puxado em uma maca do congelador. A reação deles foi sair correndo.

“Meu pai não está morto, ele está vivo!”, gritou Jiang Hong, sua filha mais velha. Eles rapidamente sentiram seu rosto e o seu peito, que estavam mais quente do que as mãos de quem o tocava.

Em pânico, os guardas começaram a gritar e agredir fisicamente a família. “Diante deste ataque repentino e da enorme multidão de guardas, nós estávamos sofrendo, indignados e indefesos”, escreveu mais tarde sua filha mais nova, Jiang Li, em uma petição que tenta buscar justiça para seu pai.

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O que se seguiu nos próximos seis anos foi uma infrutífera busca para descobrir como ele morreu, e para pegar os responsáveis: os funcionários chineses envolvidos no crime. Em certo ponto, a família foi informada de que os órgãos do seu pai haviam sido removidos e transformados em “espécimes médicos”.

Quando ficou claro que Jiang Li e sua família não cederiam, o caso começou a assumir contornos similares a um filme policial: advogados que se envolveram no caso foram perseguidos, torturados e espancados e, repetidamente, grandes somas de dinheiro para suborno foram oferecidas.

Jiang Xiqing e sua esposa, Luo Zehui, nesta foto de arquivo. Sua filha Jiang Li está buscando justiça para Jiang Xiqing depois que ele foi morto em circunstâncias misteriosas enquanto estava detido no campo de trabalho devido à sua crença (Minghui.org)
Jiang Xiqing e sua esposa, Luo Zehui, nesta foto de arquivo. Sua filha Jiang Li está buscando justiça para Jiang Xiqing depois que ele foi morto em circunstâncias misteriosas enquanto estava detido no campo de trabalho devido à sua crença (Minghui.org)

Quando morreu, Jiang Xiqing estava na metade da sentença de um ano de reeducação através do trabalho forçado; seu único crime foi praticar o Falun Gong, uma prática espiritual de meditação que tem sido perseguida pelo Partido Comunista Chinês há 16 anos.

A tentativa da família para encontrar a verdade sobre a morte de Jiang Xiqing e a retaliação que sofreram é um caso estudado na perseguição ao Falun Gong.

O caso de Jiang Xiqing atraiu muita atenção na época, em parte porque os advogados relataram o abuso sofrido, nas mãos dos policiais chineses, para as mídias do exterior e organizações dos direitos humanos.

O Epoch Times analisou uma série de documentos para este artigo, incluindo: o relatório oficial da autópsia do Instituto de Medicina Legal de Chongqing; uma transcrição de 43 páginas da reunião, realizada no dialeto Chongqing, entre os membros da família Jiang e os oficiais de Chongqing; testemunhos da família sobre as circunstâncias que levaram à morte de Jiang Xiqing; e documentos da petição apresentadas aos departamentos do governo norte americano.

Jiang Li está agora na cidade de Nova York, ainda em luto e indignada. Acima de tudo, se sente impotente devido à misteriosa morte de seu pai. Esta é a sua história.

Verdade, Compaixão, Tolerância

Nos anos oitenta e noventa, milhões de cidadãos chineses costumavam ir a parques e praças públicas para praticar qigong, um tipo de exercício chinês, como o Tai Chi Chuan. O Partido Comunista Chinês havia apoiado o qigong como uma forma barata e eficaz para se manter saudável, e aliviar a pressão financeira sobre os serviços de saúde do Estado.

O Falun Gong, uma prática de qigong que envolve cinco séries de exercícios de meditação, se tornou rapidamente uma das disciplinas mais populares de qigong depois que foi passado ao público em 1992. A principal atração do Falun Gong, também conhecido como Falun Dafa, foi a propagação da elevação moral: em suas vidas diárias, os praticantes aderem aos princípios da verdade, compaixão e tolerância.

Praticantes do Falun Gong fazendo um dos exercícios em Chongqing, na China, em 1998 (Minghui.org)
Praticantes do Falun Gong fazendo um dos exercícios em Chongqing, na China, em 1998 (Minghui.org)

Luo Zehui, a esposa de Jiang Xiqing, teve um caso semelhante a muitos outros chineses: ela começou a praticar o Falun Gong em 1996 em busca de alívio para os inumeráveis problemas de saúde que possuía. A prática trouxe melhoras para sua saúde e seu espírito. Enquanto ajudava a sua esposa, que era analfabeta, a ler o “Zhuan Falun”, o livro principal do Falun Gong, Jiang Xiqing foi atraído fortemente pelos seus ensinamentos. Assim, ele também começou a praticar. O casal de idosos, em seguida, ensinou o Falun Gong para os seus filhos.

Em 1999, o Falun Gong parecia onipresente na China – uma pesquisa oficial relatou que 70 milhões de cidadãos chineses faziam rotineiramente os exercícios em público. Informações proferidas pelos próprios praticantes de Falun Gong afirmaram que o número de pessoas que haviam aderido à prática era mais de 100 milhões.

A grande maldade

Aos olhos do então líder do Partido Comunista Chinês, Jiang Zemin (que não possui nenhuma relação com Jiang Li), os pacíficos meditadores eram uma ameaça à “estabilidade social” e ao Partido Comunista. Em 20 de julho de 1999, ele ordenou que as vastas forças de segurança do país “erradicassem” o Falun Gong. Os praticantes deviam ser demitidos de seus empregos, enviados para campos de trabalho para reeducação ideológica, e submetidos a torturas até que renunciasse a sua fé e, no seu lugar, declarassem lealdade ao partido.

De acordo com as estatísticas (incompletas) do Minghui.org, central de informações sobre a perseguição ao Falun Gong, pouco mais de 3.900 praticantes foram mortos devido a torturas e abusos, e centenas de milhares ainda definham na prisão. Pesquisadores estimaram que 65 mil praticantes de Falun Gong foram mortos por seus órgãos, entre os anos 2000 e 2008. Com a contínua colheita forçada de órgãos desde 2008, acredita-se que o número total de mortos seja bem mais de 100 mil.

Após a campanha contra o Falun Gong começar, Jiang e Luo viajaram à Pequim para protestar. Em Chongqing, eles entregavam panfletos explicando os princípios do Falun Gong, e esclareciam as mentiras proferidas pela propaganda da cultura revolucionária do Partido Comunista, que incita o ódio contra a prática.

O casal de idosos foi detido por defender a prática e enviado para classes de reeducação – inicialmente estas classes eram apenas leves. Devido à idade, eles inicialmente escaparam dos espancamentos brutais e do extenuante trabalho escravo que muitos prisioneiros adeptos do Falun Gong foram sujeitos.

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Entretanto, as coisas mudaram em 2008, quando começaram os jogos olímpicos de verão em Pequim, e o mundo estava elogiando a China devido ao seu surgimento no cenário mundial.

Luo Zehui foi presa pela polícia de Chongqing, em 13 de maio de 2008, enquanto estava distribuindo material de Falun Gong nas ruas. Mais tarde, neste mesmo dia, a polícia invadiu sua casa, levando Jiang Xiqing , que estava acompanhando as atualizações sobre o destrutivo terremoto em Sichuan, ocorrido um dia antes.

Jiang foi condenado a um ano de trabalho escravo no Campo de Trabalhos Forçados de Xishanping. Luo foi julgada em segredo e recebeu uma sentença de oito anos na prisão feminina de Yongchuan, onde foi espancada até ficar inconsciente em pelo menos três ocasiões.

“Oito anos! Isso é muito malvado”, murmurou Jiang Xiqing, quando soube do castigo de sua esposa. Ele chorou.

Isso foi no segundo dia do Ano Novo Lunar, o feriado mais importante para as famílias chinesas.

Praticante do Falun Gong, Jiang Li, fala em uma reunião do Falun Gong no Pier Santa Monica, em Los Angeles, no dia 17 de outubro de 2015 (Edward Dye / Epoch Times)
Praticante do Falun Gong, Jiang Li, fala em uma reunião do Falun Gong no Pier Santa Monica, em Los Angeles, no dia 17 de outubro de 2015 (Edward Dye / Epoch Times)

‘Meu pai continua vivo!’

Em 27 de janeiro de 2009, um dia antes de Jiang Xiqing morrer sob custódia, sua família o viu são e forte em uma das raras visitas que lhes foram concedidas. Jiang Guiyu, sua neta de dois anos e meio, tentou lhe dar uma espiga de milho, mas os guardas se recusaram a deixar que ele pegasse. Então, em vez disso, ela tirou um punhado de amendoim do bolso e passou escondido para ele.

Quando a família estava saindo (a visita foi interrompida pelos insanos guardas da prisão), Jiang apertou seus lábios através de uma fresta na porta para beijar sua neta; adeus. “Nós não tínhamos absolutamente nenhuma ideia de que esta seria a última vez que veríamos o nosso pai”, escreveu a família em sua petição.

No dia seguinte, às 15:40, eles receberam um telefonema informando-os de que Jiang havia morrido há uma hora. Aproximadamente às 22h, a família finalmente foi levada ao necrotério, perto do campo de trabalho forçado.

A primeira coisa que eles notaram, e que é também uma parte chave do mistério não resolvido, foi que o corpo de seu pai estava quente, estava ainda suave ao toque, mesmo depois de supostamente ter passado sete horas em um freezer no necrotério.

“Venham e resgatem o nosso pai! Ele ainda está vivo!”, gritou um membro da família, de acordo com o relato do dia no Minghui.org. Eles tentaram puxar o corpo para fora para começar as tentativas de reanimação. O número de guardas superava o da família, então eles foram expulsos da sala, ainda sem a certeza de que seu pai estava mesmo vivo ou morto.

Jiang Li saiu do necrotério para ligar para a polícia. Quando desligou, um dos guardas de pé ao lado dela se virou, e friamente, disse: “É inútil. A polícia está aqui”.

Contra a vontade da família, dias depois, a polícia cremou o corpo de seu pai.

Acobertamento

Nos meses seguintes, as autoridades de Chongqing começaram um sistemático acobertamento.

Primeiro, eles deram relatos conflitantes sobre a morte de Jiang. A explicação inicial disse que o ataque cardíaco súbito foi causado por “gua sha”, o tratamento médico tradicional chinês para abrir canais de energia. Este tratamento envolve a raspagem suave com um objeto plano sobre a pele, que produz leves contusões.

A isto foi adicionado um detalhe preocupante: quando os membros da família se encontraram com várias autoridades de Chongqing para obter o relatório oficial da autópsia, em 27 de março de 2009, Zhou Bailing, um supervisor da Procuradoria de Chongqing, disse que os órgãos de Jiang foram removidos e transformados em “espécimes médicos”.

Esta reunião foi gravada e transcrita pela família. O Epoch Times analisou ambos, juntamente com o relatório oficial da autópsia.

Em uma reunião feita em junho deste ano com dois membros da família, cerca de 20 funcionários da Agência 610 de Chongqing, o Departamento de Segurança Pública, agora insistiram que não havia nenhum ferimento no corpo de Jiang, contrariando a história do “gua sha”.

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Em seguida, os oficiais se ofereceram para resolver a questão financeiramente, caso a família interrompesse todo o processo. No mesmo ano, durante uma negociação privada, Chen Jiurong, o vice-diretor do departamento de polícia de Chongqing, ofereceu 300 mil yuan (US $ 47 mil) para a família, além disso, se concordassem em  abandonar o caso, sua mãe seria solta em liberdade condicional, disse Jiang Li.

Em 2012, dois policiais de Chongqing disseram à Jiang Li para “colocar qualquer preço” para largar o caso.

Jiang Li e a família ignoraram todos estes pedidos e, em vez disso, pediram às autoridades centrais em Pequim para investigar a inexplicada morte.

“É comum que os oficiais chineses paguem às vítimas de injustiça em troca de seu silêncio, porque as petições de cidadãos aos altos níveis da burocracia chinesa afetam negativamente as promoções oficiais”, disse Sarah Cook, analista sênior de pesquisa da Freedom House, uma ONG norte americana.

Cook disse que o problema na China é que “não há nenhuma regra da lei ou valor estabelecido pelas autoridades em relação à vida dos praticantes do Falun Gong, como Jiang Xiqing”.

Colocando pressão

Quando eles descobriram que Jiang Li não poderia ser silenciada com dinheiro, as forças de segurança chinesas partiram para a ofensiva, ameaçando e assediando a família e o seu empregador.

Em dezembro de 2009, o chefe de Jiang Li, que trabalhava na Shanghai Airlines, a demitiu. Logo depois, seu marido, que trabalhava como guarda de segurança numa fábrica, pediu o divórcio por causa da pressão implacável por parte das autoridades.

Outros que tentaram ajudar também foram perseguidos. Em 13 de maio de 2009, Zhang Kai Li e Chunfu, dois advogados de Pequim, foram emboscados por 20 homens na casa da família de Jiang, em Chongqing.  O caso atraiu a atenção em larga escala das comunidades chinesas de direitos humanos.

Em uma delegacia de polícia, os advogados foram interrogados e agredidos por horas. A polícia também ameaçou processá-los por seu envolvimento.

“Este é um comportamento típico de bandido. Eles só queriam nos intimidar e nos obrigar a sair do caso. Eles estão tão assustados; eles devem estar escondendo alguma coisa”, disse Zhang Kai, de acordo com um relatório da Human Rights in China, uma ONG com sede em Nova York.

Mais recentemente, em agosto de 2015, as autoridades chinesas sumiram com os dois advogados como parte da repressão maciça aos advogados de direitos humanos da China.

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Liang Xiaojun, também um advogado de direitos humanos na China e um amigo de ambos, disse em uma chamada telefônica em 02 de novembro: “Eles já foram pegos, eu não sei onde eles estão. Eu não posso entrar em contato com eles, não é possível contatá-los.”

Enquanto o abuso aos advogados ganhou destaque internacional, o caso da morte não natural e a busca pela  justiça saiu silenciosamente de vista.

Cook disse que a atenção internacional para o caso de Jiang e o medo de mais exposição pode ter motivado a polícia a pagar os membros da família de Jiang, para ficarem calados, isso também ajudou a evitar que fossem presos.

Em uma reviravolta extraordinária, Jiang Li e sua irmã garantiram a libertação antecipada de sua mãe, Luo Zehui, em janeiro de 2010. Foi a primeira vez que um praticante do Falun Gong em Chongqing foi liberado mais cedo.

Como sua mãe não está mais nas garras das forças de segurança do Partido Comunista, Jiang Li tem colocado seus esforços para garantir a justiça ao seu pai.

Uma petição de seis anos

Isso se arrastou por mais cinco anos, sem qualquer resultado. Jiang Li estava apenas pulando entre incontáveis agências governamentais irresponsáveis, e dias ou até semanas trancada em prisões negras em Xangai e Pequim.

A simpatia e compreensão que conseguia ocasionalmente – por exemplo, de dois funcionários da Secretaria Geral do Conselho de Estado, em setembro de 2012 – não ajudava muito. Quando perguntaram por que ela não aceitava a recompensa, Jiang Li respondeu: “Porque a vida humana não tem preço”.

“O caso de Jiang Xiqing resume alguns dos piores abusos que os praticantes do Falun Gong na China têm enfrentado nas mãos de autoridades chinesas, e mostra que estão entre os mais mal tratados entre as populações sob custódia”, comentou Cook.

“Ele destaca os paradoxos da atual China: uma economia moderna, por um lado, e a tortura medieval e assassinato no outro”, disse.

Este ano, Jiang Li obteve um visto de turista e chegou a Nova York em 19 de julho. Ela deseja um dia levar o caso perante as Nações Unidas.

Jiang Li junta-se a um protesto que pede ao líder chinês Xi Jinping o fim da perseguição ao Falun Gong na China, em Dag Hammarskjold Plaza, em frente à sede das Nações Unidas em Nova York, em 26 de setembro de 2015 (Samira Bouaou / Epoch times)
Jiang Li junta-se a um protesto que pede ao líder chinês Xi Jinping o fim da perseguição ao Falun Gong na China, em Dag Hammarskjold Plaza, em frente à sede das Nações Unidas em Nova York, em 26 de setembro de 2015 (Samira Bouaou / Epoch times)

Jiang agora vive na comunidade chinesa em Flushing, no Queens. Ela conta sua história para turistas chineses que andam pela Times Square.

“Eu falo com todos”, disse Jiang. “O que eu digo são fatos. É tudo verdade”.

Jiang também é um dos cerca de 190 mil praticantes do Falun Gong que tem apresentado queixas criminais contra Jiang Zemin, o ex líder do Partido Comunista que lançou a campanha de perseguição. Entretanto, ela não espera uma resposta em breve sobre a morte de seu pai, não até que a China não seja mais governada pelo Partido Comunista Chinês.

Frank Fang, Juliet Song, e Matthew Robertson contribuíram para esta reportagem.